21 Outubro 2019
"Hoje Rojava é a Beirute em resistência de todo o Oriente Médio. Agora a meta parece ser ganhar a guerra para salvar a revolução democrática no Curdistão", escreve Bruno Lima Rocha (Bruno Baaklini), pós-doutorando em economia política, doutor e mestre em ciência política, professor nos cursos de relações internacionais, direito e comunicação social. Descendente de árabes acompanha e apoia os processos na região desde a segunda invasão de Israel no Líbano em junho de 1982.
No dia 09 de outubro a República da Turquia, autorizada pelos Estados Unidos sob governo de Donald Trump, recebe a autorização fática para invadir o território que formalmente pertence a República Árabe da Síria mas que estava sob autogoverno do sistema do Confederalismo Democrático da região do Curdistão oeste (dai o nome Rojava, que significa oeste em língua kurmanji, um dos três idiomas do povo curdo; os demais são sorani e pehlewani). Esta entidade política é denominada Federação Democrática do Norte e do Leste da Síria, e incluía até o avanço neo-otomano, a quase um terço do território formalmente governado pela família Assad desde 1971.
Este texto não se trata de debate de conjuntura, até porque o andamento da guerra, o emprego de armas química por parte do Sultão Neo-Otomano Recep Tayepp Erdogan (presidente autocrático, membro do partido islamita moderno AKP), sua aliança política com o partido fascista turco (MHP, descendentes dos Lobos Cinzentos) e o emprego de ao menos sete forças mercenárias com presença salafista desde a invasão do cantão de Afrïn (Operação Ramo de Oliveira, iniciada em 20 de janeiro de 2018) implicaria em um material de mais de dez páginas, fora os gráficos.
As palavras que seguem procuram fazer uma “abordagem compreensiva”, como uma análise mais de corte teórico, com aportes ideológicos para além da geopolítica clássica aplicada no Oriente Médio. Tampouco quero reproduzir a trama no Sistema Internacional em si. Como alguém que estuda a região há três décadas, sem contar com o envolvimento no apoio político às causas da Unidade Árabe, Libertação da Palestina (dois povos, dois Estados), soberania política do Líbano (país de meus ancestrais paternos) e direito e reconhecimento de etnias sem território e minorias perseguidas, tenho o cuidado de ao menos aportar informação precisa e conceitos com o rigor necessário para interpretar os fenômenos. Este texto também pode ser lido como um manifesto CONTRA uma visão orientalista da região, essencialista do fenômeno do islã político e utilitária dos destinos dos povos.
Para interpretar o giro político que ocorreu dentro do núcleo mais orgânico do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) até chegar à maior instância federalista, o KCK (Uniao ou Unidade das Comunidades do Curdistão), é preciso entender a trajetória do organismo político. O PKK nasceu marxista-leninista e passou por algumas revisões. A mais notável e última levou dez anos para ser processada e iniciou em 2000. A base teórica e dai a aproximação ideológica se encontra em algumas obras. Cito duas. A primeira, mais recente, cuja redação final se deu em 2013 e é de autoria do próprio Abdullah Öcalan e se chama em castelhano Hoja de Ruta (Roteiro, encontrado em pdf aqui). Trata-se do jovem clássico mais importante hoje para o futuro do Oriente Médio. Sua matriz é uma interpretação que deu base ao projeto que vive e luta na Federação Democrática do Norte da Síria. Trata-se do livro O Municipalismo Libertário, do anarquista de origem judaica e russa Murray Bookchin, que se radicou nos EUA até seu falecimento. Nesta obra de referência e no conjunto do debate que se seguiu, o tema da Ecologia Social, das formas de resistência junto ao território e coexistência muito tensionada entre a organização do poder social contra o aparelho de Estado e seus respectivos setores dominantes e dirigentes vem à tona.
Do muito que se lê e debate até o ponto da execução, três fundamentos evidentes em Rojava são: Democracia participativa, feminismo e ecologia! Mas, ressalto que nada disso é fácil de ser executado. Esses princípios seculares são aplicados em sociedade tradicional, com profundo sectarismo e etnicidade que não permite sequer o casamento interétnico e necessita ser adaptada na origem, ao Confessionalismo Político, a fórmula francesa de convivência no Líbano. A quebra do modelo está na existência obrigatória de Casas da Juventude, Casas das Mulheres e Conselhos Locais com representantes eleitos e paridade na representação entre homens e mulheres, além de ser assegurada a representatividade de todos os grupos étnico-culturais (além dos curdos na Federação está uma massa árabe, as minorias yázidis, turcomenas, assírias, caldeias e armênias, dentre outros setores étnico-religiosos como curdos alevis). É democracia participativa? Sim. Chega a ser plena? Evidente que não.
Outro alerta ao delírio de amigos “ocidentais” que tentam projetar ideias de socialização econômica sem compreender os processos é tentar fazer absoluto o impossível, como negar a propriedade familiar na forma privada em qualquer país do Oriente Médio. Nem na Argélia alinhada com a URSS isso foi possível, nem coibir a pequena propriedade e menos ainda os bazares. Em termos de projeto econômico em Rojava a maior parte da força de trabalho se estrutura sobre base familiar. Há empresas ali de pequeno e médio porte, e a maior parte é de cooperativas com bom nível de horizontalidade. Tanto é que no começo a contra informação do Ocidente dizia que Rojava iria "estatizar sem Estado". Daria tempo de desenvolver uma economia semi-planificada com liberdades relativas de produção e criação em nível local, distrital, regional (cantonal) e federal. Daria se não fosse o esforço agora para preservar a vida de quem está desarmado e uma razoável parcela de território.
Saiu no portal Vox que em algum momento “os curdos oprimiram as populações ao redor”. Queria abordar isso com o devido cuidado. O Confederalismo Democrático foi criado justo para não fazer isso. Na maioria das vezes os chefes de tribos votam pelo apoio militar e aí entra o sistema Confederal. As estruturas sociais são bem complicadas lá. Por exemplo, os yázidis originalmente hierarquizavam sua sociedade em castas. Imagina libertar esse povo? E as YBS são a milícia armada deles com aval das SDFs. Ou seja,mesmo com tanta controvérsia esta população tem o direito a autodefesa. Assírios e Caldeus são cristãos-étnicos e têm força armada também. As comunidades árabes aderiram em massa às SDF. O tema mais complexo é com a minoria turcomena, porque são turquicos e pelo chauvinismo dividiram seu esforço militar entre as SDF e o Exército da Turquia. Turcomenos formam duas importantes brigadas (Seljuc e Manbij) dentro da luta pelo Confederalismo. Enfim, na ANF, Kurdish Question e The Region tem material a respeito.
O tema é antigo, pois diziam as mesmas calúnias do Exercito Insurrecional dos Camponeses da Ucrânia (liderados por Néstor Makhnó na Ucrânia. Como era proibido pogrom algumas comunidades muito antissemitas sofriam mais vigilância.
Imaginemos um pelotão das YPJ (Forças de Autodefesa das Mulheres) chegar numa casa onde o sheikh local tem sete esposas e, na ponta do fuzil, a combatente oficial eleita afirmar: “ACABOU A POLIGAMIA!”. Claro que a família do infeliz vai reclamar e querer ser indenizada. Num ambiente desses imaginem um homem de 60 anos ter de pedir permissão para jovens de 20 e armadas? Como no Confederalismo é proibida poligamia, o casamento arranjado, a mutilação de corpos das mulheres e a cobrança de dotes, a situação pode se tornar delicada por alguma revolta comunal contra as leis seculares dentro do Contrato Social da Constituição de Rojava.
Mas observa-se que diante do comportamento reacionário as YPG/YPJ têm uma postura muito positiva e humanista. Tanto é que tinham uns 11000 terroristas do Daesh presos e não fuzilados. Logo, rogo muita observação em detalhes quando o tema for democracia e feminismo no Oriente Médio. O que as mulheres do Curdistão estão fazendo beira a um milagre e como tal deve ser respeitado.
Uma afirmação histórica é correta. Desde o século XIX o Curdistão é o jazigo dos imperialistas. Não é fácil dominar a região e antes e depois do famigerado Acordo Sykes-Picot (Império Britânico e Império Frances, maio de 1916, combinando a pilhagem e divisão das províncias otomanas no Oriente Médio) o problema continuou. O mesmo se dá quanto aos arranjos geopolíticos, muito mais complexos do que a “alienação livresca essencialista” pode permitir conceber.
Há certa controvérsia nas declarações do Saleh Muslim, alguém que tem a infelicidade da palavra. O secretário-geral do PYD (organização confederal no mesmo guarda-chuva do PKK) que não batem com a decisão do KCK (Congresso das Comunidades do Curdistão, órgão máximo da esquerda curda), sendo que ele mesmo (Saleh) é ex-KDP ramo sírio logo, alguém muito esforçado, mas com passado oligárquico (ligado ao clã de Mahmoud Barzani, aliado dos EUA, amigo de Erdogan e presidente do Governo Regional do Curdistão iraquiano, o líder mais importante da direita curda). Nunca houve muita expectativa na aliança tática que garantiu a presença de tropas dos EUA além do apoio aéreo, fundamental para derrotar militarmente o Estado Islâmico cujo confronto direto inicia em setembro de 2014 com o cerco de Kobani e termina com a libertação de Raqqa, na grande batalha que termina em outubro de 2017. No chão quem derrotou os terroristas do ISIS foram as Forças Democráticas da Síria (SDF), coordenadas pela esquerda curda e operando como força beligerante da Federação Democrática do Norte e do Leste da Síria (Tev-Dem, FDNS, Conselho Democrático Sírio).
Ninguém nutriu ilusão alguma sobre a relação com os EUA, era uma maneira de tentar prorrogar a presença de tropas da Otan e ganhar tempo em relação à invasão turca e a liberação de milhares de salafistas para apoiar o Erdogan. O primeiro convênio era com o KDP, e os oligarcas-corruptos de Irbil demoraram setes meses para enviar 150 soldados ainda para romper o cerco de Kobani. Foi o acordo com Barzani/KDP, líder do partido rival do PKK, que permitiu a chegada da coalizão anti-ISIS em peso, em especial pela cobertura aérea. Como os pershmergas (forças de defesa do governo de Irbil) não lutavam com o mesmo ímpeto e nem eram tão bons militarmente, Washington se viu diante de um desafio. Apoiar a esquerda da região ou correr o risco do vexame internacional da vitória do ISIS mesmo com os bombardeios dos países ocidentais?
E como seria relativamente fácil de neutralizar a presença de tropas estadunidenses? Tudo isso se resolvia com a presença de "observadores russos" na região, fato que nunca houve. Por mais besteira que o Salih fale (eu próprio o escutei na CNN com dois dias passados da invasão otomano-salafista), isso não influencia a linha da estratégia do conflito.
As Forças da Esquerda Curda fizeram parte da Coalizão Anti ISIS, que continha apoio aéreo russo também. Não era uma aliança entre EUA e PYD-PKK. A articulação saiu via governo de Irbil, do KDP, do oligarca Barzani, que como corrupto, estava lavando dinheiro para o ISIS assim como o filho do Erdogan na Turquia. Ambas as denúncias foram feitas pelo presidente da Rússia Vladimir Putin, na reunião do G20/2015 em plena Turquia e depois ratificadas em comunicado na ONU. Agora estamos diante disso. CRIME INFAME.
Pouco antes da ofensiva turca com a autorização dada pelo presidente dos EUA, Donald Trump, as SDF libertaram Mambij como extensão da retomada de Raqqa, a cidade que fora considerada capital do Califado de Al Baghdadi, o famigerado líder do Estado Islâmico. A extensão territorial do Confederalismo Democrático atingia a quase um terço do tamanho formal do Estado sírio e “eliminar” esse perigo convinha a todos os poderes e potências: EUA, Turquia, Rússia e Síria através de seu governo de Damasco.
Para termos uma ideia do tamanho do território confederal, as forças conjuntas das SDFs ampliaram na primeira semana a linha de defesa para 650 kms apostando em maior mobilidade de pequenas unidades para não ser alvo de intenso fogo de barragem por parte do segundo maior contingente da OTAN (a Turquia). Já Ankara se propõe a organizar uma zona tampão de “segurança”, retornando com no mínimo 2 milhões de refugiados podendo chegar até a 3,5 milhões. Esta população estaria sob vigilância da Turquia e de seus aliados mercenários salafistas em uma área de mais de 400 kms de extensão e 30 a 32 kms de profundidade, incluindo uma rodovia para cortar o território invadido.
Na primeira semana havia um conjunto de dúvidas que permanecem. Será que Damasco toma vergonha na cara e ajuda no esforço contra os invasores otomanos e seus aliados salafistas? O Irã condenou o ataque da Turquia, será que vai apoiar o contragolpe, ou aproveita o embalo para aumentar a repressão contra o PJAK, o partido da esquerda curda operando no Curdistão ocupado pelo Estado persa?
Parece que a tragédia anunciada se realiza. Até se prove o contrário, os Otomanos vão soltar os terroristas salafistas e colocar eles lutando dentro da Síria. Até se prove o contrário, aparentemente Rússia e Irã lavam as mãos numa banheira de sangue. E, como sempre, espera-se apenas muita hipocrisia do Conselho de Segurança da ONU a respeito da invasão otomana em Rojava.
Os malditos otomanos e seus aliados salafistas sabem que o genocídio anunciado não será aceito e a vingança da esquerda curda cedo ou tarde chagará. Outra possibilidade é ampliar o conflito dentro do Curdistão Iraquiano. Irbil vai ser a capital do Curdistão socialista? A tensão certamente vai parar toda no Governo Regional Curdo (KRG), o oligarca traidor Massud Barzani (líder de clã e de seu partido, o KDP) pode ter de enfrentar eleições pela primeira vez em sua vida e ver seu poder escapar entre as mãos. Irbil pode ser a próxima capital do Confederalismo Democrático ou o epicentro de uma nova “guerra entre irmãos”, dando sequência da guerra civil no Curdistão (de maio de 1994 a novembro de 1997).
O fato é que não há como nutrir “esperança” para além das próprias forças e algum recuo estratégico. Trump e Erdogan são dois sacos da mesma matéria fétida e infértil. E tudo indica que Putin vai arbitrar um "acordo" para implantar em Rojava um gigantesco campo de refugiados e acabar com o território do Confederalismo. Parece a Revolução Espanhola, mas nem essa acabou em 1939. Os maquis anarquistas cruzavam os Pirineus para combater o fascismo franquista, isso até o Movimento Ibérico de Libertação (MIL) desatar a luta em larga escala culminando no martírio do libertário catalão Salvador Puig Antich (executado pelo regime de Franco em março de 1974). Os maquis de ontem são HEVALS de Qandil. Também antevejo Shirkuh e seu sobrinho Salahaddin agindo sobre Ankara.
Repito. Rojava é como a Revolução Espanhola, só que no século XX. As potências "ocidentais" lavam as mãos enquanto Rússia, Síria e Irã riem numa piscina de sangue. Definitivamente os povos só podem contar com seu próprio esforço, sem ilusões!
Na região a história se repete. Em 1982 Beirute era a Stalingrado dos árabes. Hoje Rojava é a Beirute em resistência de todo o Oriente Médio. Agora a meta parece ser ganhar a guerra para salvar a revolução democrática no Curdistão. E vale lembrar. Qualquer força política, ativista, intelectual ou agitador que "relativizar" o ataque otomano ao Curdistão Socialista e Confederal é cúmplice deste crime. Biji FDNS, Biji Tev-Dem, Biji SDF, Biji KCK.
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Recortes e apontamentos sobre a invasão otomana-salafista contra Rojava e a resistência do Confederalismo, iniciada em outubro 2019 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU