"Destinado ao público em geral, a escrita do volume é caracterizada por uma linguagem direta e clara, sem apresentar a complexidade das análises metodológicas acadêmicas, mas marcada pela forte componente divulgativa da história do Missionários Vicentinos no Brasil, e, como tal, servindo de introdução para todos aqueles que se interessam pela história das congregações religiosas no Brasil", escreve Luiz Fernando Medeiros Rodrigues, SJ, professor do PPG-História Unisinos e Curador do Memorial Jesuíta-Unisinos, em resenha da obra Congregação da Missão: 200 anos no Brasil, de Eli Chaves dos Santos [1] (Congregação da Missão: 200 anos no Brasil. Rio de Janeiro: Prov. Bras. da Congregação da Missão, 2020, 208p.).
Luiz Fernando Medeiros Rodrigues é professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), graduado em Filosofia Eclesiástica pela Faculdade de Filosofia Cristo Rei (1982), em Estudos Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1980), em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1981), em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1981) e em Teologia pela Pontificia Università Gregoriana (1986). É mestre em História Eclesiástica pela Pontificia Università Gregoriana (1991), em Teologia Fundamental pela Pontificia Università Gregoriana (1987). Também é doutor em História Eclesiástica pela Pontificia Università Gregoriana (2006) e possui Pós-doutorado na Universidade do Porto. Integra o Grupo de Pesquisa-CNPq Jesuítas nas Américas.
Para celebrar os 200 anos da chegada dos primeiros lazaristas portugueses (“Missionários Vicentinos”) ao Brasil, a Província Brasileira da Congregação da Missão (PBCM) faz memória de sua história com a publicação do volume “Congregação da Missão, 200 anos no Brasil”.
O livro, de autoria do padre lazarista Eli Chaves dos Santos, C.M. [1], e publicado em 2020 pela PBCM, quer “Recordar e celebrar o que foi para mudar ou revitalizar o que é, em vista de uma Igreja ‘em saída missionária em direção às periferias’” (p. 13). Este resulta de um minucioso trabalho de pesquisa nos arquivos da congregação, com consulta, muitas vezes, de documentos originais, relatórios, cartas e entrevistas, em que o autor espacializa e sintetiza uma história, que evidencia rigor em todo o trabalho realizado.
Destinado ao público em geral, a escrita do volume é caracterizada por uma linguagem direta e clara, sem apresentar a complexidade das análises metodológicas acadêmicas, mas marcada pela forte componente divulgativa da história do Missionários Vicentinos no Brasil, e, como tal, servindo de introdução para todos aqueles que se interessam pela história das congregações religiosas no Brasil.
Capa do livro (Foto: Divulgação)
Segmentada em seis breves capítulos, intercalados por “álbuns”, o autor aborda no primeiro capítulo a “Chegada dos lazaristas ao Brasil”, transportando o leitor para o ano de 1819, quando os padres lazaristas Leandro Rebelo Peixoto e Castro e Antônio Ferreira Viçoso desembarcaram no Rio de Janeiro, para as missões em Mato Grosso. Impossibilitados de estabelecerem missões em Mato Grosso, sob proposta de D. João VI, receberam a doação da Ermida de Nossa Senhora Mãe dos Homens, situada na Serra do Caraça (hoje Catas Altas, MG). Ali, fundaram o Colégio de Caraça, que viria a ser o berço e o pilar de apoio para o desenvolvimento da atuação apostólica da congregação no Brasil, centrada nas missões populares, na formação do clero e na educação da juventude.
O capítulo seguinte é dedicado aos desafios iniciais de fixação dos lazaristas em Minas Gerais. À chegada da congregação, o Brasil passava por importantes mudanças: o desgaste do sistema colonial levaria à independência (1822) e à formação e consolidação do novo império em clima de instabilidade social, política e econômica. A presença institucional da Igreja, ainda dependente do Estado, apresentava-se bastante frágil: apenas sete bispados, até inícios do século XIX. O clero, precariamente formado, continuava a depender financeiramente das côngruas estatais. Bispos e padres eram praticamente funcionários públicos. Predominava uma religiosidade popular, marcada por um forte sincretismo.
A relação entre a Igreja e o Estado era conflitiva, influenciada pelo regalismo e pelo liberalismo. Neste ambiente, os lazaristas dedicaram-se à ação missionária no interior de Minas Gerais, especialmente nos seminários, para a formação de missionários. Em 1827, os lazaristas passaram a administrar o Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo, Minas Gerais. Poucos anos depois, em 1834, a congregação recebeu uma grande doação de terras em Campo Belo do Sertão da Farinha Podre (Campina Verde, MG). Ali, construíram uma igreja e fundaram um colégio, que se tornaria o ponto de irradiação pastoral e educacional em todo o triângulo Mineiro.
Contracapa do Livro (Foto: Divulgação)
Mas a expansão do campo de atuação da missão vicentina ocorreu em meio a dificuldades e muitos desafios: precariedade de estradas e meios de transporte, epidemias, escassez financeira, condições de vida ao limite da sobrevivência, além das tensões resultantes da convivência dos missionários com o regime político liberal e regalista. Mesmo contando com o apoio imperial, setores da sociedade brasileira, incomodados com a presença dos missionários no Caraça, teceram críticas e denúncias na imprensa, taxando os lazaristas de “jesuítas disfarçados”, ou de “santões que entram em Minas com os pés de lã e, na ânsia de dinheiro, “saem como gaviões a prearem os arraiais e vilas, a título de missões” (p. 33). Talvez, por toda essa pressão contrária, os lazaristas, em 1834, foram forçados a fechar o noviciado em Caraça.
Outro problema a que a congregação teve que fazer frente foi o da dispersão e a sobrecarga dos missionários, fruto da estreita relação com a administração imperial que instava à congregação a assunção de diversas frentes de apostolado. Com o aumento das dificuldades tanto ao interno da congregação, quanto nas relações contrárias aos interesses das elites liberais brasileiras, os lazaristas, em 1838, romperam com o Governo Geral da Congregação em Paris, criando a Congregação da Missão Brasileira.
A situação jurídica da congregação no Brasil também foi elemento que contribuiu para aumentar ainda mais as tensões internas e externas. Todavia, apesar da dispersão e da redução numérica de missionários, ainda em 1838, o ministro Bernardo Pereira de Vasconcelos confiou aos lazaristas a vice-reitoria do Colégio D. Pedro II, no Rio de Janeiro, seguido da fundação do Colégio Assunção, em Ouro Preto, a pedido do presidente da Província de Minas Gerais. Por outro lado, a difícil situação financeira do Caraça e a ameaça da revolução iniciada em Santa Luzia (MG) abalou a missão vicentina. Por isso, em agosto de 1842, o colégio foi transferido para Campo Belo, deixando o Caraça praticamente abandonado.
Ao longo do texto, aprensentamos algumas fotos que ilustram a obra
Mais tarde, em 1854, no Caraça se instalaria o Seminário Maior do bispo lazarista de Mariana, que ali funcionaria até 1882. Depois de 20 anos da presença lazarista no Brasil, face à indisciplina interna, às insatisfações e à formação deficiente dos seminaristas, a situação da Congregação apresentava-se como crítica, ao ponto de, em 1845, permanecerem apenas 10 missionários. Esta foi a primeira grande crise.
A Missão Vicentina na segunda metade do século XIX é apresentada no terceiro capítulo. Em 1844, o novo superior geral conseguiu do imperador a autorização para reatar as relações com a casa-mãe de Paris, considerada pelo governo uma autoridade estrangeira. A consequência imediata foi o envio de reforços vindos de Paris que, em 1849, chegaram à Mariana.
De 1848 a 1900, a Província recebeu novos missionários estrangeiros, contando com 228 vicentinos, dos quais 100 franceses, 90 de várias outras nacionalidades e apenas 38 brasileiros. Deste total, 48 deixariam a missão brasileira. Com este incremento de pessoal e ampliação geográfica de campo apostólico, a sede provincial foi estabelecida no Rio de Janeiro, iniciando o período da “hegemonia francesa”. Desta maneira, a província foi fortemente influenciada pelas orientações do então superior geral, P. Jean-Baptiste Étienne (1843-1874), que passou aos anais da Congregação como o restaurador da disciplina, das regularidades às regras comuns e às constituições da Congregação da Missão.
Os missionários franceses, antes de virem para o Brasil, recebiam uma preparação missionária que os ajudava a integrar-se nos seus apostolados missionários. Caracterizavam-se pelo estilo de vida austero e por uma formação teológica e espiritual que refletia a fidelidade às disposições da Igreja. De consequência, a Província brasileira se alinhou à hierarquia católica, promovendo reformas segundo as diretivas de Pio IX, impulsionadas pelos “bispos reformadores”. As reformas propostas voltaram-se a um intenso processo de implantação das orientações tridentinas, de afirmação da ortodoxia católica, à reforma do clero, e o fortalecimento das instituições eclesiásticas e dos costumes morais cristãos. O objetivo deste processo de “romanização” era a promoção de uma maior aproximação com Roma, acentuado pela obediência ao Papa. Tratava-se da reforma que os historiadores costumam classificar como “reforma ultramontana”.
No período de 1849 a 1900, os lazaristas se concentraram na direção de seminários diocesanos. Em alguns seminários, a atuação dos vicentinos foi curta e com poucos êxitos; em outros, os resultados foram exitosos. Não faltaram, porém, muitas dificuldades e conflitos: problemas de saúde, difícil adaptação dos vicentinos estrangeiros, desconhecimento da língua portuguesa, conflitos com a hierarquia e o clero diocesano, oposições por motivos culturais, ideológicos e políticos.
No geral, a atuação dos vicentinos nos seminários diocesanos se desenvolveu a partir das orientações tridentinas: fortalecimento dos seminários e um programa de estudos filosófico-teológicos, com uma educação humanística, marcados pela ênfase da santidade do sacerdócio com pastor de almas a santificar. No regime de internato, a formação vicentina dos seminaristas caracterizou-se pelo rígido regime disciplinar, voltada para o culto e para a pregação, sem levar muito em conta a realidade cultural local e sem envolvimento nas questões seculares e políticas. A prática sacramental e moral eram as preocupações centrais neste processo de formação. A ênfase estava na dogmática, na ortodoxia católica e na obediência ao Papa, e na rejeição das teorias liberais e regalistas. Como resultado, a formação dos lazaristas definiu o papel do sacerdócio na Igreja e na sociedade como sendo o principal agente da evangelização.
A formação assim concebida pelos missionários franceses refletia o sistema existente em Paris, ancorado nos tradicionais valores e costumes do carisma vicentino. O resultado foi a diminuição das entradas de candidatos brasileiros, abrindo espaço para os candidatos enviados de Paris. Mas, com o empreendimento de novas iniciativas voltadas aos brasileiros, os vicentinos criaram estruturas mais estáveis, gerando um gradual aumento do número de ingressantes brasileiros na congregação.
As missões populares continuaram desde o Caraça até o Paraná, Espírito Santo, Bahia e Rio de Janeiro. Além da pregação das missões populares, os vicentinos colaboraram como capelães em hospitais onde atuavam as Filhas da Caridade. Estas missões eram relativamente curtas. Em um mês, os vicentinos catequizavam, com linguagem simples, mas direta, dando ênfase à conversão e à prática dos sacramentos. A catequese se caracterizava por ser moralizadora e doutrinal. Dom Viçoso, cujos arquivos vicentinos conservam cerca de 31 sermões, é exemplo desta prática de evangelização popular que propunha uma vivência sacramental e atos de piedade, mais ligados à paróquia e à figura do padre.
No aspecto social, as missões vicentinas deram mais atenção ao atendimento assistencial dos pobres e alguns serviços de alcance social, como construção e recuperação de cemitérios. Todavia, o caráter acentuadamente ultramontano desconsiderou uma percepção crítica das situações específicas de injustiças sócio-políticas, principalmente dos escravos, indígenas e camponeses, sem engajamento em ações de combate a estas situações.
Na educação, os vicentinos se restringiram aos colégios do Caraça e de Campo Belo. Quanto à obra educativa vicentina, o historiador Riolando Azzi [2] afirma que os padres da Missão tomaram o lugar dos jesuítas (expulsos do Brasil, em 1759), tanto na educação, quanto na formação do clero e na reforma da Igreja. Mas foi na formação do clero e na reforma tridentina e eclesiástica da Igreja brasileira que a colaboração lazarista foi de destaque.
A missão Vicentina, durante o período republicano, argumento do quarto capítulo do volume, adquire uma nova feição. No final do século XIX, o envio de missionários estrangeiros vicentinos para a Província Brasileira da Congregação da Missão diminuiu face ao florescimento de vocações brasileiras.
Os lazaristas poloneses chegam ao Brasil em 1903 para atender as comunidades de emigrantes poloneses no sul do país. Em 1923, é a vez dos lazaristas holandeses, que se empenharam nas novas frentes missionárias no Norte e Nordeste. Estes dois grupos logo constituíram-se em províncias autônomas (Congregação da Missão Província do Sul – 1969 – e Província de Fortaleza da Congregação da Missão – 1967).
Contudo, no período de 1890 a 1960, os lazaristas continuaram os seus trabalhos missionários com o mesmo espírito de seus antecessores, apesar da mudança política implantada pela República (1890) e das consequentes exigências da separação entre Igreja e Estado. Neste sentido, a atuação lazarista reafirmou o espírito tridentino da romanização, mantendo uma posição conservadora e apologética em oposição às ideias modernistas e ao “espírito laicista” do governo republicano, auxiliando a Igreja brasileira a recuperar o prestígio social e político do catolicismo. Daí a ênfase no controle dos santuários e na conservação da piedade popular católica, incentivando novas devoções.
Quando, a partir de 1930, a Igreja passou do conflito à colaboração com o Estado, aproximando-se mais dos problemas sociais e políticos, a Congregação da Missão continuou a atuar nos seminários diocesanos, seu principal apostolado. É nesta época que os lazaristas assumiram os seminários de Curitiba, S. Luís, Maranhão, Botucatu e Assis. Trabalharam na consolidação do Seminário Tridentino no Brasil. Programas pedagógicos e estruturas internas continuaram repetitivos e sem muita criatividade com relação aos períodos anteriores, sem muita atenção à realidade social, cultural e política. A filosofia aristotélica-tomista e a teologia escolástica dominavam a formação intelectual, embasada na metafísica dogmática. A formação, portanto, se desenvolvia dentro de uma orientação conservadora e apologética, em oposição ao liberalismo, ao comunismo e ao protestantismo. As ideias e práticas pastorais renovadoras, mesmo que com pequena aderência à realidade e à cultura popular, eram evitadas.
O descompasso deste processo formativo com a realidade brasileira começou a se mostrar evidente a partir das décadas de 1940-1950, colocando em xeque todo o processo formativo desenvolvido até então. Consequentemente, não faltaram tensões, questionamentos, insatisfações e conflitos da parte dos estudantes, de alguns formadores e bispos.
Após a 1a. Guerra Mundial, a Província de Paris deixou de enviar missionários para o Brasil. Foi no recrutamento vocacional e na organização da formação seminarística que os esforços dos lazaristas se concentraram. Nas primeiras décadas do século XX, vários seminaristas foram enviados para a França para estudar teologia em Dax. Note-se, porém, que no período de 1900 a 1959, mais de 30% deles deixaram a Congregação. A formação nos seminários não se desenvolveu de forma qualitativa e quantitativa como esperado. Em 1932, pregou-se a última missão popular a partir do Caraça. Apenas o centro missionário de Diamantina continuou ativo.
Face a esta situação de definhamento das missões populares, os lazaristas passaram a desenvolver as suas atividades pastorais nas paróquias. Paralelamente, a pastoral dos colégios gradativamente entrou em crise.
O período do Concílio Vaticano II, entre crises e mudanças, é o tema do capítulo quinto. A nova eclesiologia promulgada pelo Concílio expôs um processo histórico de crise e de desestruturação da eclesiologia tridentina, desencadeando no Brasil pós-64 um amplo movimento de renovação eclesial e teológica. Liderada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Igreja brasileira viveu um forte período de transformações e de modernização das estruturas eclesiais. A promoção do espírito de colegialidade e a reforma pastoral a partir da opção pelos pobres, com o surgimento das comunidades eclesiais de base, a reforma litúrgica, o espírito ecumênico e a teologia de libertação, provocaram mudanças no cenário eclesial brasileiro. O sistema de formação seminarístico foi inevitavelmente afetado.
Como não poderia deixar de ser, a onda de choque destas crises e mudanças eclesiais investiu fortemente sobre a vida e a missão da Província Brasileira da Congregação da Missão. Os lazaristas deixaram a direção de muitos dos seminários onde atuavam. Além das crises das obras tradicionais, a Congregação da Missão sofreu uma significativa redução de seus membros. Entre 1950 e 1967, 57,83% deixaram a Congregação. De 1967 a 1975, a Província não teve nenhuma nova emissão de votos perpétuos.
Em 1965, o superior geral enviou um visitador, P. Pierre Jamet, para avaliar a situação no Brasil. O resultado foi a renúncia, em 1967, do superior provincial, P. Demerval José Mont’Alvão, sucedido pelo P. José Paulo Sales. Mas coube ao novo superior provincial, P. José Elias Chaves, entre 1970 e 1979, enfrentar a crise. Durante este provincialado deu-se início a uma reorganização missionária e administrativa. A formação vicentina nos seminários diocesanos chegou ao seu término. E os seminários da própria Congregação, organizados e mantidos com uma linha teológica e pedagógica pré-conciliar, tiveram que mudar. Foram fechados os históricos seminários do Caraça e de Petrópolis, iniciando-se o de Aparecida, em 1969. O Seminário Interno passou a ser organizado de forma integrada à Filosofia e Teologia (1972-1986), com pequeno grupo de seminaristas. O Teologado voltou a Petrópolis (1971-1980).
Da mesma forma, o trabalho dos vicentinos na educação foi reorganizado, assumindo uma linha pedagógica segundo as propostas da Conferência de Medellín (1968).
As tradicionais missões populares foram substituídas por novas modalidades de pastoral: um grupo de vicentinos assumia uma região ou paróquia de periferia, por três ou quatro anos, com o objetivo de organizar comunidades, de formar lideranças leigas e de animar ou renovar os grupos pastorais.
Apesar desta mudança de rota na ação missionária, os vicentinos não conseguiram responder aos desafios pastorais pós-conciliares. A partir de 1980, com o número de religiosos em declínio, a Congregação desencadeou um processo de revisão de obras, não sem tensões internas e, até mesmo, equívocos. A busca pela atualização do carisma fundacional da Congregação foi a marca distintiva desse processo de renovação; cresceu a consciência da evangelização prioritária dos mais pobres. As paróquias foram revisadas segundo este critério fundamental. Muitas foram entregues aos bispos; novas, mais conforme a esta opção preferencial, foram sendo assumidas.
A presença dos padres e irmãos lazaristas nas paróquias urbanas e rurais de periferia evoluiu para períodos de longa duração, assumindo uma linha pastoral segundo a Teologia de Libertação. O Caraça também adequou-se a uma nova orientação, como centro de peregrinação, turismo e cultura. E, em 1995, tornou-se Reserva Particular do Patrimônio Natural. A pastoral vocacional, mesmo com índices baixos de adesão, continuou em Aparecida (que funcionou até 1976) com um novo programa de formação. O mesmo aconteceu com algumas escolas apostólicas vicentinas. A comunidade dos seminaristas de filosofia estabeleceu-se em Belo Horizonte (a partir de 1977).
No conjunto, as mudanças impostas pelas novas realidades eclesiais impulsionaram a Província Brasileira da Congregação da Missão a uma profunda revisão das suas atividades pastorais. Por outro lado, pari passu a todo este movimento estava o entrave de muitos padres e irmãos que não conseguiram entrar no processo de renovação conciliar e na sua consequente resistência contrária às mudanças que aconteciam. Tudo isso provocou desacertos e desencontros, decisões equivocadas, problemas de toda natureza e conflitos, situações humilhantes, injustiças e limitações pessoais e comunitárias ou conjunturais.
No entanto, os novos problemas socioculturais, as novas concepções filosófico-teológicas descortinaram novos horizontes pastorais, obrigando a Província da Congregação da Missão a repensar o seu modo de ser e o seu futuro na busca de uma nova práxis missionária. Na verdade, os lazaristas no Brasil tiveram dificuldade para compreender, discernir e assimilar a nova conjuntura eclesial pós-conciliar. Neste sentido, a crise pós-Vaticano II foi e continua, em certa medida, sendo um complexo processo de desconstrução de uma identidade histórica, que perdeu a sua razão de ser na sociedade e na Igreja em constante transformação.
Mas crise é sempre sinônimo de oportunidades. E a crise identitária da Província Brasileira da Congregação da Missão logo transformou-se numa busca de fidelidade criativa face às interpelações dos tempos atuais. Este é o tema tratado pelo autor no sexto e último capítulo do livro.
