09 Mai 2018
O último trabalho de Childish Gambino acumula 30 milhões de visualizações em três dias e despertou um entusiasmo unânime e uma infinidade de análises inteligentes.
A reportagem é de Guillermo Alonso, publicada por El País, 08-05-2018.
Childish Gambino é o pseudônimo musical de Donald Glover (Califórnia, 1983). Glover é protagonista da série Atlanta, da qual também é ocasionalmente diretor, foi roteirista de 30 Rock, apareceu como ator em filmes como Homem Aranha: de Volta ao Lar e, sob o nome de Gambino, lançou três discos de hip-hop. Em 2017, a revista Time o incluiu em sua lista das 100 pessoas mais influentes do ano. Devido ao impacto de seu mais recente trabalho, This is America, ele pode reaparecer na lista de 2018.
A peça, dirigida por Niro Murai – especialista em videoclipes para assistir estupefato durante horas – acumula mais de 30 milhões de visualizações em três dias.
A cantora Erykah Badu o chamou de “gênio”. Bernice King, filha de Martin Luther King, disse “sem palavras”. Trent Reznor, do Nine Inch Nails, afirmou: “Não me lembro da última vez que vi um videoclipe até o fim, muito menos cinco vezes seguidas. Um trabalho incrível”. Kanye West, já transformado em piada incômoda depois de ter chamado a escravidão de “escolha”, limitou-se a retuitar o vídeo, o que entendemos como uma demonstração de apoio. Ele não disse nada. É quase melhor assim.
É arriscado analisar e julgar o vídeo de This is América de fora, ou seja, para além das fronteiras dos Estados Unidos, onde 39% das pessoas mortas pela polícia são negras, mesmo que representem apenas 13% da população. This is América aponta, como a arma que Childish Gambino carrega no vídeo, para muitas direções: aos atacantes, aos atacados, aos brancos, aos negros, aos que estão no vídeo e aos que estão fora.
Para começar, do que se trata? Childish Gambino dança em um pavilhão industrial. Em primeiro lugar, quase sempre ele, com uma corrente dourada no pescoço, sem camiseta, mostrando músculos misturados com uma barriga incipiente – nada da imagem habitual do rapper cinzelado – e ocasionalmente com um grupo de dança formado por alguns adolescentes de uniforme escolar.
Enquanto isso, no fundo, fora de foco, acontece um tumulto, uma matança, uma tragédia. Ele mesmo participa dela (alguém lhe entrega uma arma e ele mata primeiro um homem com uma guitarra e todos os membros de um coral gospel depois).
Quando perto do fim do vídeo parece que ele está prestes a voltar a matar, prefere acender um baseado e dançar sobre um carro. Em seguida, como encerramento, foge de um grupo de homens e mulheres brancos (que não havia aparecido até então) que o persegue.
As teorias que voam pela Internet se contam às centenas. Glover está denunciando o massacre feito espetáculo? Está denunciando que o pop e as cores berrantes estão tirando os verdadeiros problemas de foco? Em certo momento ele canta com atitude entusiasta: “Eu sou tão bonito! Eu uso Gucci! Veja como eu danço!” enquanto no fundo do pavilhão industrial irrompe o horror. E não está nos fazendo cair nesse erro? Ele também não cai? Não haverá milhares de cabeças esquecendo a revolução enquanto ouvem uma música tão pegajosa? Fará com que centenas de milhares de pessoas que nunca haviam pensado nela comecem a considerá-la?
O debate proposto pelo vídeo é velho. E o videoclipe espetáculo que afirma que o espetáculo faz esquecer o horror que nos rodeia também (embora ninguém acredite realmente que Gambino queira vendê-lo como algo novo). Esse tipo de denúncia social revestida de artifício já foi feito por muitos. Michael Jackson quase o inventou (embora sua relação com a raça daria para uma monografia) e sua irmã Janet dedicou a essa questão um disco inteiro, talvez sua obra-prima, Rhythm Nation 1814.
Katy Perry tentou algo semelhante no ano passado no videoclipe de Chained to the Rhythm, que mostrava um parque temático com um público alienado que dançava a mesma coreografia. E Madonna arriscou em 1989, quando em Like a Prayer contou a história do assassinato de uma garota por alguns supremacistas brancos que acabam acusando um homem negro inocente. As cruzes em chamas em algumas cenas (um óbvio aceno à Ku Klux Klan) custaram-lhe um contrato milionário com a Pepsi e a ira do Vaticano.
O que é indiscutível é que a aposta no entretenimento aumentou nos últimos cinco anos e especialmente desde que Trump chegou ao poder. O filme Corra! se tornou um fenômeno cultural no ano passado e um dos poucos filmes de terror indicados ao Oscar de Melhor Filme. A primeira temporada de American Crime Story demonstrou magistralmente que o fundo da questão do personagem de O.J. Simpson consistia em um negro ao qual o dinheiro tinha transformado em um monstro branco e só voltava a recorrer à sua comunidade quando precisava jogar a carta da raça. Se existe uma palavra que pode ser aplicada a tudo isso e ao vídeo de Childish Gambino é zeitgeist, esse termo chamativo e bonito para as manchetes que define o clima cultural e moral de uma época.
This is America consegue refletir o zeitgeist da nossa: receber informações sobre o horror, a beleza, a morte e a esperança sem um filtro e como uma torrente, através de múltiplas vias, em alta definição e centenas de milhões de cores. É ler sobre o massacre em uma igreja de Charlestone em que um supremacista branco matou seis mulheres e três homens negros e, em seguida, a polêmica sobre uma discussão entre Caitlyn Jenner e alguma das Kardashian. Se Childish Gambino deixa algo claro é que o massacre chega até nós e nos emudece quando ele mesmo pega a arma e a executa. Este sim é um elemento digno de elogios.
Ontem, a propósito, na cerimônia do MET, Glover apareceu efetivamente bonito e efetivamente com sapatos Gucci.
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Por que o violento ‘This is America’ é o videoclipe do ano (preste atenção no que acontece ao fundo) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU