24 Agosto 2020
Especialistas do mundo todo reuniram-se via internet, na sexta-feira, 21 de agosto, para falar sobre o escopo do tráfico de seres humanos na América Latina e partilhar as melhores práticas para deter a escravidão moderna, que atualmente afeta cerca de 45 milhões de pessoas, dos EUA à Tailândia.
A reportagem é de Inés San Martín, publicada por Crux, 22-08-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Ilva Myriam Hoyos Castañeda, advogada colombiana, disse que há “muitas pandemias”, não só a covid-19, porém a sociedade não responde da mesma forma a cada uma delas.
“Não estamos conseguindo reconhecer estas outras pandemias, ou não estamos querendo reagir a elas como temos feito ao vírus”, disse, citando o tráfico de seres humanos, tópico que, segundo ela, permanece “distante, desconhecido e alheio” a muitos de nós, mas que, na verdade, está perto de todo mundo. Esse problema não discrimina com base na cor, sexo ou nacionalidade. É universal e afeta a família humana inteira.
A principal causa do tráfico não são os traficantes, mas o “egoísmo sem escrúpulos e a indiferença hipócrita dos habitantes do mundo, que desfrutam os benefícios e serviços desta corrente de exploração da dignidade humana”, Hoyos falou.
De acordo com a especialista, o egoísmo é a “pandemia de todas as pandemias”, e as leis que declaram o tráfico humano como crime contra a humanidade, ou as diretrizes pastorais lançadas pelo Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, não bastam para combatê-lo, porque existe uma “cumplicidade confortável e silenciosa, mascarando não apenas o nosso rosto, mas também a nossa consciência”.
Uma mudança paradigmática, bem como uma conversão pessoal, é necessária para pôr um fim à compra e venda de seres humanos, completou Hoyos.
Falando do papel desempenhado pelos católicos, a palestrante disse que a Igreja não é uma especialista em tráfico humano, nem uma força policial que pode intervir quando pessoas estão sendo tratadas como escravos. No entanto, a Igreja é chamada a ser “uma esperança e anunciar o Reino de Deus”, e é legítimo que os católicos se levantem e digam “basta!” para que não mais nos escondamos “por trás das máscaras nem continuamos cegos diante do rosto ferido das vítimas dos traficantes de escravos”.
Estas palavras foram proferidas durante um seminário on-line organizado pelo CEPROME, centro de proteção infantil da Universidade Católica do México, juntamente com a Comissão para a Salvaguarda, da conferência episcopal dos países latino-americanos e de várias congregações religiosas que atuam no combate ao tráfico humano.
Os organizadores e organizadoras disseram que a esperança era responder à questão posta pelo Papa Francisco na exortação apostólica de 2013, intitulada Evangelii Gaudium: “Onde está o teu irmão escravo? Onde está o irmão que estás matando cada dia na pequena fábrica clandestina, na rede da prostituição, nas crianças usadas para a mendicidade, naquele que tem de trabalhar às escondidas porque não foi regularizado?”
“Escravidão moderna” e “tráfico de seres humanos” são termos geralmente empregados para expressar um conjunto de subsetores do crime, que vão desde crianças forçadas à prostituição até o tráfico de órgãos. A luta da Igreja contra estas práticas é liderada pelas mulheres, fato evidenciado não só no número de mulheres ouvintes no evento on-line como também na escolha das palestrantes.
A Irmã Gabriella Bottani, missionária comboniana italiana, não hesitou em dizer que a escravidão e a prostituição, hoje, “têm um rosto feminino”, porque o número de mulheres e garotas vítimas é muito mais alto do que o número de homens.
Bottani falou que a sinodalidade é central para a luta contra o tráfico, pois “os modelos de cooperação inclusiva” são necessários para unir sobreviventes, membros das forças de segurança, religiosos, políticos, empresas e consumidores comuns que têm o poder de exigir mudança.
Verónica Toller, do Observatório da Vulnerabilidade, órgão ligado à Universidade Austral, na Argentina, apresentou números assustadores: 45 milhões de vítimas da escravidão, hoje, com cerca da metade sendo vítimas de exploração sexual, e a outra trabalhando em condições análogas à escravidão, incluindo lojas de costura para algumas das maiores marcas de roupas do continente.
Como setor ilegal, o tráfico humano atualmente gera 150 bilhões de dólares em receita e é o segundo setor mais lucrativo depois do tráfico de drogas.
Segundo Toller, professora e jornalista que já cobriu muitos destes crimes para os principais jornais argentinos, o tráfico humano é bastante difícil de ser levado à justiça comum, porque “não se trata de ir atrás de um ladrão, de um assassino, mas de toda uma rede de pessoas que protegem umas às outras”.
“As vítimas, na maioria mulheres e crianças, são cooptadas e transportadas para os destinos finais”, acrescentou Toller, antes de se aprofundar no processo de “iniciação”: “Elas são estupradas, mantidas sem alimentos ou água, sofrem torturas, ficam enjauladas, são cortadas com vidros, queimadas com cigarros, e o ‘batismo’ é um estupro coletivo. Certa vez conversei com uma mulher que, em seu ‘batismo’, foi estuprada por quarenta homens em uma única noite”.
Três de cada 10 mulheres forçadas à prostituição, segundo a palestrante, são menores de idade.
Toller observou que a covid-19 piorou a situação, tornando os traficantes ainda mais gananciosos porque aumentou o número de clientes. Só na Argentina, de acordo com ela, houve mais de cinco mil novos casos de menores explorados em pornografia on-line para dar conta do crescimento nas buscas.
Entre outras coisas, ela sugere a penalização do cliente da prostituição, pois “sem clientes, não há escravidão”.
“Quando ouvimos a respeito do tráfico de seres humanos, fica impossível nos manter de braços cruzados”, diz Eduardo Verástegui, astro mexicano de cinema e produtor que recentemente filmou “Sound of Freedom”, com Jim Caviezel, famoso pela atuação no filme “A paixão de Cristo”, de Mel Gibson.
O filme, que ainda está para ser lançado, baseia-se na vida de Timothy Balard, ex-agente especial do Departamento de Segurança Nacional e fundador da Operação Underground Railroad, que regata menores vítimas do tráfico humano.
“Não temos informações suficientes para que as pessoas realmente se envolvam”, disse Verástegui. “Muitos não percebem o quanto é real o problema da escravidão moderna”.
O ator se encontrou com Balard anos atrás, o qual lhe contou que o mais triste não é o que acontece com os milhões de menores explorados, mas os muitos que sabem e “não fazem nada a respeito”.
Esta conversa levou o mexicano a querer fazer um filme que retratasse a realidade do tráfico humano, contando uma história convincente que, talvez, venha a inspirar outros à ação.
“Quando ouvimos a respeito do tráfico humano, geralmente pensamos que é algo longe de nós, na Tailândia ou no Camboja”, explicou. “Precisamos atuar para que todos se interessem pelo assunto, de forma que possamos realmente dar um fim à escravidão. Se não fizermos algo hoje, mais cedo ou mais tarde todos iremos sofrer as suas consequências. Estamos falando de milhões de menores que têm quatro, cinco, seis anos de idade, crianças que estão sendo exploradas sexualmente”.
“E se for um filho seu? E se for a sua sobrinha?”, perguntou Verástegui.
O Cardeal Oscar Rodríguez Maradiaga, de Honduras e membro do Conselho de Cardeais que assessora o papa, concorda: “Precisamos criar esta consciência na América Latina em relação a esse problema. Há um número enorme de pessoas que dizem: ‘Não vamos falar de escravidão, eu não gosto desse assunto’, mas vendo o escopo do problema, ignorá-lo não é uma opção”.
“É bastante confortável ter o trabalho feito por escravos, com tantos setores que parecem éticos, mas que não o são”, disse o religioso. “Não podemos continuar assim. Temos de denunciar estas realidades e mudá-las”.
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Liderada por mulheres, a América Latina se mobiliza contra a escravidão moderna - Instituto Humanitas Unisinos - IHU