Os lazaristas iniciaram o novo milênio com apenas 91 missionários com votos perpétuos, com uma nova configuração missionária e desafiados a continuarem o processo de renovação e construção de uma nova identidade histórica. A ênfase do trabalho missionário recaiu sobre o serviço aos mais pobres. Os trabalhos em muitas paróquias foram encerrados para serem assumidas novas frentes missionárias nas periferias urbanas e rurais. Os lazaristas se abriram às missões ad gentes, enviando missionários para África (Moçambique) e para a Amazônia brasileira. Intensificou-se a colaboração com a Família Vicentina e com as Províncias de Curitiba e Fortaleza.
A formação do clero e os serviços em seminários foram reduzidos a trabalhos específicos e pontuais. Por outro lado, abriu-se a oportunidade da formação dos leigos através de retiros, cursos e serviços de assessoria, sobretudo junto aos conselhos e conferências vicentinas da Sociedade de São Vicente Paulo e junto aos Missionários Leigos Vicentinos.
Hoje, a Congregação conta com 58 missionários com votos perpétuos e dez missionários em formação, e está presente com várias obras no Rio de Janeiro, Caraça, Belo Horizonte e Tefé. Herdeira de uma tradição histórica a ser conservada na memória, os Padres e Irmãos da Província Brasileira têm consciência dos novos tempos com a complexidade dos desafios, problemas e oportunidades que vão ao encontro. Mas, sobretudo, têm consciência que são chamados à construção de uma nova história que exige constante esforço de discernimento apostólico e de acolhida das interpelações da realidade, especialmente dos mais desfavorecidos, para reatualizar e revitalizar a sua identidade missionária. Vive a busca de uma espiritualidade mobilizadora, que gera e integra a maturidade humana e a vida espiritual, a partir de uma práxis missionária de permanente estado de missão e caridade, tendo os pobres ao centro da ação pastoral, e promovendo uma evangelização integral e transformadora, principalmente nos espaços de maior carência econômica, social, cultural e pastoral.
O livro fecha-se com os flashes de alguns acontecimentos, observações e particularidades da história dos lazaristas no Brasil. Uma espécie de anedotário histórico da Congregação, repleto de simpáticas efemeridades, “flashes de memórias”, e com a galeria dos missionários, elencando alguns nomes dos lazaristas que ilustram a história da Província no Brasil.
O posfácio é de autoria do P. Geraldo Eustáquio Mól Santos, C.M. Com linguagem coloquial, faz um balanço bem atual da Província do Brasil da Congregação da Missão nos dias atuais. Acompanha uma pequena bibliografia sobre a história da Congregação da Missão no Brasil. Muito útil para todos aqueles que desejarem adentrar um pouco mais nesta rica e controvertida história dos missionários.
A leitura captura o leitor numa narrativa em que, página após página, os fatos descritos fazem aflorar emoções, sorrisos, reflexões, perguntas e informações que fazem da memória dos episódios descritos um trampolim para uma empreitada missionária ainda por ser completada e que não esconde incertezas e desafios a serem superados.
Destaque especial merece ser dado ao riquíssimo acervo fotográfico que ilustra o volume. As fotografias não são apenas ilustrativas, nem estão colocadas por acaso, como se poderia esperar de uma obra comemorativa; o acervo constitui uma outra forma de memória que pede uma narrativa acerca das pessoas e de suas atividades.
O volume é a prova de que, com a pena de um autor comprometido em buscar narrar e explicar uma memória histórica de uma congregação num período temporal bem definido, é possível fazer uma narrativa, ao mesmo tempo que acessível, historicamente crítica, além de oferecer uma leitura agradável.
Sem dúvida, é um volume que, guardadas as intenções originais (de comemorar e divulgar os 200 anos de presença missionária no Brasil), introduz o leitor na história de uma congregação religiosa missionária que contribuiu e continua a contribuir para a história das instituições religiosas no Brasil.
[1] Eli Chaves dos Santos, C.M. Nasceu a 04 de outubro de 1953. Entrou na Congregação (na Província do Rio de Janeiro) a 1º. de julho de 1972 e foi ordenado padre no dia 08 de dezembro de 1979. Exerceu os ministérios de Padre Formador, Pároco, Conselheiro Provincial e Visitador por três mandatos. Quando foi eleito, prestava serviços à Missão na Vice-Província de Moçambique, onde exercia também o ofício de Diretor Provincial das Filhas da Caridade. Atualmente é formador na etapa da teologia.
[2] Historiador e autor de diversas obras sofre a Igreja Católica no Brasil. Atualmente é professor titular do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora.