20 Outubro 2020
“Há alguma maneira de destacar as contribuições de algumas dessas mulheres [que trabalham no Vaticano] que não envolva ser pega em uma novela erótica?”, escreve John L. Allen Jr., em artigo publicado por Crux, 18-10-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Se você quer vender uma história de escândalo, não há como não ter uma femme fatale no centro de tudo. Você deve pensar que colocar isso no Vaticano seria problemático, historicamente percebido com um domínio pleno de homens, ainda assim alguns personagens femininos nunca parecem estar em falta sempre que um novo colapso irrompe.
O que conduziu ao segundo Vatileaks, em 2015-2016, pelo menos em termos de interesse midiático, foi a proeminência de Francesca Immacolata Chaouqui, uma leiga italiana que trabalhava como consultora para uma comissão de estudos da Reforma do Vaticano, e quem foi acusada de vazar documentos confidenciais para jornalistas com um monsenhor espanhol, que chefiava o grupo.
O fato é que Chaouqui era jovem, atrativa e franca, com um pouco de complexo de mártir, o que faz da história irresistível. Ainda, por mais que ela negasse qualquer relação romântica com o monsenhor Lucio Ángel Vallejo Balda, o responsável da comissão, a maioria da imprensa italiana não parava de especular sobre isso, especialmente quando fotos de Chaouqui e seu marido circulavam.
Seguindo a eterna lógica de procurar a femme, um novo escândalo em torno do cardeal italiano Angelo Becciu tem agora sua própria protagonista feminina: Cecilia Marogna, 39 anos, leiga italiana, presa em Milão aguardando possível extradição para o Vaticano para enfrentar um julgamento penal.
Papa Francisco demitiu Becciu do seu posto de chefe da Congregação para a Causa dos Santos em 24 de setembro, assim como de todos os seus direitos como cardeal. O pontífice pediu a Becciu para que renunciasse depois de ter sido ligado a uma série de possíveis irregularidades financeiras, incluindo a compra do antigo armazém da Harrod em Londres, por 225 milhões de dólares.
De acordo com jornalistas italianos, os promotores do Vaticano emitiram um pedido de extradição para Marogna com base nas acusações de que ela recebeu 500 mil euros da Secretaria de Estado quando Becciu era o sostituto, ou o substituto, do chefe da pasta.
Ela disse que o dinheiro era de trabalhos legítimos que exercia como consultora internacional de segurança, sugerindo que ela assessorava o Vaticano sobre possíveis riscos a funcionários diplomatas e missionários que servem em locais perigosos ao redor do mundo. Os relatos da mídia, no entanto, estão cheios de implicações sobre Marogna usar fundos para financiar compras luxuosas e gastar com férias caríssimas, algumas na companhia de Becciu.
Até que ponto Marogna está na moda como celebridade cultural no momento? A edição italiana da Vanity Fair recentemente a apelidou de “Lady Vaticano” e, para completar, como a dama de Becciu.
Na sexta-feira, soube-se que Marogna, natural da ilha italiana da Sardenha, como Becciu, recusou-se a dar consentimento para sua extradição para ser julgada pelo Vaticano. Isso significa que um juiz italiano terá de decidir se as provas apoiam o pedido, uma decisão que, em teoria, poderia ser apelada até o equivalente italiano da Suprema Corte.
De sua parte, Becciu negou que houvesse algo desagradável em seu relacionamento com Marogna, dizendo em uma declaração em 7 de outubro que seus contatos com ela consideravam “questões exclusivamente institucionais”.
Enquanto esperamos o próximo sapato cair, aqui estão três pensamentos sobre a saga de Marogna.
Primeiro, não espere que a história acabe tão cedo. Becciu e sua família já anunciaram planos de abrir pelo menos duas ações judiciais por difamação de personagem relacionadas à cobertura da mídia das acusações que ele enfrenta, e não há razão para pensar que Marogna não possa entrar com suas próprias contestações judiciais.
A Itália torna isso extremamente fácil. De acordo com um estudo de 2016 feito pelo grupo de vigilância Ossigeno em 2016, a cada ano mais de 6.800 reclamações são feitas nos tribunais italianos por difamação, a grande maioria levando a possíveis penalidades criminais e civis. Em média, esses casos exigem dois anos e meio para que uma investigação policial seja concluída e seis anos para chegar apenas à primeira instância de julgamento.
A grande maioria desses 6.800 casos não sobrevive à primeira revisão, e apenas 8% terminam em um julgamento favorável à parte da acusação – em 2014-15, havia 5.902 acusações criminais de difamação no sistema italiano e apenas 475 condenações, a maioria das quais resultou em uma multa ou menos de um ano de prisão.
Ainda assim, o momento significa que o drama de Becciu e Marogna pode estar dentro e fora das manchetes por anos.
Em segundo lugar, os holofotes sobre Marogna são lembretes, se quisermos aceitá-lo, que apesar de toda a conversa sobre o Vaticano como um bastião do privilégio masculino, a realidade é que muitas mulheres entram e saem de seus postos. Algumas trabalham dentro do Vaticano como funcionárias, outras servem em várias comissões e academias, outras são conselheiras e consultoras e, ainda outras, como Marogna, são empresárias que têm negócios com um departamento do Vaticano ou outro.
Não se pode deixar de imaginar se há alguma maneira de destacar as contribuições de algumas dessas mulheres que não envolva ser pega em uma novela erótica? Eu não fiz o dever de casa para provar isso, mas as duas mulheres ligadas ao Vaticano que receberam a maior cobertura da imprensa na última década podem ser Chaouqui e Marogna, o que é um pensamento deprimente.
Na verdade, os destinos de Chaouqui e Marogna podem oferecer um conto de alerta para outras mulheres que estão considerando aceitar uma designação em nome de algum prelado do Vaticano: ‘Tenha muito cuidado, ou você também pode acabar como a próxima Mata Hari das páginas de fofocas italianas’.
Por terceiro, além da especulação de fofocas, a dimensão séria da história de Marogna é significativa para a Reforma do Vaticano, posta em curso para o papa Francisco.
Um das duas coisas acontecerá: tornar-se-á em mais um exemplo do Vaticano daquilo que os italianos chamam de giallo, o que significa um mistério não resolvido – a palavra literalmente significa “amarelo”, uma referência ao fato de que antigamente histórias de mistérios eram impressas em jornais italianos de folha amarela –, ou o Vaticano abrirá as acusações contra Becciu e Marogna, iniciando por formalizar as acusações, e ser transparente tanto ao longo das investigações quanto à realização dos julgamentos.
Até agora, os sinais não são encorajadores. Uma declaração do Vaticano anunciando a demissão de Becciu foi uma frase longa, e esse é o último comentário oficial. Não é bom dizer que o critério é proteger seu bom nome, já que desde o momento em que a frase apareceu, Becciu tem sido um ímã para a má imprensa.
Ainda assim, o Papa Francisco repetidamente se compromete com a transparência, e o presente drama fornece um caso de teste óbvio.
Se a história da “Dama do Vaticano” for eventualmente impressa em amarelo, em outras palavras, isso sugerirá um veredicto sobre a reforma do papa; se nenhum de nós tiver que recorrer às páginas de mistério para obter a história completa, ela sustentará outro.
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Reflexões sobre a novela da última 'femme fatale' do Vaticano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU