25 Novembro 2020
"A a segurança da observância moralista, em relação ao risco da liberdade e do amor cristão, que é doado por uma epifania e é acolhida no frescor da confiança e da existência transformada", escreve Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 22-11-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo o cardeal, "Paul Claudel estava certo: "Felizmente, existe Jesus Cristo que nos libertou da moral".
E Ravasi conclui: "Não é à toa que Paulo afirma que as obras da lei não produzem a fé, mas é a fé que gera as obras justas".
"Você terá de volta Onésimo não mais como escravo, mas como um irmão muito amado, para mim e ainda mais para você, tanto como homem como irmão no Senhor. São algumas linhas - tiradas dos versos 15-16 para ser mais exato - da última nota que São Paulo, agora "idoso e na prisão" (v. 9), dirige a um tal Filemon, um amigo rico e generoso, colaborador no anúncio do Evangelho de Cristo, em cuja casa se reuniu uma comunidade de cristãos, mesmo que a localização seja desconhecida (v. 1-2). O apóstolo pede-lhe um favor um tanto surpreendente.
Durante sua prisão - talvez seja durante a prisão domiciliar em Roma enquanto aguarda o processo final na suprema cassação imperial - Paulo conheceu e "gerou" na fé um escravo chamado Onésimo (v. 10-11). Pois bem, ele havia fugido da casa de Filemon: de acordo com a lei romana, ele deveria ser devolvido ao senhor que poderia decidir seu destino como quisesse, até mesmo condenando-o à morte.
O apóstolo faz um pedido que ilumina inequivocamente a transformação que o cristianismo estava promovendo na sociedade pagã. “Caro Filemon - diz Paulo na prática - você deve receber Onésimo de volta não apenas não se vingando, mas nem mesmo colocando-o de volta como escravo, mas deve abraçá-lo como um irmão muito amado.” Assim ele é, continua o Apóstolo, não apenas porque é um homem como você e eu, mas acima de tudo porque ele agora é um cristão e, portanto, "irmão no Senhor". Anos antes, de fato, Paulo havia escrito aos Gálatas que "já não há servo nem livre, mas todos são um em Cristo Jesus" (3,28). Naquela perspectiva, o escravo, que se tornou irmão, é como se fosse um dom divino oferecido a Filemon, seu antigo senhor, e Paulo também fez um jogo de palavras com o nome Onésimo, que em grego significa "útil": "ele, um dia, foi inútil para você [fugindo e rebelando-se], agora é útil para você e para mim" (v. 11).
Aliás, na Epístola também é acrescentado um toque de ironia quando o Apóstolo observa: "Se te deve alguma coisa, põe isso à minha conta. Eu, Paulo de minha própria mão o escrevi; eu o pagarei, para te não dizer que ainda mesmo a ti próprio a mim deves", pela conversão à fé (v. 18-19). As classes agora estão sendo demolidas, porque “todos nós fomos batizados por um só Espírito, em um só corpo, judeus ou gregos, escravos ou livres” (1Cor 12,13). E os senhores - como escreveu aos efésios - devem “fazer o mesmo com eles, deixando as ameaças, sabendo que o Senhor, deles e vosso, está no céu e para com ele não há acepção de pessoa” (6,9). São Paulo, portanto, sai de cena com essa nota encantadora, um sinal de amor, liberdade e novidade cristã. Nas linhas finais, há um vislumbre de esperança no futuro: "E juntamente prepara-me também pousada, porque espero que pelas vossas orações vos hei de ser concedido" (v. 22).
Suspeita-se que esse sonho não se concretizou antes que a espada cortasse a cabeça do Apóstolo, sob o imperador Nero. Deixamos um espaço tão amplo para esse escrito paulino porque sabemos que não poucos de nossos leitores poderiam reagir rebatendo: “Filemon, quem era este homem?” E isso é tão verdade que o editor do texto do qual agora vamos dizer algo, em vez de adotar a versão do título original francês explícito A Philémon. Refléxion sur la liberté crétienne, ele optou por um anódino No limiar da consciência. O autor, o dominicano parisiense Adrien Candiard, nascido em 1982, engajado no diálogo islâmico-cristão no Cairo, acertadamente aponta que “das muitas cartas paulinas inscritas no Cânon do Novo Testamento, os próprios católicos conhecem um número mínimo de trechos, muito densos, um pouco áridos, com um estilo complexo e conciso”.
No entanto, dos 5.621 versículos do Novo Testamento, 2003 são ocupados pelo corpus das treze cartas do apóstolo. Na verdade, há tempo os estudiosos, a partir do século XVIII (até o filósofo Schleiermacher tentou), têm se orientado a traçar uma linha de demarcação entre as cartas claramente atribuídas a Paulo (e entre estas, os dois extremos são a catedral teológica da Carta ao Romanos com seus 432 versos, e a nota a Filemon com os seus 25 versos) e os escritos deuteropaulinos, a serem conectados à própria evolução do seu pensamento através da elaboração dos discípulos (entre eles, por exemplo, aquelas aos Efésios e aos Colossenses). Esperando, portanto, que se retorne à leitura do epistolário paulino integral - que foi uma das pedras angulares não só da teologia cristã, mas também da própria civilização ocidental (como não citar Lutero e a Reforma Protestante, orgulhosamente ancorada na doutrina do Apóstolo?) - vamos também dar uma olhada à obra de Candiard, nascida de algumas leituras paulinas “com um pequeno grupo de jovens cristãos francófonos do Cairo”. Percebemos essa matriz devido a dois sinais.
De um lado, uma certa repetitividade e discursividade, com alguns esboços de retórica eclesial e com uma linguagem em sintonia com a sensibilidade de jovens cristãos convictos. Por outro lado, há o esforço de adotar um estlo "juvenilista", aqui e ali salpicado de expressões animadas como aquelas prontamente propostas na orelha ou na contracapa: "Os contos do farmacêutico não têm muito a ver com um grande amor ... O amor à primeira vista transforma-nos mais profundamente do que a leitura do Código Penal ... Não tenho nada contra os contadores, mas a graça de Deus não cabe, por definição, numa tabela de Excel”.
A substância do texto, porém, tem em filigrana o coração do pensamento de Paulo, aliás, sua própria experiência vital e interior, a partir do choque na estrada para Damasco. Certamente, na raiz está o tema da libertação do escravo Onésimo, mas aos olhos do Apóstolo ele floresce no céu de uma liberdade muito mais radical que constituirá a estrutura fundadora de sua teologia. Ao se opor à mera práxis moral como instrumento autossalvífico e libertador, ele introduz a irrupção da graça divina que precede e excede a própria busca humana. A citação de Isaías cara a Paulo é formidável: "O Senhor diz: Fui achado por aqueles que não me procuravam; revelei-me àqueles que não perguntavam por mim" (Rm 10,20).
Isso deveria ser levado em consideração por aqueles fiéis que “preferem ser escravos que recebem ordens e são punidos, em vez de amigos que são olhados nos olhos”. É a segurança da observância moralista, em relação ao risco da liberdade e do amor cristão, que é doado por uma epifania e é acolhida no frescor da confiança e da existência transformada. Paul Claudel estava, portanto, certo, citado por Candiard: "Felizmente, existe Jesus Cristo que nos libertou da moral". Não é à toa que Paulo afirma que as obras da lei não produzem a fé, mas é a fé que gera as obras justas. Interessante, sempre nesta linha, é a ampla reflexão sobre a castidade, despojada dos pruridos sexuais, bem como uma sugestiva releitura da famosa cena evangélica de Marta e Maria, sobre "estar na cozinha ou na sala".
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O conceito de liberdade para o Apóstolo dos Gentios. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU