02 Outubro 2019
Um livro de Alberto Melloni relembra os eventos que, em 1968, levaram à remoção do arcebispo de Bolonha. Naquela época, alguns tentaram isolar o pontífice.
A reportagem é de Paolo Mieli, publicada por Corriere della Sera, 10-10-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Valores obscuros, mentiras reiteradas, opacidades inconfessadas e inconfessáveis. Essas são as características da “aceleração violenta” que, no início de 1968 – na época do Papa Paulo VI, provavelmente vítima inconsciente dessa manobra –, levou ao afastamento do cardeal arcebispo de Bolonha Giacomo Lercaro, e à sua substituição por Antonio Poma.
Giuseppe Dossetti foi o primeiro a definir o gesto em relação a Lercaro como uma “remoção”. E “Rimozioni. Lercaro. 1968” [Remoções. Lercaro. 1968, em tradução livre] é agora o título de um livro intrigante (de publicação iminente pela editora Il Mulino) dedicado por Alberto Melloni ao complexo caso mencionado acima.
Por que aquele plural, “remoções”? Aparentemente, o ensaio trata apenas da destituição de Lercaro. Porém, depois, página após página, Melloni amplia o discurso à “remoção da remoção”, isto é, a como os verdadeiros significados daquele caso foram progressivamente envolvidos em um manto de neblina.
Foi a Igreja, sem sombra de dúvida, que quis que a história daquela violência consumada contra o cardeal Lercaro fosse “silenciada”. E a “remoção da remoção” foi possível “pela decisão da vítima de se calar, na (vã) expectativa de que aqueles que haviam arquitetado aquela manobra viessem à tona e que aqueles que tinham o dever de descobri-los identificassem os culpados”.
Além disso, a “remoção da remoção” foi facilitada “pela habilidade com que foram semeados desvios, despistagens, calúnias, alusões” em torno daquele “evento dilacerante”. E, no fim, a “remoção da remoção” foi corroborada historiograficamente “pela redução da própria repressão como um fragmento da história do Partido Comunista Italiano (PCI) ou como um pequeno capítulo do excepcionalismo ‘melhorista’ bolonhês”. Enterrada, além disso, “por toneladas de detalhes que”, defende Melloni, “não fazem uma grama de história”.
Agora, novos documentos (e o incentivo indireto do Papa Francisco) “permitem e talvez impõem que reconstruamos mais acuradamente” a aproximação entre Lercaro e Poma há mais de 50 anos. Melloni ressalta que, “no momento em que aquele ‘delito’ se realizava, havia passado uma dezena de anos desde que outra Igreja – a de Florença – havia se visto como sendo a obsessão” daqueles mesmos “ambientes eclesiásticos romanos habituados a se considerarem onipotentes”.
Também naquela época, um cardeal, Elia Dalla Costa, com tamanha autoridade que, no conclave de 1939, poderia disputar a tiara com Eugenio Pacelli (Pio XII), havia sido posto na mira. Em meados dos anos 1950, um jovem padre, Pe. Lorenzo Milani, que se tornara o “para-raios e a vítima designada da ferocidade institucional” da Igreja de Roma acabou na mira do mundo pacelliano. Naquela ocasião, junto com o Pe. Milani, ficou abalado todo o “claustro dos loucos de Deus”, reunido em torno da carismática figura de Dalla Costa.
Depois, entre 1967 e 1968, a tempestade se abateu sobre a Igreja de Bolonha, “vítima designada” por causa do “protagonismo objetivo” do arcebispo, “que saiu do Concílio com uma aura que dava autoridade à sua ideia de acordo com a qual as Igrejas locais deviam agir como hermeneutas da reforma conciliar”. Desta vez, não havia um Pe. Milani sobre o qual se podia despejar a agressividade romana, e os raios se abateram diretamente sobre o cardeal Lercaro, que era um expoente da parte mais progressista do clero italiano.
Progressista, sim, mas havia feito o seu “dever” na batalha contra o PCI, a ponto de, em 1956, para interceptar as sensibilidades da esquerda, impor ao recalcitrante Giuseppe Dossetti que se candidatasse à prefeitura de Bolonha com o comunista histórico Giuseppe Dozza.
Dossetti aceitou e, como estava nos prognósticos, perdeu: Lercaro sentenciou que, com a eleição de Dozza, a cidade queria se “desbatizar”. Mais tarde, Lercaro desempenhou um papel muito importante no Vaticano II e, em dezembro de 1965, quando voltou para Bolonha depois de terminarem os trabalhos conciliares, Dozza foi acolhê-lo na estação para lhe testemunhar o reconhecimento da cidade (e talvez também do PCI) pelo papel desempenhou por ele naquela cúpula.
A partir daquele momento, o arcebispo de Bolonha, com o seu suposto deslocamento para a esquerda, tornou-se (provavelmente sem perceber) o pretexto para o duro conflito do pós-Concílio entre aqueles que queriam que tudo mudasse e aqueles que desejavam uma reabsorção das novidades.
Em abril de 1967, foi publicado um estranho livro do tradicionalista Tito Casini, “La tunica stracciata. Lettera di un cattolico sulla ‘Riforma liturgica’” [A túnica rasgada. Carta de um católico sobre a “Reforma Litúrgica”, em tradução livre] (Ed. Sates), no qual Lercaro era acusado de ter causado ainda mais danos à Igreja do que Lutero. Chamava a atenção que o prefácio do panfleto havia sido escrito por um cardeal, Antonio Bacci. Estranho sinal.
Naquela ocasião, Paulo VI – preocupado que, escreve Melloni, Lercaro pudesse “considerá-lo inspirador ou corresponsável pelo ataque de Bacci” – expressou “de modo público e evidente” a sua solidariedade ao arcebispo de Bolonha. E parecia que tudo deveria parar por aqui.
Machete da época (Fonte: lercaroilfilm.it)
Mas não foi assim. Se havia um jornal na época querido pelo arcebispo de Bolonha, era o L’Avvenire d’Italia, dirigido (por cinco anos) por Raniero La Valle. O jornal tinha dificuldades econômicas, e Paulo VI decidiu “deixá-lo morrer”. Lercaro tentou obter ajuda para L’Avvenire d’Italia, que, “precisamente devido à função de suporte da maioria reformadora”, havia feito muitos inimigos no mundo católico que desejavam o seu fechamento.
Em março de 1967, Lercaro procurou o papa, coproprietário da publicação, para defender o alívio da dívida. Eu preferiria “morrer ou pelo menos não estar na cátedra bolonhesa”, escreveu Lercaro, “em vez de, ao me sentar, ver abaixada uma bandeira que meus antecessores e eu sempre apoiamos”. A resposta do Vaticano foi gélida: “Não se deve pensar que a Santa Sé consome os recursos já limitados da sua caridade para a imprensa católica na Itália, quando não faz e não pode fazer isso pela imprensa católica dos outros países e quando inumeráveis outras necessidades caritativas e apostólicas reclamam a sua ajuda”.
Pouco tempo depois, a guilhotina caiu sobre o Avvenire. O jornal foi cedido à Nuova Editoriale Italiana, do Mons. Giuseppe Bicchierai, que o fundiu com o milanês L’Italia. La Valle foi induzido a renunciar (ele acabaria eleito de forma independente nas listas do PCI).
Assim, a partir de agosto de 1967, Lercaro ficou sem o “seu” jornal, em um contexto informativo no qual, escreve Melloni, Il Resto del Carlino – dirigido desde 1955 por Giovanni Spadolini, próximo da nomeação à direção do Corriere della Sera – “aprofundou os seus ataques contra o arcebispo e a ‘república conciliar’ em nome dos interesses de uma burguesia moderada ‘laica’ que se unem (um paradoxo bolonhês não raro) com os de um catolicismo reacionário”.
Sobre o caso Avvenire, a questão Vietnã tinha pesado muito. Lercaro havia tomado uma posição claramente favorável à paz em um discurso proferido no Arquiginásio no dia 26 de abril de 1967. Um discurso que imediatamente alarmou os moderados à frente da Democracia Cristã com Mariano Rumor.
Flaminio Piccoli criticou abertamente o arcebispo de Bolonha. Mas tudo parecia que terminaria por aí. No entanto, Lercaro voltou ao assunto no dia 1º de janeiro de 1968, com uma homilia ainda mais retumbante, na qual defendia que a Igreja não poderia nem deveria ser “neutra” em relação ao conflito vietnamita. Discurso destinado a desfazer os planos de Paulo VI, que, sobre a questão vietnamita, mantinha uma complexa mediação com o presidente estadunidense Lyndon Johnson (no decorrer da qual ele havia assegurado ao sucessor de John Kennedy que a Igreja nunca ficaria do lado dos comunistas).
Em fevereiro, de uma hora para a outra, Lercaro foi removido, e o L’Osservatore Romano relatou que isso ocorreu “devido à idade avançada e às condições de saúde” do cardeal. Nada verdadeiro. A reação de Lercaro, escreve Melloni, foi de “furiosa perplexidade”. Perplexidade destinada a aumentar quando o cardeal recebeu uma carta do secretário de Estado, Amleto Giovanni Cicognani, na qual, em nome do papa, foi-lhe pré-anunciado um “subsídio mensal” para “aliviar a arquidiocese do ônus do seu sustento”. Era “uma oferta que beirava a vulgaridade”, defende Melloni; aquelas palavras foram para Lercaro “um tapa violento e consciente”.
Enquanto isso, nos jornais Il Tempo e Il Borghese, aparecem indiscrições que definem (à direita) os contornos políticos do conflito entre o cardeal de Bolonha e a Igreja de Roma. O Il Borghese adentrou-se em questões doutrinais argumentadas com habilidade, às quais se acrescentava a acusação contra Lercaro de ter perturbado o equilíbrio da sua arquidiocese. Não sem malícia, foi-lhe contraposta a figura “excepcional” do bispo de Reggio Emilia, Dom Gilberto Baroni, que – segundo o Il Borghese – teria gerido o patrimônio eclesiástico com maior cautela.
Havia chegado o momento de um encontro reparador entre Lercaro e Paulo VI. Encontro que o papa lhe concedeu no dia 21 de março, depois de ter se acautelado avisando-o que responderia às suas “questões” com as “explicações” a ele “permitidas”.
A conversa ocorreu na data estabelecida e, para Lercaro – que imediatamente depois relatou-a a Giuseppe Dossetti e Giuseppe Alberigo –, pareceu resolutiva. O papa até havia levantado a hipótese de que ele voltasse ao trono episcopal do qual havia sido brutalmente deposto. Uma reparação, destaca Melloni, que teria sido “tão surpreendente que poderia parecer o seu contrário”.
Naquela conversa, Lercaro levantou a suspeita de que o seu sucessor, Antonio Poma, havia conspirado para acelerar a sua destituição. Paulo VI lhe lembrou que havia sido precisamente ele que escolheu Poma como seu sucessor. Mas a história não havia acabado.
Passaram-se cinco dias, e o secretário do papa, Mons. Pasquale Macchi, enviou ao colaborador mais próximo de Lercaro, o Pe. Arnaldo Fraccaroli, uma estranha carta na qual indicava os “incautos amigos” do cardeal que, “de boa fé” faziam “correr em revistas e em outros impressos pensamentos, considerações, notícias que certamente são falsificações do que ele pensa”. E que teriam estado na origem do “doloroso, embora silencioso, escândalo”.
Lercaro, retratado como “uma coruja à mercê de não se sabe quem”, escreveu então uma nota indignada e a enviou ao papa. Tornou-se necessário um segundo encontro, no dia 24 de abril, mas desta vez Lercaro viu-se forçado a fechar unilateralmente o próprio caso. Que não seria reaberto nem no fim de 1968, quando, pela editora Gribaudi, foi lançado um livro do Pe. Lorenzo Bedeschi favorável a Lercaro (embora desinformado). Ao “livreto”, seria dedicada uma ácida nota anônima publicada no L’Osservatore Romano della Domenica.
Moral dessa atormentada e intrincada história? Melloni escreve que Lercaro foi “uma figura principesca no estilo e austera nos modos”. Teólogo e “animador ativo no movimento”. Purpurado “cortejou precisamente pelo ‘partido romano’”, que tentou em vão usá-lo contra Montini no conclave de 1963. Mas “logo desagradável à direita eclesiástica e política que, mesmo assim, devem ter apreciado o seu anticomunismo criativo”.
Lercaro, continua Melloni, foi apontado entre 1966 e 1967 e “demolido” em 1968 “com uma lógica que ultrapassa o roteiro maoísta de ‘atingir um para educar cem’”. Qual o objetivo oculto dessa iniciativa em seu detrimento? Aqueles que “ordenaram e perpetraram essa violência institucional” – responde Melloni – olhavam diretamente para Roma e “para os difíceis equilíbrios das grandes figuras da Cúria pós-conciliar entre as quais prevalecia o agregado... que pensava que podia replicar a operação de cerco realizada no pontificado pacelliano”.
Para ter sucesso nesse empreendimento, tais ambientes deviam “isolar definitivamente Paulo VI da maioria dos quais ele era uma expressão”, “queimar a sua suscetibilidade e as suas apreensões”, “manipular as suas vulnerabilidades”, “criar – nos interstícios da sua linha de conduta – fatos consumados que comprometessem a sua credibilidade”. E “leva-lo no mínimo para a beira da renúncia”. Precisamente isso, escreve Melloni: a renúncia!
Esses ambientes queiram “impedir a Igreja italiana pudesse se livrar da tibieza politiqueira que, logo depois, a exilaria por muito tempo do papado”. Esterilizando, com essa operação, “longamente ou para sempre”, a “fecundidade do Vaticano II”. E com o caso Lercaro eles foram direto ao ponto. Pelo menos em parte.
Foi publicado em 1967 “La tunica stracciata” (Ed. Sates), um duro ataque de Tito Casini ao cardeal Giacomo Lercaro. Depois da remoção do próprio Lercaro da Diocese de Bolonha, Lorenzo Bedeschi interveio em sua defesa com o ensaio “Il cardinale destituito” [O cardeal destituído] (Ed. Gribaudi, 1968).
Alguns livros foram dedicados ao cardeal por Arnaldo Fraccaroli, incluindo “Giacomo Lercaro. Il cardinale che io ho conosciuto” [Giacomo Lercaro. O cardeal que eu conheci] (Ed. Paoline, 1986) e “Giacomo Lercaro. Un pastore per il nostro tempo” [Giacomo Lercaro. Um pastor para o nosso tempo] (Ed. Minerva, 2005).
Também é digno de nota, de Nazario Sauro Onofri, “Le due anime del cardinale Lercaro” [As duas almas do cardeal Lercaro] (Ed. Cappelli, 1987). O ensaio de Melloni será apresentado em Milão no dia 16 de novembro, durante a BookCity. Entre os oradores, junto com o autor, estarão Marco Garzonio, Fulvio De Giorgi e Silvia Scatena.
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Paulo VI era o alvo indireto de uma manobra contra o cardeal Lercaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU