20 Fevereiro 2018
No outono passado, a província canadense de Quebec aprovou o projeto de lei 62, que torna ilegal para qualquer pessoa utilizar serviços públicos sem mostrar o rosto. Apelidado de lei da "neutralidade religiosa", críticos alegaram que o projeto de lei discrimina muçulmanos que usam véu como parte de sua prática religiosa - e deve ser motivo de preocupação para todas as pessoas religiosas.
A reportagem é de Christopher White, publicada por Crux, 19-02-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Nos últimos meses, surgiu outra controvérsia sobre o programa de empregos de verão do Canadá - uma iniciativa popular de financiamento a empresas e organizações para a contratação de estudantes durante as férias de verão - quando o governo do primeiro-ministro Justin Trudeau anunciou que para receber auxílios é preciso atestar que apoia o direito ao aborto no Canadá. No mês passado, um grupo de líderes judeus, católicos e muçulmanos uniram-se em protesto contra a decisão e pediram que o governo revertesse a política.
Em entrevista, o Arcebispo de Montreal Christian Lépine disse que temia que tanto o exemplo do projeto de lei 62 como o do programa canadense de empregos de verão estivessem levando o país a relegar os religiosos a "cidadãos de segunda classe".
O projeto de lei 62 - que exige que as pessoas mostrem o rosto para usar serviços públicos - afetará mais concretamente os muçulmanos que usam o niqab ou a burca se não forem feitos ajustes de ordem religiosa. Que princípios de liberdade religiosa acredita que estão em jogo aqui?
A clara intenção da lei é afirmar a liberdade de religião e de consciência em nome da neutralidade do Estado. Mas o que é a neutralidade? A neutralidade pode ser entendida - e o meu entendimento é este - como a noção de que todos são bem vindos. Não é preciso ter uma crença particular, e qualquer que seja a sua crença, em geral, você é bem-vindo - como é, como pessoa.
Quando a neutralidade se torna "você é bem-vindo, mas os sinais da sua crença não podem estar visíveis", ainda é liberdade? Ainda é ser bem-vindo? Você é bem-vindo, mas não em todos os aspectos.
Quem é funcionário do governo ou funcionário público pode dizer que estamos servindo ao objetivo da neutralidade ao excluir certos sinais. Mas, na minha opinião, faríamos mais jus à neutralidade se todos, com seus sinais particulares de crença, fossem bem-vindos. Nesse caso, o pluralismo torna-se visível; pode-se ver que somos uma sociedade pluralista. No entanto, ao dizer que nós somos uma sociedade pluralista mas certos sinais visíveis não são permitidos, o pluralismo torna-se invisível. Não acredito em uma neutralidade que exclui as pessoas.
Por que os católicos devem se preocupar com este caso?
Bem, primeiro, há a questão de princípio. Você pode dizer: "Não nos envolve, é problema dos outros." Mas um dia, pode ser conosco.
Outra preocupação é o efeito cascata. As leis têm um efeito de socialização e emitem sinais sobre o que a sociedade considera importante. Se optamos por excluir em nome da neutralidade, talvez um dia alguém esteja numa fila para utilizar serviços - talvez numa farmácia ou alguma empresa - e alguém diga: "O que está fazendo aqui com sua burca ou niqab? Volte para seu país, se não gosta aqui. Saia da fila ou tire esse sinal”. O efeito cascata dessa lei pode afetar a mentalidade das pessoas e sua capacidade de acolher os outros e suas crenças.
O senhor vê isso como um sinal de menor tolerância religiosa no Canadá?
É um sinal de menos liberdade de religião e de consciência. Alguns diriam que não é muito, mas o Papa Francisco fala da "perseguição educada", e poderia levar a isso. Acho que não é essa a intenção da lei, mas se a neutralidade do Estado for usada para excluir a manifestação pública de certas crenças religiosas, de alguma forma, você está indo na direção da criação de cidadãos de segunda classe.
O senhor acha que o Papa Francisco ajudou a construir uma ponte entre comunidades inter-religiosas em Quebec?
Alguns, em Quebec, estavam trabalhando na construção de pontes inter-religiosas antes do Concílio Vaticano II. Mas, depois do concílio, líderes religiosos e a sociedade civil fizeram um esforço consciente em construí-las. O Papa Francisco certamente ajuda nisso, com seu foco em "uma civilização de encontro". Claro, encontro significa encontrar pessoas dentro do nosso próprio sistema de crenças, mas também diz respeito a encontrar pessoas com outras crenças e outras formas de vida.
Falando de questões inter-religiosas, vários grupos religiosos uniram-se para protestar contra as mudanças do governo do Canadá em relação às diretrizes do programa de empregos de verão, que exige o compromisso de apoiar o direito ao aborto antes de receber auxílio federal. Como isso aconteceu e o que está em jogo?
Precisamos voltar à Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, publicada em 1948, que é o modelo da nossa Carta de Direitos. Nem todo mundo professava a mesma crença religiosa, filosofia ou convicções. Havia cristãos, mas também muçulmanos, ateus e um regime comunista. Após dois anos de discussão, eles tinham problemas de elaborar uma declaração comum sobre o respeito aos direitos humanos. Portanto, decidiram mudar o foco, saindo da posição inicial única e concentrando-se em fazer uma afirmação sólida da dignidade inerente a cada pessoa humana. Isso se tornou o ponto de partida, e cada grupo o justificou à sua maneira, com suas próprias religiões ou filosofias. Não se tratava de usar a Declaração para criar um sistema de crenças para julgar outros sistemas de crença ou diminui-los, mas de criar uma sociedade que incluísse diferentes sistemas de crenças e os respeitasse. Não se trata de impor o seu sistema de crenças.
A Carta de Direitos existe para proteger o pluralismo e a diversidade de religiões, crenças e modos de pensar. Não existe para que eu possa usar a minha Carta contra as crenças dos outros. Nesse sentido, não acho que se possa usar a Carta de Direitos para dizer "suas crenças, sua maneira de pensar não são as minhas, então você não vai receber auxílio do governo". O aborto não está na Carta de Direitos; por isso, para respeitar pessoas que detêm várias crenças e ser democrático, não se decide quem recebe verba ou não com base em assuntos relacionados com as suas crenças.
O senhor menciona que o Papa Francisco falou sobre a perseguição "educada" dos cristãos. Isso também é um exemplo desse tipo de perseguição na sua opinião?
No exemplo do programa de empregos de verão, eu chamaria de forma de exclusão. Diz: "Você é uma parte da sociedade, mas existem certos aspectos de quem você é que devem ser mantido em privado, e não queremos que eles sejam parte da sociedade." Nossa Carta de Direitos não foi feita para isso; foi feita para nos impedir de criar cidadãos de segunda classe.
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Canadá. Arcebispo de Montreal teme "cidadania de segunda classe" para pessoas religiosas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU