20 Janeiro 2021
Como sociedade, e às vezes também como Igreja, estamos perdendo a oportunidade desta grande suspensão de um regime de vida que chegou ao seu colapso para nos interrogarmos e nos deixarmos interrogar precisamente pelo próprio limite, por aquilo que se anuncia por trás de toda limitação e medida que reduzem não apenas os espaços do nosso movimento e as oportunidades de circulação nas nossas cidades, mas também as liberdades adquiridas que tínhamos como certas.
O comentário é do teólogo e padre italiano Marcello Neri, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, em artigo publicado por Settimana News, 19-01-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A pandemia pegou a todos de surpresa, inclusive a fé cristã. Embora sabendo que algo assim seria possível, não apenas por causa de antigos rumores sepultados na memória da história, mas também porque regiões marginais já haviam sido atingidas por eventos semelhantes em tempos recentes, nós o removemos até que se transformou em um fato da nossa vida cotidiana.
Ao atravessar este nosso tempo, a fé cristã foi pega de surpresa e, junto com a Igreja, parece navegar certamente à vista, e de vez em quando na escuridão, nas águas que agitam a humanidade por toda a parte nesta nossa terra.
Se uma primeira desorientação da fé é compreensível, é menos compreensível que ela continue se movendo ainda como que às apalpadelas nesta longa noite da humanidade. É assim porque a fé cristã está enervada por duas atitudes tão fundamentais quanto elementares, em torno das quais é preciso organizar uma orientação mínima para atravessar de modo evangélico a convulsão dos tempos em que vivemos.
Por um lado, trata-se de se deixar interrogar pela situação pandêmica que abalou os nossos hábitos, pedindo-nos para vivermos de uma forma substancialmente inédita, revogando certezas que pareciam já adquiridas para sempre.
Essa adesão à história humana, seja qual for a forma que ela assuma, é uma progenitora do crer cristão, que não pode deixar de ser fiel à terra de Deus à qual está destinada a promessa do Reino.
Por outro lado, a fé vive essa sua fiel adesão à história humana como lugar da proximidade evangélica de Deus sempre à luz da brecha crítica do Reino: que é o mundo assim como Deus o deseja, aquele em que ele quer viver felizmente para sempre com todos os homens e as mulheres que vieram ao mundo, e não aquele construído pelas nossas mãos e pelas nossas aspirações.
Sob essa luz, precisamente no momento em que tudo fala de uma coisa só, a fé se rebela contra a monopolização do nosso pensamento e do nosso sentimento por parte do vírus – resgatando a linguagem e os afetos de uma torsão mortífera da natureza invasiva generalizada provocada pela pandemia.
É assim que a fé enfrenta hoje a condição comum da pandemia, que colocou todos nós diante do tema/experiência do limite que invadiu as nossas existências cotidianas. Vivemos hoje, por muitas boas razões, como se estivéssemos cercados de limites: desde os impostos pelas autoridades civis aos escolhidos pelas comunidades religiosas, em vista de uma necessária salvaguarda da vida de todos e em particular dos mais frágeis ou expostos entre nós aos efeitos mortíferos do vírus, até aqueles que nos assaltam a partir de dentro dos nossos medos, paralisando toda a nossa urgência capaz de nos lançar além de uma pura autopreservação.
Devemos confessar que tínhamos uma escassa familiaridade com o limite e com as renúncias que ele acarreta; daí aquela atitude agressiva em relação às limitações que já suportamos com muito custo.
Como sociedade, e às vezes também como Igreja, estamos perdendo a oportunidade desta grande suspensão de um regime de vida que chegou ao seu colapso para nos interrogarmos e nos deixarmos interrogar precisamente pelo próprio limite, por aquilo que se anuncia por trás de toda limitação e medida que reduzem não apenas os espaços do nosso movimento e as oportunidades de circulação nas nossas cidades, mas também as liberdades adquiridas que tínhamos como certas.
“É lícito se perguntar se, até para respeitar os limites, não é necessário treinar, por exemplo refletindo sobre eles e, mais em geral, aproximando-se do limite não apenas como um simples ‘menos’, uma pura privação, senão até como um mero aborrecimento ou uma insuportável ofensa. O limite certamente deve ser respeitado, mas ‘respeitar o limite’ não significa apenas sofrê-lo e obedecer à lei que o impõe, mas também significa não reduzi-lo a um ‘simples limite’, não concebê-lo apenas como um obstáculo mudo a ser superado o quanto antes e a todo o custo, significa não resolvê-lo unicamente no ocasional desafio a fim de obter um excedente de adrenalina. ‘Respeitar o limite’ significa querer e saber escutar a palavra e o ensinamento que dele provém pontualmente” (S. Petrosino).
A nossa surpresa descomposta diante do limite, diante da força da sua penetração até mesmo nos santuários mais zelosamente conservados pelo ordenamento em que estávamos imersos durante toda a vida, diz algo de uma perigosa ingenuidade nossa: isto é, diz que estamos vivendo, talvez suportando e não muito bem, o limite como se ele fosse apenas uma causa da pandemia. Acabada esta, desaparecerá também a insuportável necessidade de cercar o limite.
E isso diz algo do modo como vivemos, como civilização ocidental, até dois dias antes da explosão da pandemia: precisamente, como se antes nos sentíssemos ilimitados, onipotentes, vivendo o delírio de poder dispor de tudo ao nosso prazer, de não ter que renunciar a nada – porque o limite era simplesmente algo terrivelmente provisório, fátuo, já destinado a desaparecer com a próxima atualização ou com a posterior implementação do humano.
Vivíamos como que sem tempo, porque toda expectativa não estava apenas no limiar da sua realização, mas as realizações da técnica também já precediam todas as nossas expectativas: vivíamos sem esperar mais nada, porque tudo já estava aqui bem antes de existirmos e de podermos acessá-lo.
Apesar da turbulência em que a pandemia nos lançou, ainda corremos esse risco – o de considerá-la um infeliz parêntese a ser fechado, talvez graças ao poder salvífico das vacinas, que são uma bênção se as deixarmos fazer o seu trabalho, mas que se tornam monstros se pensarmos que obteremos por meio delas uma imunidade garantida em relação ao limite (de novo, como antes).
A pandemia desmascarou a ilusão em que estávamos aninhados e está nos pedindo que acertemos as contas com o limite não como um incidente de percurso, que talvez o retardou um pouco, mas como uma característica essencial de uma existência propriamente humana.
Embora se continue cultivando secretamente essa ilusão, uma coisa deve ser dita: não voltaremos a ser quem éramos antes, porque a imersão prolongada na experiência do limite deixará marcas indeléveis em cada um de nós – e não deveremos nos apressar para apagá-las como se já não fizessem parte daquilo que somos.
Certamente, trata-se de uma passagem dolorosa para as nossas existências, mas não necessariamente negativa. Muito dependerá de nós, de quanto estivermos disponíveis para conservar a experiência do limite, para interrogá-la e para nos deixarmos instruir por ela.
Na medida em que formos capazes de fazer isso, perceberemos que estamos passando por uma daquelas reviravoltas dramáticas da história humana, nas quais se perfila a tarefa e a possibilidade de construir uma nova arquitetura do mundo e das relações humanas. O modo de vida ao qual estávamos acostumados, a ponto de chamá-lo de normalidade, junto com os seus muitos jugos, não será mais possível: cabe a nós escolher se queremos correr o risco da aventura de estar entre os escritores de uma nova constituição da história humana em nível pessoal e social.
Certamente, o empreendimento não é fácil, mas a vida no seu conjunto não o é; até porque a nostálgica tentação de adaptação do velho ordenamento às eventuais condições de um mundo pós-vírus é poderosa. Diante dessa tarefa, que parece exceder a singularidade das nossas histórias pessoais e comunitárias, a fé pode haurir da sabedoria bíblica para iniciar um processo de discernimento sobre a vida que desejamos – para todos e não só para nós – como investimento no futuro do qual não podemos dispor, mas que não ganhará forma sem o exercício apaixonado dos nossos afetos e das nossas habilidades.
Entre tantas, duas imagens bíblicas imediatamente vieram à minha mente: a primeira do livro do Êxodo, a segunda, do profeta Jeremias. Comecemos com o Êxodo, com a murmuração de Israel que, pela primeira vez, faz uma dura experiência do limite em regime de liberdade (Ex 15-17). O texto sublinha o fato de que Israel se encontra apenas a três dias do evento em que se enraíza a sua origem como povo, a da passagem do Mar Vermelho e da libertação do Egito.
Quando nos encontramos fora do costumeiro, o aguilhão do limite não tarda em se anunciar, jogando em um desconforto que gera nostalgia por uma condição de insuportável subjugação. “Era melhor termos sido mortos pela mão do Senhor na terra do Egito – murmura Israel de forma acusatória –, onde estávamos sentados junto à panela de carne, comendo pão com fartura. Vocês nos trouxeram a este deserto para fazer toda esta multidão morrer de fome!” (Ex 16,3; trad. Bíblia Pastoral).
Nesse arrependimento de Israel, espreita a pacata e paradoxal beleza de uma condição de vida servil em que, porém, é possível se encher de coisas sem correr o risco de viver. Estar cheio, sem aparentes faltas, poder ter tudo à mão, comodamente e sem esforço: é assim que Israel se lembra da dureza insuportável do tempo no Egito, assim que é confrontado com a prova do limite.
Repentinamente, o regime de escravidão parece ser não apenas preferível, mas até desejável diante do limite que se sente no caminho de libertação.
Nós também não nos alimentamos dessa enganosa nostalgia todas as vezes em que ansiamos por um retorno à normalidade, à dureza sutil de uma subserviência que nos enche de coisas a fim de embotar em nós todo desejo de liberdade, de vida diferente daquela imposta por um ordenamento impiedoso e injusto?
A espasmódica expectativa de poder retomar o curso normal das coisas, que parece ser o imperativo que circula nas nossas sociedades ocidentais contemporâneas nestes tempos de pandemia, se assemelha muito a essa nostalgia de Israel – uma forma de tentar neutralizar o êxodo e a sua promessa, que exige a travessia do deserto do limite e o exercício de uma inédita responsabilidade que se chama liberdade.
De fato, na experiência do limite, anuncia-se uma liberdade a ser conquistada e não oferecida no mercado já pré-embalada, que parece ser imediatamente (depois de apenas três dias) muito cara para ser realmente desejada. No desconforto que Israel sente diante das primeiras experiências do limite, aninha-se a verdade incômoda da liberdade, exigente demais para ser assumida, e, assim, prefere-se derrubá-la por ser um jugo imposto por alguns líderes idealistas e por um Deus sonhador – sem ser realmente desejada pelo próprio povo.
Na verdade, Deus não se descompõe demais diante dessa obtusidade de Israel, que não consegue compreender o que circula no limite que agora parece ser totalmente insuportável. Certamente, Deus provê para que Israel não sucumba à sua relutância em assumir o limite, mas deixa Israel exatamente no deserto do próprio limite – equipando-o para que ele possa ser atravessado.
A Israel não se concede nenhum cômodo retorno à terra do Egito, repentinamente cobiçada como a pátria mais própria do povo; mas ele também não é magicamente conduzido em um piscar de olhos para a terra prometida. Antes, Israel é deixado por muito tempo no cadinho do limite, vagando no seu deserto, porque é assim que se forja um espírito de povo capaz do risco da liberdade e da promessa.
A segunda imagem bíblica vem, como eu dizia, do livro do profeta Jeremias (Jr 29-32). São capítulos marcados por uma sequência ilógica na sua redação final, em um pêndulo entre uma condição de exílio e a imediata iminência da queda de Jerusalém, que serve de prelúdio para ela. O exílio significa ter perdido a terra como morada familiar, como lugar dos hábitos que facilitam a vida, ligando-a às gerações que nos precederam: significa se sentir estranho, estrangeiro, fora de lugar (antes ainda que sem um lugar próprio).
Pois bem, Jeremias escreve a quem vive e sofre assim que essa condição de estranhamento, de perda do familiar, deve ser habitada e vivida exatamente como vida e não como uma suspensão que a tornaria impossível (cf. Jr 29,1-7).
Estar fora de lugar, perder as referências habituais é uma condição a ser habitada com plenitude, porque é o único tempo que nos é dado. Um pouco mais adiante, em uma espécie de flashback narrativo, encontramos o profeta aprisionado, trancado no lado mais obscuro do limite, enquanto Jerusalém está capitulando perante as potências do mundo. E é nessa condição que o profeta arrisca a afirmação fulgurante: “Nesta terra ainda se comprarão casas, campos e vinhedos” (Jr 32,15). Um investimento despropositado em algo que não tem mais valor algum. Uma afirmação de futuro na convulsão do presente, que afirma o seu permanente significado como sentido no qual se deve investir o desejo da liberdade.
Há uma página de “Resistência e submissão” em que Bonhoeffer lê a devastadora experiência do limite do seu tempo no horizonte daquela de Jeremias:
“Para muitas pessoas, a impossibilidade de planejar o futuro à qual somos forçados as obriga a viver somente no instante presente, de forma resignada ou irresponsável. Outros, poucos para falar a verdade, sonham com o futuro de tempos melhores que virão tentando esquecer o momento presente.
“Achamos ambas as atitudes impossíveis para nós; para o cristão resta apenas o caminho estreito, tão difícil de encontrar, de viver todos os dias como se fosse o último, vivendo, porém, na fé e na responsabilidade – como se nos fosse dado um futuro radiante. Ainda se comprarão casas, campos e vinhas – diz Jeremias pouco antes da destruição da cidade santa.
“Trata-se de um sinal que vem de Deus e da promessa de um novo início e de um futuro radiante, exatamente quando tudo parece escuro e obscuro. Pensar e agir em favor das gerações vindouras, estando prontos, porém, para ir embora todos os dias, sem medo ou ansiedade.”
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O limite e a fé. Artigo de Marcello Neri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU