26 Fevereiro 2021
A graça da liberdade de tentar ser como Jesus. De estar livre da necessidade de aprovação, colocar-me ao lado dos que se encontram à margem e, quando atacado, poder dizer, com Jesus: “Quem se importa?”.
O comentário é do jesuíta estadunidense James Martin, consultor do Dicastério para a Comunicação do Vaticano e autor do recém-lançado “Learning to Pray: A Guide for Everyone” [Aprendendo a rezar: um guia para todos] (Ed. William Collins, 2021).
O artigo foi publicado por The Tablet, 25-02-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eu amo ser jesuíta. E nunca tenho certeza por onde começar quando tenho que descrever os motivos. Certamente, minha vida como padre, meu ministério como escritor e a espiritualidade jesuíta são coisas pelas quais eu nunca poderei agradecer a Deus de uma forma adequada. Mas as bênçãos mais surpreendentes da vida jesuíta têm sido os meus irmãos jesuítas. A Companhia de Jesus não pode prometer isso na sua literatura vocacional, mas eu não tinha ideia de que a vida religiosa significaria conhecer tantas pessoas que eu considero não apenas amigos, mas também os irmãos mais próximos que eu poderia imaginar.
A vida em uma ordem religiosa, entretanto, não é perfeita – e os membros dessas ordens serão os primeiros a lhe dizer isso. No entanto, mesmo essa falta de perfeição acabou sendo uma fonte de graça para mim.
Há muitos anos, eu morei em uma comunidade jesuíta (que já não existe), onde alguém não gostava de mim. É claro que as pessoas nas ordens religiosas são como todas as outras: gostam de algumas pessoas, mas não de outras. E eu não sou nem um pouco perfeito, então não espero que todos gostem de mim. Mas isso estava em um nível diferente. Talvez a melhor forma de expressar isso seja dizer que ele me desprezava. Por vários anos, ele se recusou a falar comigo, respondendo apenas quando eu lhe fazia uma pergunta direta; ele suspirava pesadamente e revirava seus olhos sempre que eu falava em comunidade; ele costumava sair da mesa de jantar quando eu me sentava para comer; e ocasionalmente murmurava maldições ao passar por mim no corredor.
Peço desculpas se isso é desencorajador sobre a vida religiosa, mas a maioria das pessoas teve essas experiências pelo menos uma vez na vida. As ordens religiosas não estão imunes à fragilidade humana e até mesmo ao pecado, como já deveríamos saber agora.
Ao longo dos anos, tentei de tudo para corrigir ou mesmo melhorar a situação. Esforçava-me para lembrar o que eu havia feito para irritá-lo (não conseguia me lembrar de nada). Tentei me reconciliar com ele (ele me expulsou do quarto). Falei com meus superiores, que foram simpáticos e solícitos (eles falaram com ele, mas nada mudou). Por fim, aprendi a conviver com isso, a rezar por ele e, como um sábio e idoso jesuíta aconselhava, a simplesmente ser “cordial” com ele. Foi, no entanto, uma grande penitência.
Depois de alguns anos nessa situação, fui ao meu retiro anual de oito dias e confessei à minha diretora de retiro como isso era difícil. Em resposta, ela sugeriu aquela que eu achei ser uma passagem estranha para rezar: a rejeição em Nazaré no Evangelho de Lucas (4,14-30). Nessa passagem, como eu tenho certeza que você sabe, Jesus se levanta na sinagoga da sua cidade natal e, com tantas palavras, proclama que ele é o Messias. Inicialmente, os habitantes da cidade elogiam o que ele diz, mas então, depois de ele sugerir que eles provavelmente vão exigir um milagre, eles se voltam contra ele.
Embora alguns pregadores modernos suavizem o que acontece em seguida, devemos ser claros: eles tentam matar Jesus. “Levantaram-se e expulsaram Jesus da cidade. E o levaram até o alto do monte, sobre o qual a cidade estava construída, com intenção de lançá-lo no precipício.” Mas Jesus escapa “passando pelo meio deles”.
Quando os pregadores ou os comentaristas ampliam essa passagem, eles frequentemente oferecem esta intuição: os moradores da cidade não podiam ver Deus, mesmo quando Deus estava bem na frente deles. A lição espiritual geralmente é uma pergunta: onde deixamos de ver Deus nas nossas vidas porque Deus é muito familiar? Ou: que pessoa, lugar ou coisa familiar que podemos estar ignorando é portador da graça de Deus? Todas boas perguntas.
Mas na minha oração, algo diferente aconteceu, uma mudança de perspectiva. Na época, eu estava escrevendo um livro sobre Jesus e sabia que Nazaré era uma cidade minúscula, com apenas 200 a 400 habitantes. Então, quando imaginei Jesus de pé na modesta sinagoga (que, muitos estudiosos supõem, não era um prédio, mas sim um local de reunião ao ar livre), eu o imaginei falando para um pequeno grupo de pessoas que não apenas o conheciam, mas que ele também conhecia.
De repente, me dei conta: Jesus tinha que falar essa verdade diante de pessoas que ele conhecia. Portanto, ele devia saber, ou devia ser capaz de intuir, qual seria a reação delas. Foi um choque ver a história revirada dessa forma: da perspectiva da multidão para a perspectiva de Jesus.
Na minha oração, eu me imaginei falando com Jesus e perguntando: “Como você conseguiu fazer isso?”.
E, na minha oração, eu o ouvi me dizer: “Será que todos devem gostar de você?”.
Foi um choque, não apenas na clareza com que essas palavras vieram até mim (não auditivamente, mas sentidas), mas também no seu significado. Na época, eu tive vontade de dizer: “Sim, devem!”. Depois de mais alguns períodos de oração, percebi que Jesus estava me convidando a ser livre da necessidade de ser amado, apreciado ou aprovado.
Isso ajudou imensamente na minha relação com esse outro jesuíta. E então, pensei, essa intuição me foi dada em oração por essa razão. Mas Deus não havia terminado.
Cinco anos depois, em 2017, eu publiquei um livro intitulado “Building a Bridge” [Construindo uma ponte], sobre a relação da Igreja com os católicos LGBT. Embora as pessoas riam quando eu digo isto, eu não esperava que o livro fosse grande coisa. A primeira edição era fisicamente muito pequena, apenas 140 páginas, e não desafiava nenhum ensinamento da Igreja. Principalmente, o livro encorajava a Igreja institucional a tratar os católicos LGBT com o “respeito, compaixão e sensibilidade” pedidos pelo Catecismo e com o amor, misericórdia e compaixão pedidos por Jesus.
Em algumas semanas, ele evocou reações surpreendentemente fortes. Primeiro, vieram respostas intensamente emocionais em palestras nas paróquias, onde eu fiquei surpreso ao testemunhar ovações de pé, ao receber abraços cheios de lágrimas e ao ver longas filas de pessoas esperando para me agradecer. Com o tempo, percebi que simplesmente ter uma conversa deixava as pessoas agradecidas.
Mas depois veio a reação negativa, que eu havia previsto, mas não neste grau: ataques pessoais intermináveis e comentários odiosos, incluindo xingamentos, de comentaristas, sites e revistas católicos supostamente respeitados. Ia além da discordância, chegando ao ódio.
Às vezes, era difícil acompanhar. Eu fui chamado (você pode procurar por aí) de “herege”, “apóstata”, “sodomita”, “homossexualista”, “falso padre”, “lobo em pele de cordeiro”, assim como de “bicha”, “viado” e todas as calúnias homofóbicas que você pode imaginar.
O sítio de extrema direita Church Militant direcionou seus seguidores a atacarem as minhas contas nas mídias sociais, o que levou a milhares de mensagens cheias de ódio. Palestras foram canceladas após campanhas online. No meu escritório na America Media, eu recebi não apenas telefonemas carregados de obscenidades, mas também aquilo que eu passei a chamar de ameaças de morte católicas: nenhuma ameaça de assassinato direto, mas sim notas dizendo: “Espero que você morra logo”.
Alguns ataques vieram até de alguns clérigos e membros da hierarquia, que muitas vezes revelaram sua falta de conhecimento do que eu havia escrito, preferindo obter suas informações na web. Um bispo estadunidense condenou o livro na sua coluna semanal, mas admitiu, no meio do seu artigo, que não o havia lido.
Felizmente, recebi o apoio dos meus superiores jesuítas, e, alguns meses depois, veio a reação à reação, com convites de cardeais e arcebispos para falar nas suas dioceses, um convite surpresa para falar no Encontro Mundial das Famílias do Vaticano, em Dublin em 2018, e, finalmente, uma audiência de 30 minutos com o Papa Francisco no Palácio Apostólico, em setembro de 2019, na qual debatemos sobre o ministério LGBT na Igreja Católica e depois da qual senti que eu estava caminhando nas nuvens.
Mas, naquelas semanas intermediárias, os ataques pessoais me levaram de volta à pergunta que eu ouvi na oração: “Será que todos devem gostar de você?”. A resposta é: “Não”. Nem todos gostavam de Jesus, então por que todos deveriam gostar de mim? A libertação da necessidade de ser amado, apreciado e aprovado foi um grande dom, como dizia Thomas Merton, “na ordem da graça”.
A essa altura, você pode esperar uma espécie de “inclusio”, na qual eu digo que, no fim, aquele jesuíta que me detestava finalmente se reconciliou comigo. Mas não foi isso que aconteceu. Em vez disso, ele simplesmente se mudou da comunidade. Mas a graça que ele deixou para trás foi a liberdade de tentar ser como Jesus. Estar livre da necessidade de aprovação, colocar-me ao lado dos que se encontram à margem e, quando atacado, poder dizer, com Jesus: “Quem se importa?”.
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Quaresma, tempo para construir pontes. Artigo de James Martin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU