01 Março 2019
Voluntários, envolvidos em causas do mundo associativo, desempregados e pessoas em situação de assistência social. Todos eles que trabalham ou trabalharam gratuitamente foram entrevistados por Maud Simonet (Paris, 1972), socióloga e catedrática do Centro Nacional para a Pesquisa Científica (CNRS), na Universidade Paris Nanterre.
Simonet está há 20 anos trabalhando sobre esta dimensão pouco conhecida do mundo do trabalho. Essa dimensão que envolve trabalho sem remuneração, com poucos direitos ou sem qualquer reconhecimento deles. Assim é o trabalho gratuito e assim se chama, de fato, a última pesquisa de Simonet publicada na França. Travail gratuit: la nouvelle exploitation? (Ed. Textuel, 2018) [Trabalho gratuito: a nova exploração?] é o título de seu último livro.
Esta socióloga explica que o trabalho gratuito serve hoje em dia para “dar uma cara cívica ao neoliberalismo”. Entre outras coisas, porque nesta lógica se ataca o público “em nome do compromisso cidadão, dos valores cívicos, da boa vontade dos cidadãos ou sob a desculpa da reinserção daqueles que recebem ajudas sociais”, segundo explica Simonet, nesta entrevista ao jornal El Diario.
A entrevista é de Aldo Mas, publicada por El Diario, 22-02-2019. A tradução é do Cepat.
O que você entende por trabalho gratuito?
Eu tomo a ideia de trabalho gratuito da análise feminista prévia sobre o trabalho doméstico, entendido como um trabalho gratuito atribuído às mulheres em nome do amor, maternidade, família, etc. Eu retomei este conceito para analisar muitas atividades que hoje são realizadas fora do âmbito doméstico, seja em associações, em serviços públicos ou através da Internet e que tornam possível o funcionamento de associações e serviços públicos, mas também de empresas. Isto, sem que haja um reconhecimento de que são trabalho.
Falamos de atividades que não contam com nenhum tipo de proteção social.
Exato. São atividades que, como trabalho, são invisíveis. Não são reconhecidas como se fossem trabalho. Podem não ser remuneradas ou são realizadas em troca de uma compensação. Contudo, nunca em troca de um salário. Quando uma atividade é invisível como trabalho significa também que ocorre à margem do direito trabalhista, à margem das instituições do mundo trabalhista, seja da representação sindical, dos direitos sociais ou da proteção social.
Essas formas de trabalho sempre estão à margem do sistema de proteção trabalhista?
Estamos diante de novas formas de trabalho associativo, como o que na França se chama de ‘voluntariado’. São formas de trabalho voluntário que contam com um determinado período de tempo, estão associadas a uma pequena compensação e, eventualmente, pode ter alguns associados com alguns direitos sociais. Por exemplo, na França, quando se é voluntário se contabiliza para a aposentadoria, mas não se contabiliza para o auxílio-desemprego.
Suas pesquisas demonstram que estas formas de emprego podem acabar sendo utilizadas no setor público.
Sim. Com John Krinsky [cientista político e professor do City College de Nova York], trabalhamos durante anos sobre a transformação na manutenção dos parques da cidade de Nova York. Aí demonstramos que, entre a metade dos anos 1970 e o período atual, houve uma transformação do trabalho nesse serviço público. Diminuiu o número de funcionários que limpavam os parques e vimos multiplicar o status dos trabalhadores. Porque surgiram nesse setor trabalhadores do setor associativo, por exemplo.
Falamos de pessoas que trabalham para associações que vão se ocupar da manutenção dos parques, através de acordos com a cidade. Essas associações empregam sua própria mão de obra, mas são empregados sem direitos sindicais, sem a mesma proteção que dos empregados municipais, apesar de realizarem o mesmo trabalho. Além disso, no setor dos parques de Nova York vimos surgir diferentes tipos de voluntários e até pessoas que recebem ajudas sociais sendo obrigadas a oferecer horas de trabalho à cidade para continuar recebendo essas ajudas.
Desse modo, é estabelecido uma espécie de mercado de trabalho paralelo?
Em nossa pesquisa vimos o surgimento, no mesmo setor, de trabalhadores remunerados e não remunerados, trabalhadores com direitos e sem direitos, de trabalhadores que possuem um emprego que escolheram e outros que se veem forçados a trabalhar. Tudo isto, no entanto, dentro de um setor público e sem a necessidade de privatização. O que ocorre é que há uma parte do trabalho que é realizado gratuitamente. Falamos da “gratisficação”. Não é uma palavra bonita. Contudo, há uma parte do trabalho que é realizada gratuitamente porque o trabalho é realizado por voluntários ou pessoas que recebem auxílios.
De qualquer modo, falamos de pessoas que não são remuneradas por fazer seu trabalho. Custa muito pouco para a cidade manter estes trabalhadores, pois os custos são assumidos por outros. Por um lado, há uma fundação que se ocupa das associações vinculadas à atividade nos parques e o estado federal e o estado em particular se ocupam fundamentalmente das ajudas sociais. As autoridades da cidade reconheceram que, em seu dia, não perderam a gestão dos parques em benefício de empresas privadas porque tinham algo que as empresas não tinham: trabalho gratuito.
Você fala do caso de Nova York. Contudo, essas ideias da ‘gratisficação’ também tem uma influência na Europa, não é verdade?
Há alguns dias, o primeiro-ministro francês [Édouard Philippe] saiu com essa ideia de que seria necessário pedir uma contrapartida em termos de trabalho às pessoas que recebem uma ajuda social.
Nova York parece ocupar, em sua pesquisa, um lugar de laboratório sociológico, embora você já tenha dito que na França há reflexos semelhantes. Viu o fenômeno do trabalho gratuito em outros pontos da Europa?
Em outros pontos da Europa, por exemplo, este fenômeno foi destacado por Andrea Muehlebach, na Itália. Em seu livro The Moral Neoliberal (Ed. University of Chicago Press, 2012), demonstrava que na Itália eram aplicadas políticas com as quais o Estado colocava parte da população para trabalhar, por meio do voluntariado. Muehlebach ressaltava como por meio desse trabalho gratuito se demonstrava ser um bom cidadão, apesar de se estar desempregado ou recebendo auxílios do estado. Apresenta-se esse trabalho gratuito como uma forma de reparar o cidadão.
No Reino Unido, todo o trabalho de pesquisa que foi realizado sobre a Big Society demonstra que há um claro discurso que convida os cidadãos a também se envolver nos serviços públicos e que, em definitivo, ataca os serviços públicos. Na França, já existem formas de trabalho gratuito. Já se utiliza essa ideia de que os ‘bons jovens’ são aqueles que preferem prestar um tempo do que aqui se chama de serviço cívico, em vez de ficar parado.
Que relação tem este fenômeno com as lutas feministas que defendem o trabalho doméstico como um trabalho que deveria ser reconhecido?
Esta ideia do ‘bom jovem’ é comparável à ideia da boa mulher’. Uma mulher que é uma ‘boa mulher’, ‘boa esposa’ ou ‘boa mãe’ é uma mulher que faz seu trabalho doméstico. Aqui, esse trabalho gratuito ‘serve’ para provar o valor dos indivíduos.
A ampliação desse trabalho gratuito se dá em detrimento ao funcionalismo?
Absolutamente. Quem desaparece é o funcionário. A saber, o desaparecimento do trabalhador do setor público protegido pela função pública, pelo sindicalismo, os direitos sociais e outros. Não é que os voluntários substituam um a um os funcionários. Mas, há uma substituição no desempenho de tarefas. Na medida em que há tarefas desempenhadas por voluntários, há uma desprofissionalização.
Em que medida o ‘trabalho gratuito’ representa uma nova evolução do neoliberalismo?
Aqui, a neoliberalização dos serviços públicos se faz com o trabalho gratuito em nome do compromisso cidadão, dos valores cívicos, da boa vontade dos cidadãos ou sob a desculpa da reinserção daqueles que recebem auxílios sociais. A isto eu chamo de uma cara cívica do neoliberalismo, um fenômeno que não foi estudado o suficiente e que é complicado de ver, porque se apoia sobre valores e se desenvolve em nome do compromisso, da comunidade e da inserção social.
Em definitivo, são valores que reconhecemos como positivos e que não costumam ser automaticamente associados ao neoliberalismo. Mas, sobre o campo, em vez de trabalho, há uma neoliberalização, porque há diminuição do número de funcionários, uma precarização da função pública e o surgimento de uma grande diversidade de status trabalhistas sem proteção trabalhista.
Em suma, estamos diante de uma precarização do emprego público e uma pauperização do serviço público.
Sim. Desse modo, é possível acabar conseguindo, como demonstrou o próprio Krinsky, um exército de trabalhadores gratuitos para desenvolver políticas públicas.
Qual o papel das novas tecnologias neste fenômeno do trabalho gratuito?
Os sociólogos que se ocuparam do trabalho nos novos meios de comunicação, desde o princípio, se interrogaram sobre este fenômeno da gratuidade do trabalho. Desde os anos 2000, fala-se neste contexto de Free Labor, um termo muito ambíguo, que significa, por sua vez, ‘trabalho grátis’ e ‘trabalho voluntário’. Aqui, claramente, também se apresenta a questão de se há exploração ou não. É curioso que muito rapidamente tenha sido concebido esse questionamento, neste contexto, e menos diretamente no do mundo associativo, do voluntariado e do compromisso cidadão.
O trabalho gratuito no contexto das novas tecnologias é realizado em nome da ‘paixão’, do mesmo modo em que as mulheres fazem o trabalho doméstico em nome do ‘amor’ e que os voluntários trabalham em nome da ‘cidadania’. Mas, esse trabalho na Internet apresenta as questões que as lutas feministas já apontavam há 40 anos ou mais.
Movimentos políticos como ‘A República em Marcha’, liderada por Emmanuel Macron, ou a campanha que levou à liderança do Partido Trabalhista Jeremy Corbyn foram marcados pelo trabalho de voluntários que se envolveram muitíssimo na Internet com seus líderes. Há uma relação entre esse trabalho e o trabalho gratuito que você pesquisa?
Nesses movimentos há uma dimensão de trabalho por militância, mas também há de construção de uma carreira profissional. O que resulta inegável é que atualmente há uma institucionalização extremamente forte do trabalho gratuito no funcionamento do mercado de trabalho. Pode ser através das práticas ou do serviço cívico na França. É dito aos jovens que esse trabalho grátis pode levar a um emprego. Nos Estados Unidos, isto é chamado de Hope Labor. Ou seja, trabalhar de graça com a esperança de conseguir o trabalho de ‘seus’ sonhos no futuro. Este assunto tem relação com o conflito, em 2011, dos blogueiros do Huffington Post, no momento da venda a AOL por parte de Arianna Huffington, por 315 milhões de dólares (cerca de 230 milhões de euros).
Em que sentido?
Naquela época, esse meio de comunicação possuía uma pequena centena de jornalistas na equipe e 9.000 blogueiros voluntários. Estes se mobilizaram, fizeram greve, um boicote e uma ação judicial em Nova York. Defendiam que o valor acumulado do meio de comunicação também tinha sido criado por eles, por isso queriam recuperar parte desse valor. Perderam.
Esse trabalho gratuito tinha para eles um duplo sentido. Por um lado, escrever ali era uma forma de militância e de estar comprometidos com a crítica aos Estados Unidos de visão republicana. E, também, para muitos deles que vinham do mundo do jornalismo, das letras ou da literatura, escrever ali era algo bom e promissor para sua carreira profissional.
Dá a impressão que o ‘trabalho gratuito’, como tal, ainda precisa ser reconhecido como o que é: trabalho. Suas pesquisas apontam nessa direção. Como considera ser possível se proteger diante deste fenômeno?
As soluções são difíceis de encontrar. Eu sempre busco olhar quais conflitos existem ou existiram que buscam rejeitar essa atribuição do trabalho gratuito. Atualmente, há um movimento social em Quebec (Canadá). Ali, há estagiários que estão fazendo greves. Houve paralisações em novembro e outras anunciadas para esta primavera. É um movimento onde se destaca particularmente que os trabalhos como estagiários não remunerados são fundamentalmente trabalhos desempenhados por mulheres, seja em educação, saúde ou no setor social.
Há jovens mobilizadas e uniram sua causa a das feministas, que desde sempre denunciaram o trabalho não remunerado e invisibilizado, mas que é indispensável para o funcionamento do capitalismo. O movimento destas estagiárias é um movimento que busca o reconhecimento do trabalho das mulheres nos setores afetados. Reivindicam ser consideradas como trabalhadoras. Reivindicam uma remuneração e não uma ajuda, nem uma compensação.
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“A neoliberalização dos serviços públicos se faz com o trabalho gratuito em nome dos valores cívicos”. Entrevista com Maud Simonet - Instituto Humanitas Unisinos - IHU