10 Mai 2018
"Sabendo-se que a maioria das/os legisladoras/es brasileiras/os se encontra aliada ao Poder Executivo ora (des)governando o país, e este desmontou tudo o que podia ser feito pela implementação de reforma agrária, aquele bicho vai continuar mesmo impedindo essa política pública", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Entre os argumentos frequentes usados pelas/os grandes latifundiárias/os nas ações judiciais de reintegração de posse que tenham por objeto terras ocupadas por multidões pobres, sempre figura um eloquente e indignado argumento de violação da lei praticada por elas contra o “sagrado” (?) direito de propriedade.
Nunca ou quase nunca juízas/es e tribunais, que ouvem esse grito e tratam de demonstrar o poder que têm de agir logo em seu socorro, determinando de imediato “o uso da força pública” (?) para desapossar as/os rés/réus dessas ações, cogitam de comparar a alegada violação da lei com o que ela própria diz, mas, aí, sobre o modo pelo qual quem a invoca utiliza o bem terra alegadamente esbulhado por aquelas multidões.
Ainda que se desconsidere fato de que, em ações judiciais possessórias, como a sua própria denominação indica, nem se cogite de propriedade mas sim de posse, essa sim devendo ser comprovada, aquele tipo de interpretação da lei é visivelmente parcial, seleciona tendenciosamente apenas uma parte de todo o nosso ordenamento jurídico, de forma ilegal e injusta. Tanto o Estatuto da Terra - por sinal uma lei de 1964, época da ditadura abençoada pela grande maioria das/os latifundiárias/os rurais - como a Constituição Federal de 1988, determinam claro que é pelo uso (!) que se faz da terra que se pode julgar se o direito de propriedade sobre ela está, ou não, sendo feito de forma lícita, permitida pela lei. Um uso, passe uma evidência material como esta, não pode ser julgado apenas com a exibição de um título de propriedade registrado em cartório. Uso não é símbolo nem abstração documental. É coisa visível, mensurável concretamente, como prevê, por exemplo, o artigo 186 da Constituição Federal:
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Existem parâmetros, pois de aquilatação de um uso legal da terra, capazes de gerar convicção sobre se o direito possivelmente ainda existente sobre ela permanece válido e eficaz, ou nem merece mais qualquer tipo de defesa. Eles revelam o quanto é inconstitucional e ilegal (!) julgarem-se satisfeitas as exigências de cumprimento das obrigações da/o proprietário de terra rural, apelidando-a, tão só e de forma genérica, como “produtiva”. Uma terra explorada “produtivamente” só sob o prisma econômico, a renda que dela ou de seus frutos (?) é retirada, pode ser muito anti social e anti ambiental, condições flagrantemente vetadas pelos incisos deste artigo 186 da Constituição Federal.
Se for tomado como exemplo o uso das terras rurais brasileiras apenas sob a obrigação de respeitarem o meio ambiente, sem mesmo considerarem-se as multidões amparadas pelo direito de acesso à terra pela reforma agrária, é fácil constatar-se o extraordinário e inconstitucional reducionismo com que a tal produtividade tranquiliza e absolve toda uma forma de exploração da terra como infringente da lei. Alguns dados presentes até em sites ligados à divulgação dos méritos do agronegócio brasileiro se encarregam de demonstrar isso.
Comparem-se os números da população brasileira com os do gado aqui ocupando terra, vivendo sob cuidados bem superiores aos que a iniciativa econômica privada e o Poder Público reservam para o nosso meio ambiente e para seres humanos sem-terra, com direito de acesso à ela, pela reforma agrária. O site Mimi-Veg fazia essa comparação em 12 de julho do ano passado:
“Segundo uma pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o Brasil tem mais cabeças de bovinos (215 milhões) do que gente (208 milhões). E a questão não para por aí: um dos maiores problemas dessa grande população é que apenas uma vaca emite 1000 vezes mais metano que uma pessoa, o principal elemento do efeito estufa (GEE). O gás metano, ou Ch4, é produzido pela decomposição da matéria orgânica e também pela produção da pecuária. Atualmente, o gado é responsável por 16% das emissões mundiais de gases do efeito estufa. Quando falamos de efeito estufa, a primeira preocupação que nos vem à mente é o gás carbônico, CO2. Entretanto, o impacto do gás metano na mudança climática chega a ser 20 vezes maior do que o CO2. E não é só o aumento do efeito estufa que preocupa com o crescimento da população bovina. O gado consome uma grande quantidade de água (são necessários mais de 9 mil litros de água para a produção de meio quilo de carne) e necessita de muito espaço para a sua criação (praticamente um campo de futebol para cada boi), o que justifica parte da destruição das florestas brasileiras e o gasto de água potável. {...} Por isso, é extremamente preocupante o número absurdo de cabeças de gado no Brasil, que chegou a ultrapassar até mesmo a quantidade da população. A produção de apenas um boi gera gás metano e desmatamento para seu espaço. Multiplique este prejuízo por 200 milhões e reflita sobre o tamanho do problema ambiental que causa ao país (isso sem contar em outros lugares).
Pelo site Beffpoint, por outro lado - que ninguém há de acusar ser favorável à reforma agrária - o número de cabeças de gado no Brasil já era bem maior do que o informado pelo Mimi Veg: 218,23 milhões. Ao mais do que justo, necessário, urgente e oportuno estabelecimento legal de um módulo máximo a ser imposto ao direito de propriedade sobre terra, tramitam projetos de lei no Congresso Nacional, visando ampliar a sua capacidade de expansão, inclusive para a sua aquisição por empresas ou pessoas estrangeiras.
Assim, em função do boi, não para garantir o direito do povo se alimentar - uma pequena minoria pode ir ao supermercado comprar carne de gado por força de seu preço escorchante - mas sim para matá-lo e vendê-lo, uma orquestrada e gananciosa invasão do nosso território vai progredindo, em flagrante prejuízo de acesso à terra a quem tem direito sobre ela e à preservação da nossa já mais do que roubada natureza.
O principal sujeito protagonista da antirreforma agrária, portanto, é o boi. Sabendo-se que a maioria das/os legisladoras/es brasileiras/os se encontra aliada ao Poder Executivo ora (des)governando o país, e este desmontou tudo o que podia ser feito pela implementação de reforma agrária, aquele bicho vai continuar mesmo impedindo essa política pública. Estamos todas/os, então, sob um Poder Público bovino que nos confunde com o próprio animal e nos trata a guilhada. Curvar-se a um tratamento desse tipo nos iguala aos milhões de integrantes do rebanho vítima dessa violenta agressão.
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O boi que faz a antirreforma agrária e sacrifica o meio ambiente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU