03 Agosto 2018
"A luta pela justiça social envolve a necessidade de fazer com que estruturas e instituições justas sejam mais presentes na sociedade. Muitas vezes, esse foco pedirá por mudança em estruturas existentes injustas. A mudança estrutural é, por natureza, complexa, pois envolve diferentes fatores e relacionamentos e, por conseguinte, não é facilmente atingida", escreve Charles Curran, padre e professor da cátedra Elizabeth Scurlock University de valores humanos na Southern Methodist University, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 28-07-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Nota do editor: Segue a palestra ministrada pelo padre Charles Curran no dia 28 de julho, por ocasião de uma conferência para cerca de 500 teólogos de moral e ética, em Sarajevo, Bósnia e Herzegovina, reunidos em torno do tema: “Um momento crítico para construir pontes: a ética teológica católica hoje".
Curran, professor da cátedra Elizabeth Scurlock de valores humanos da Southern Methodist University, falou sobre a necessidade de os estudiosos católicos não apenas identificarem o que é certo e o que é errado, mas também trabalharem pela justiça no mundo.
Nesta importante conferência, foram abordados problemas morais contemporâneos que enfrentamos no mundo atual, como a corrupção, a devastação ecológica e a mudança climática. Minha responsabilidade é desenvolver o que a tradição moral católica tem a dizer sobre estes e outros problemas semelhantes. Muitas vezes, vou me referir a estes problemas usando o termo mais amplo justiça, paz e integridade da criação. Proponho que, na melhor das hipóteses, a tradição católica tem três importantes considerações sobre a abordagem aos problemas morais que enfrentamos hoje.
1) Identificar se um ato é certo ou errado não basta. É necessário tornar o certo mais presente na nossa sociedade.
2) Pensar na moralidade dos atos não é o suficiente. É preciso dar a devida atenção à pessoa que pode causar mudanças.
3) Outros atores com base no princípio da subsidiariedade.
A teologia moral católica não deve ser entendida apenas no sentido de identificar se um ato é certo ou errado, mas também no sentida da necessidade de provocar mudanças para que o que é certo seja mais presente em nossa sociedade e a justiça substitua a injustiça. Em relação a isso, a teologia moral católica difere da filosofia moral ou das ideias morais em certos aspectos. No entanto, é importante ser capaz de demonstrar o que é certo e errado através da razão humana. Mas razão e ideias não bastam para provocar mudanças para um problema específico. São necessárias mas não suficientes.
Tomemos, por exemplo, o caso do suborno, que é uma parte importante da questão mais ampla da corrupção e é tão presente em todas as partes da sociedade global atual. O suborno é um incentivo impróprio para influenciar o desempenho de uma função pública, que deveria ser exercida gratuitamente. Anos atrás, John T. Noonan, Jr. publicou Bribes: The Intellectual History of a Moral Idea, um estudo exaustivo de 839 páginas. A obra descreve com precisão o modo como Noonan lida com o suborno, e o capítulo final discute o futuro dessa ideia. Noonan conclui que há quatro razões pelas quais o suborno deve continuar sendo moralmente condenado: 1) É universalmente vergonhoso. 2) Tem muita adesão entre os ricos. 3) É uma traição da confiança. 4) Viola um preceito divino. Deuteronômio 10:17 diz que Deus não aceita suborno. [1]
A própria tradição católica nem sempre reconheceu a importante necessidade de ir além da moralidade dos atos para tentar provocar mudanças concretas em relação às práticas existentes. Os manuais de teologia moral tinham o objetivo limitado de declarar quais atos eram pecaminosos e o grau de pecaminosidade. Eles não expressam interesse em como mudar práticas como a corrupção e o suborno. Bastava salientar qual era a lei de Deus sobre os atos pecaminosos.
A doutrina e a ética social católica por natureza visam fazer com que a justiça seja mais presente na sociedade. Mesmo nesse âmbito a ênfase foi, por algum tempo, principalmente a doutrina do que é o certo a fazer, mas isso tem mudado. A Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Moderno condenou a separação entre fé e vida diária. Não pode haver nenhuma falsa oposição entre atividades profissionais e sociais, de um lado, e vida religiosa e crenças, do outro (n. 43). O Sínodo Internacional dos Bispos de 1971 enfatizou que "a ação pela justiça e a participação na transformação do mundo aparecem-nos claramente como uma dimensão constitutiva da pregação do Evangelho, que o mesmo é dizer, da missão da Igreja, em prol da redenção e da libertação do gÊnero humano de todas as situações opressivas". [2]
A teologia da libertação reconheceu a necessidade de libertar as pessoas da opressão social, política e econômica e propôs meios de alcançar este objetivo. A ênfase em estruturas pecaminosas chamou os cristãos a trabalharem de forma concreta para mudar e eliminar este pecado estrutural.
A ética social católica envolve não apenas a ortodoxia (ensino do correto), mas também a ortopraxia (prática do correto). A tradição católica, portanto, tem de se preocupar com as formas concretas de superação da injustiça, promovendo justiça, paz e a integridade da criação em nossas realidades locais, nacionais e globais. Hoje, os teólogos morais têm mais consciência de suas responsabilidades em relação à promoção da mudança social, fazendo mais do que apenas ensinar o que é certo ou errado.
Nos Estados Unidos, um exemplo disso é o reconhecimento teológico do papel das organizações comunitárias para promover a mudança e gerar mais justiça na sociedade. O meu país afirma ser uma democracia, mas muitas pessoas sentem que não têm poder nem um papel a ser desempenhado na sociedade. Elas são realmente passivas e não participam nem se envolvem. Na verdade, estão distantes da sociedade mais ampla. Em grande parte, optam por nem mesmo votar. Elas desistiram de qualquer possibilidade de promover justiça e mudança. Organizações comunitárias tentam organizar os pobres e marginalizados para mostrar que por meio de seus esforços organizados é possível promover mudança e tornar a justiça mais presente. Na organização comunitária, as pessoas privilegiadas não dizem às mais desfavorecidas o que devem fazer. Por definição, essas organizações tentam encontrar e incentivar a liderança local dentro da comunidade para identificar entre as pessoas quais são os principais problemas de injustiça que elas enfrentam. Depois, identificam as melhores formas de tentar promover mudanças. As lideranças comunitárias reconhecem que, principalmente no início, é muito importante para as comunidades marginalizadas terem a experiência de poderem gerar essa mudança. Tais pequenas tentativas exitosas os incentivam a avançar em muitos outros sentidos. Incentivando o importante papel das organizações comunitárias, os teólogos católicos ajudam a mostrar caminhos concretos de superação da injustiça e mudança das estruturas sociais em uma direção mais justa. [3]
Pode-se ver prontamente por que a ética social católica precisa se preocupar com as formas concretas de promover a justiça e superar as estruturas sociais pecaminosas. O que muitas vezes é chamado ética pessoal, como a bioética, geralmente distingue-se da ética social e tem como suas preocupações os limites estreitos da disciplina. Recentemente, Lisa Sowle Cahill opôs-se a essa distinção e bifurcação. Cahill pede discurso participativo em bioética. [4] A bioética católica contemporânea muitas vezes se envolve no discurso ético limitado (“Fazer hidratação artificial nestas circunstâncias é certo ou errado?”) e em discussões políticas quais deveriam ser as políticas públicas dessas questões. Mas esta é apenas um âmbito da ação social aberto à ética teológica e religiosa. Até então, a bioética teológica entregou o jogo demais aos que definem ética em termos de discurso político essencialmente de personalismo democrático liberal. Portanto, ao seguir a abordagem geral da Bioética dos Estados Unidos, os bioeticistas católicos esqueceram-se de espaços de reforma igualmente ou mais importantes.
Eles também precisam lidar com as práticas e movimentos da sociedade civil que podem ter um impacto subversivo e revolucionário na bioética, na ciência e no capitalismo. A prática da medicina e os cuidados de saúde no ethos estadunidense estão se tornando científicos, e não humanos, direcionados principalmente pelos valores de mercado. A justiça na medicina e o acesso aos cuidados preventivos e terapêuticos são cada vez mais vistos, neste ethos, em termos de direitos individuais e liberdades com ênfase na autonomia e no consentimento informado. Por outro lado, mesmo quando traduzida para termos e categorias seculares, a bioética teológica deve dar prioridade para a justiça distributiva, a solidariedade, o bem comum e a preferência pelos pobres. A bioética teológica participativa deve voltar sua atenção com mais vigor à ética social e política de base, em níveis governamentais e não governamentais. Cahill descreve e elogia o papel da Associação Católica de Saúde (Catholic Health Association) ao trabalhar com todos esses níveis para um sistema de saúde mais equitativo. [5]
A teologia católica contemporânea reconhece a existência de um pecado estrutural que precisa ser modificado. Como as estruturas são realidades complexas, envolvendo muitos aspectos diferentes, e os pecadores não mudam com facilidade, simplesmente dizer que algo está errado não trará mudanças.
A discussão do padre Bryan Massingale ilustra bem a realidade complexa do racismo e a dificuldade de tentar mudar tais estruturas. O entendimento do senso comum considera o racismo como atos pessoais de grosseria, hostilidade ou discriminação geralmente contra pessoas negras, mas a ênfase em posicionamentos e atitudes pessoais não explica a profundidade do racismo e sua persistência na sociedade dos EUA. Segundo Massingale, a raça é um fenômeno cultural que envolve um conjunto de valores e significados que formam a vida de uma comunidade. A cultura fornece a base ideológica para políticas sociais, políticas e econômicas. O racismo é uma realidade em grande parte inconsciente, desenvolvida pelo condicionamento cultural e inculcado pela socialização. A cultura do racismo mascara a indignidade, a discriminação, a hostilidade, a desconfiança e a rejeição que as pessoas negras vivenciam apenas pela cor da pela. Elas não são aceitas da mesma forma que as pessoas brancas em praticamente todos os aspectos da existência social nos EUA. A cultura branca muitas vezes tem uma noção inconsciente que aceita o branco como a medida do que é real, padrão, normativo e moral. O privilégio branco envolve a distribuição desigual e injusta de poder, privilégios, terras e recursos materiais, favorecendo as pessoas brancas. [6]
Para ser eficaz contra o racismo, a reflexão ética católica deve adotar uma abordagem estrutural e sistêmica, reconhecendo o mal social como um fenômeno cultural do sistema simbólico de cor subjacente que explica disparidades pela raça e estrutura a consciência e a identidade, mesmo que em nível inconsciente. Para superar o racismo, é necessário mudar os privilégios, vantagens e domínio brancos. [7] Massingale apresenta uma compreensão muito clara da complexidade do pecado estrutural e das dificuldades das tentativas de superar o racismo.
Ao discutir a imigração, Kristin Heyer reconhece que os melhores argumentos morais e políticos a favor dos direitos dos imigrantes são necessários mas não suficientes. [8] Estamos lidando com pecado estrutural ou social. Assim como Massingale, Heyer refere-se a esta realidade como uma escotoma, ou seja, um tipo de cegueira. Precisamos reconhecer a dimensão inconsciente do pecado social e do impacto que as estruturas injustas tem no protagonismo moral. Existe uma relação dialética entre pecado pessoal e social. As estruturas sociais são causa e consequência na natureza. As pessoas ajudam a criar estruturas sociais pecaminosas por meio de suas ações, e as estruturas sociais pecaminosas influenciam as ações humanas.
Estruturas sócio-econômicas, culturais e políticas que se opõem à imigração estão ligadas a cegueira ideológica. Orgulho, insegurança, ignorância e egoísmo coletivo contribuem para estas estruturas que se opõem à hospitalidade aos imigrantes. O egoísmo coletivo, nas palavras de Reinhold Niebuhr, contribui para forças culturais que colocam as preocupações nacionais ou de segurança acima das morais, contribuindo para o aumento das violações aos direitos humanos e a indiferença insensível aos imigrantes.
Esses problemas inter-relacionados de pecado social exigem conversão radical, conscientização e arrependimento. A lente de culpabilidade individual não aborda o pecado social de oposição aos direitos humanos dos imigrantes. É necessária solidariedade radical à imigração como responsabilidade internacional compartilhada e o cultivo da conversão a partir das ideologias existentes e penetrantes.
Na tradição católica, os seres humanos que pecam precisam da graça de Deus para agir como filhos de Deus. Assim, a mudança de ideia é uma realidade de grande importância para o desenvolvimento da teologia moral católica. Os manuais de teologia moral, no entanto, dedicaram pouco ou nenhum espaço à necessidade de mudança da pessoa com a ênfase sempre nas ações humanas, e não na pessoa. Aqui existe uma tensão fascinante entre os mais manuais de teologia moral mais antigos e os manuais de teologia dogmática mais antigos. Os manuais de teologia dogmática defendem a tese de que seres humanos pecadores sem a graça não conseguem observar a substância do jusnaturalismo por muito tempo. [9] Em outras palavras, é preciso converter-se ou mudar de opinião para conviver com as exigências até mesmo do jusnaturalismo por um longo período. Mas para todos os efeitos práticos, os manuais de teologia moral não prestaram atenção alguma a essa doutrina encontrada nos manuais de teologia dogmática.
A tradição católica, da forma como é ilustrada no trabalho de Tomás de Aquino, reconhecia e até mesmo enfatizava que os atos devem ser vistos em relação à pessoa e suas virtudes. Mas mesmo neste âmbito, para muitos estudiosos, principalmente no final do século XIX e início do século XX, nos EUA, Tomás de Aquino foi considerado e estudado principalmente como filósofo, e não como teólogo. [10] Recentemente, os teólogos esclareceram o que Tomás de Aquino era e ainda é teólogo, e não apenas filósofo. [11]
Tomás de Aquino desenvolveu o que hoje chamamos teologia moral em IIae Ia da Summa, cujo último assunto é a graça (QQ. 109-114). A graça é necessária para a caridade e o amor cristãos. Sem ela, seres humanos corrompidos podem ter algumas boas ações, pois o pecado não corrompe toda a natureza humana. No entanto, sem ela, o ser humano é como uma pessoa doente, que pode fazer certas ações mas não todas as ações que a pessoa em perfeitas condições de saúde. Em outras palavras, as pessoas precisam de graça até mesmo para realizar as obras do jusnaturalismo com facilidade e em sua totalidade. Usando as palavras bíblicas, é preciso se converter.
Tomás de Aquino é conhecido pelo tratado sobre o jusnaturalismo. Há muitas obras e até mesmo bibliotecas dedicadas à teoria tomista do jusnaturalismo, mas ele se dedica a apenas uma questão de lei natural (Ia IIa q. 94). Muito poucos livros sobre a ética de Tomás de Aquino referem a Nova Lei, mas a Suma dedica três perguntas a ela (106-108). A nova lei não é uma lei escrita; pelo contrário, é principalmente o dom do Espírito Santo habitando em nossos corações.
Além do papel da graça e da nova lei, em grande parte de Ia IIae ele se debruça sobre o papel das virtudes, que são os bons hábitos que nos instigam a fazer o que é certo. Para Tomás de Aquino, as virtudes modificam as competências básicas da pessoa humana: o intelecto, a vontade, os apetites concupiscível e irascível para fazer o bem. Eu prefiro ver as virtudes modificando as relações humanas básicas com Deus, o próximo, o mundo da criação e consigo próprio. Em relação às virtudes, Tomás de Aquino vê o importante papel das virtudes infundidas, permitindo que o cristão desempenhe as obras sobrenaturais da caridade. Não é preciso concordar com toda a antropologia tomista para apreciar a importância das ações corretas para transformar o humano por meio da graça e das virtudes infundidas, a fim de viver a plenitude da vida cristã e humana. A teologia moral católica contemporânea tem insistido na importância do papel das virtudes.
A parte mais básica da formação da pessoa humana como sujeito e agente é continuar o trabalho da justiça, da paz e da integridade da criação. A mudança fundamental e as virtudes relacionadas ao indivíduo com Deus, o próximo, o mundo da criação e a consigo próprio reiteram que o ser humano não é uma mônada isolada.
Nos Estados Unidos, a maior diferença entre a antropologia cristã e o ethos é o individualismo, que é tão predominante no país. Em um estudo clássico, Robert Bellah e co-autores descreveram dois tipos de individualismo nos Estados Unidos. O individualismo utilitarista, que vê todas as outras pessoas e coisas como meros meio para o bem do indivíduo, e o individualismo expressivo, que insiste na necessidade do indivíduo de ser livre em todos os momentos para se expressar da forma que quiser. De acordo com este estudo sociológico, a principal linguagem dos Estados Unidos é a do individualismo. O ethos individualista é tão forte e generalizado que até mesmo as pessoas que demonstram grande preocupação com os outros - os pobres e o bem comum -, muitas vezes, usam a linguagem do individualismo para explicar suas ações. Para eles, não há outra maneira de descrever os compromissos mais amplos. [12]
Em oposição a esse individualismo, o ethos cristão insiste no bem comum, na solidariedade de todas as criaturas — seres humanos entre si e em relação ao meio ambiente — e a preferência pelos pobres. A tradição católica hoje não apenas reconhece direitos políticos e civis como o de religião, expressão, liberdade de imprensa e assembleia, mas também direitos sociais e econômicos, como o direito a alimentação, vestuário, moradia, educação e saúde. Uma grande tragédia nos Estados Unidos é o fato de ser o único país altamente desenvolvido sem um sistema de saúde universal. A justiça dos EUA é geralmente vista considerando o relacionamento entre dois indivíduos, mas a tradição católica insiste na ideia de que a justiça distributiva, envolvendo a relação da sociedade ou do Estado e o indivíduo, como, por exemplo, no distribuição justa dos bens materiais na sociedade e a justiça legal ou participativa, que reconhece a relação do indivíduo com a sociedade e o Estado, instigando a participação ativa de todos os membros da sociedade. A justiça restaurativa, na perspectiva cristã, visa restaurar as relações que foram quebradas pelo pecado na sociedade.
Na perspectiva da teologia moral católica, os indivíduos que se esforçam para viver o amor de Deus e ao próximo, com a ajuda das virtudes adequadas, têm um papel fundamental para a justiça, a paz e a integridade da criação. O papel do indivíduo, no entanto, é necessário mas não suficiente. O que mais é preciso?
A tradição social católica desenvolveu o princípio da subsidiariedade, que serve como um guia sobre como promover mudanças na sociedade. O princípio da subsidiariedade reconhece um papel importante - mas limitado - do governo na tentativa de garantir a justiça na sociedade. No entanto, entre o indivíduo e o governo estão o que os outros têm chamado de instituições mediadoras. [13] A visão católica básica da sociedade é parecida. Na base da sociedade está a pessoa, com direitos e dignidade dados por Deus. A pessoa vem antes do Estado e não pode ser subordinada a ele. Em seguida, vem a família, que é a unidade básica da sociedade para o desenvolvimento dos seres humanos. No próximo nível, estão as instituições ou estruturas, como os bairros e as famílias extensas. Vivemos nessas realidades e por meio delas. Depois, vêm estruturas e instituições um tanto independentes, necessárias para qualquer sociedade. Vamos pensar, por exemplo, no papel da imprensa e da mídia. Há muitas instituições culturais de todos os tipos para os bens mais elevados do indivíduo. Há vários tipos de instituições educacionais para promover a educação de todos os cidadãos. Mesquitas, igrejas e grupos religiosos reúnem pessoas para fins religiosos, reconhecendo que a religião também tem um papel importante para trabalhar em prol da justiça, da paz e da integridade da criação. Outros grupos que as pessoas integram por vontade própria são os chamados grupos de voluntários, como os Médicos sem fronteiras, a Union of Concerned Scientists e a Habitat para a Humanidade (Habitat for Humanity). Só depois vem o papel limitado do governo.
Em questões de justiça, paz e integridade da criação, o governo tem um papel significativo, mas não exclusivo. Os governos geralmente têm leis contra suborno e corrupção. Também existem leis para proteger o meio ambiente e evitar alterações climáticas desastrosas. Muitos governos têm padrões de milhagem e padrões de emissão para automóveis para proteger o meio ambiente. Além de leis e regulamentações, o governo pode dar incentivos para que mais pessoas deem continuidade ao trabalho da justiça social.
As associações voluntárias descritas no princípio da subsidiariedade podem promover uma cultura ou ethos para apoiar o trabalho em prol da justiça, paz e integridade da criação. Esse etos desempenha um papel instrumental de apoio às regulamentações do governo, mas tal cultura também desempenha um papel independente na sociedade. Um ethos de honestidade e transparência torna mais fácil para os indivíduos evitar as tentações ao suborno e à corrupção. Uma cultura de preocupação com o meio ambiente ajuda os cidadãos a se envolverem mais para proteger e apoiar o meio ambiente. O trabalho voluntário de reciclagem pode motivar outras pessoas a seguirem o exemplo e contribuírem para o bem do meio ambiente.
Quais são as instituições na sociedade que podem contribuir para o surgimento de tal cultura? As instituições educacionais têm um grande papel na conscientização da sociedade e dos indivíduos a respeito das necessidades nestas áreas. Uma imprensa livre pode promover justiça social e estar alerta para apontar os problemas criados por suborno e corrupção. Os grupos religiosos contribuem estimulando os fiéis a se envolverem mais na obra em prol de justiça, paz e integridade da criação. Pode haver maneiras diversas - e às vezes até conflitantes - de tornar estas políticas realidade. Algumas pessoas podem até se opor a estes esforços por justiça, paz e integridade da criação, mas podem e devem ser abafadas pela grande maioria disposta a apoiar essas medidas. Um tipo muito importante de associação voluntária que surgiu nos últimos tempos é o das organizações não governamentais (ONGs). Elas já tiveram um efeito significativo no trabalho por justiça, paz e integridade da criação no mundo todo.
A teologia moral católica pode desempenhar um papel significativo no trabalho por justiça, paz e integridade da criação, em níveis local, nacional e global. Hoje, este papel envolve mais do que apenas determinar que atos estão certos e errados. A luta pela justiça social envolve a necessidade de fazer com que estruturas e instituições justas sejam mais presentes na sociedade. Muitas vezes, esse foco pedirá por mudança em estruturas existentes injustas. A mudança estrutural é, por natureza, complexa, pois envolve diferentes fatores e relacionamentos e, por conseguinte, não é facilmente atingida. Na perspectiva teológica, as estruturas injustas são estruturas pecaminosas e, portanto, ainda mais difíceis de mudar. A paz e a justiça completa nunca estará presente neste mundo, mas o papel da teologia moral é apontar formas concretas para que seja feito algum progresso nestas áreas.
O princípio da subsidiariedade na tradição católica fornece uma abordagem que faz com que surjam mudanças como essas e, de certa forma, ilustra bem a insistência da tradição católica em uma abordagem inclusiva. O papel do indivíduo em relação a suas relações múltiplas é fundamental, mas não é suficiente. O governo também tem um papel significativo, mas também limitado. Uma função muito importante pertence à mediação de instituições e associações de voluntários que tentam mudar as estruturas, bem como o ethos e a cultura da sociedade. Ou seja, para trabalhar em prol da justiça, paz e integridade da criação, precisamos de indivíduos comprometidos, da mediação de instituições, de associações de voluntários e do governo. Mas todos esses atores precisam superar as estruturas sociais pecaminosas que oferecem suporte a muitos dos problemas da sociedade hoje.
Notas
[1] John T. Noonan, Jr., Bribes: The Intellectual History of a Moral Idea (Berkeley, CA: University of California Press, 1984), 702-05.
[2] Sínodo dos Bispos, 1971, "Justice in the World," in Catholic Social Thought: The Documentary History, ed. David J. O'Brien e Thomas A. Shannon (Maryknoll, NY: Orbis, 2010).
[3] Jeffrey Odell Korgen, Beyond Empowerment: A Pilgrimage with a Catholic Campaign for Human Development (Maryknoll, NY: Orbis, 2005); Bradford E. Hinze, Ecclesiology and Exclusion: Boundaries of Being and Belonging in Postmodern Times (Maryknoll, NY: Orbis, 2012), 221-35; P. David Finks, The Radical Vision of Saul Alinsky (New York: Paulist, 1984).
[4] Lisa Sowle Cahill, Theological Bioethics: Participation, Justice, and Change (Washington, DC: Georgetown University Press, 2005), 43-69.
[5] Ibid., 151-55.
[6] Bryan N. Massingale, Racial Justice and the Catholic Church (Maryknoll, NY: Orbis, 2010), 1-41.
[7] Ibid., 41-42.
[8] Kristin E. Heyer, "Radical Solidarity: Migration as Challenge for Contemporary Christian Ethics," Journal of American Catholic Social Thought 14 no. 1 (Inverno/2017): 87-104.
[9] Severino Gonzalez, De Gratia, in Sacrae Theologicae Summa, vol. 3, 3 ed. (Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1956), 521-29.
[10] Para ter acesso ao desenvolvimento da argumentação que enfatiza o fato de que Tomás de Aquino era filósofo, ver Charles E. Curran, The Development of Moral Theology: Five Strands (Washington, DC: Georgetown University Press, 2013), 54-61.
[11] Romanus Cessario, The Moral Virtues and Theological Ethics (Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press, 1991); Thomas F. O'Meara, Thomas Aquinas Theologian (Notre Dame, IN: University of Notre Dame Press, 1997); Servais Pinckaers, The Sources of Christian Ethics, trans. Irmã Mary Thomas Noble (Washington, DC: Catholic University of America Press, 1995); Jean Pierre Torrell, Saint Thomas Aquinas, ed. rev. (Washington, DC: Catholic University of America Press, 2005).
[12] Robert N. Bellah et al, Habits of the Heart: Individualism and Commitment in American Life (Berkeley, CA: University of California Press, 1985), 3-51.
[13] O Journal of Catholic Social Thought 2 (Verão/2005) é integralmente dedicado ao princípio da subsidiaridade.
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Charles Curran lança base para ação de justiça social - Instituto Humanitas Unisinos - IHU