20 Dezembro 2017
A atitude de um Papa não destruirá a Igreja. Francisco pode ser mal interpretado, mas sua relação com os fiéis jamais será distorcida. Ele propõe uma radicalidade evangélica e isso mexe com as consciências. As críticas são boas, mas existe um limite: o respeito ao Pontífice. Muitas dessas críticas derivam de uma falta de fé e, a maioria, são temporais. Passarão. As mulheres que pretendem a ordenação sacerdotal a qualquer custo sofrem uma “doença psicológica”. O mundo exige uma mensagem séria, diante de tanto vazio espiritual. Estas são definições de Maria Voce, presidente do Movimento dos Focolares.
Advogada italiana, de tratamento afável e sorriso perene, Emaús (como a conhecem seus companheiros) conduz, desde 2008, os destinos de um dos movimentos católicos de maior número do mundo. Em entrevista ao Vatican Insider, repassa os principais temas da atualidade eclesial. Com realismo, mas sempre otimista.
A entrevista é de Andrés Beltramo Álvarez, publicada por Vatican Insider, 18-12-2017. A tradução é do Cepat.
O Papa Francisco convocou uma grande reforma para a Igreja, sobretudo espiritual, e apontou novas prioridades. Sua mensagem colocou vocês em crise?
Não é que tenha nos colocado em crise, porque nós, imediatamente, encontramos uma grande sintonia com Papa. Em tudo o que ele faz, em cada gesto e cada palavra que diz nos sentimos profundamente interpretados. Certamente, seu chamado é sempre a uma vida mais evangélica, mais sóbria, mais correspondente ao carisma que Chiara, Chiara Lubich, nos transmitiu. Isto certamente, neste sentido, é uma crise positiva, ou seja, um chamado contínuo a ser o que devemos ser, a ser aqueles que o carisma nos pede para ser, não uma coisa nova: aquela. Porém, com maior integralidade”.
Em tempos de João Paulo II, os movimentos eclesiais viveram um boom, mas também um desejo de fazer coisas grandes. Francisco, ao contrário, chama ao essencial. Chegou o momento de deixar as grandes manifestações e triunfalismo? Você o percebe assim?
Sim, sim, mas não me surpreende. Gosto porque digo: talvez seja o momento em que não seja possível se estender tanto, mas, ao contrário, ir em profundidade. Este ir em profundidade, penso eu, é o princípio para ir a um novo tipo de extensão. O Papa nos impele nesta direção.
Não é renunciar à missão?
Em nada, absolutamente. Pelo contrário! É um convite a atuar de forma diferente.
Francisco aposta muito nos leigos na Igreja, mas também adverte contra a tendência deles próprios a ser “clericalizados” ou confundir sua missão. A que ponto estão enraizados estes certos maus hábitos?
É uma pergunta difícil. Eu sinto que o Papa se preocupa muito com as relações. Quando valoriza os leigos, não desvaloriza o clero, porque considera que a Igreja é formada pelos leigos e pelo clero, mas cada um respeitando as funções do outro. Parece-me que, para ele, é mais importante que o leigo seja leigo, que não se torne o “factótum” na Igreja, e que o clero continue sendo clero, que seja verdadeiramente pastor, ministro, que sirva ao povo de Deus, mas que seja também capaz de dar ao povo de Deus a possibilidade de se sentir Igreja junto a eles.
Quando o Papa fala do clero, parece-me que, por exemplo, quer dar cacetadas em uns e justificar outros. Você afirma que não é assim. Por que fica essa percepção, então?
Não sei. Penso que é justo que os meios de comunicação coloquem o acento sobre o que o Papa faz ou diz, porque cada vez mais é uma autoridade que deve ser ouvida por todos. Às vezes, o que me parece exagerado por parte dos meios de comunicação é ver estas coisas como uma absoluta novidade. Este ver a história da Igreja entre: antes, isso se fazia assim e, agora, não se faz mais assim. Em certo sentido, é verdade, há coisas que não são feitas como antes, mas por quê? Porque a sociedade mudou, o recurso humano ao qual a Igreja deve servir mudou. Portanto, o Papa de hoje capta as necessidades e os desafios da humanidade de hoje. Parece bom destacar isso, mas também é justo dizer que é um caminho na história da Igreja.
É exagerada esta ânsia de descontinuidade...
Esta ânsia de novidade, de querer encontrar sempre uma descontinuidade.
Isto pode distorcer a imagem do Papa?
Sim, sem dúvida.
Também pode distorcer a mensagem ou a imagem que chega do Papa aos fiéis?
Acredito que a relação do Papa com os fiéis não está distorcida. Talvez possa estar distorcida em relação aos meios de comunicação, ou com as instituições, mas Francisco sabe chegar ao coração dos fiéis. Sabe saltar os obstáculos”.
Pode ser que Papa, muitas vezes, tenha sido mal interpretado?
Certamente.
Vocês percebem preocupação em pessoas que ouvem estas mensagens e se agitam, mesmo que depois se deem conta que não necessariamente são verdadeiras?
Isto pode acontecer. Contudo, eu não posso dizer que ouvi preocupações entre as pessoas que lido a respeito do que o Papa faz ou diz. Ao contrário, sempre sinto um grande apreço, uma abertura máxima a ele.
A eleição de Francisco provocou uma sacudida na Igreja. Como a avalia?
Parece-me que se trata de uma sacudida de retorno a uma Igreja das origens. Na Igreja como instituição, no povo, é possível sentir este terremoto. Mas, é saudável. Agradecemos a Deus por esta sacudida, exceto em alguns casos que, evidentemente, estão muito enraizados em sua situação como para estar prontos para a novidade que existe e não é possível esconder. É um retorno às origens, de acordo com o dia de hoje. Daí a novidade que pode causar medo, incomodar.
Fica surpresa com este desconforto manifestado em alguns setores da Igreja?
Não me surpreende, penso que faz parte deste caminho e que passará. A história dirá que houve um período em que as novidades do Papa foram debatidas, talvez, às vezes, criticadas, mas que ao final obteve aquilo pelo qual estimulava estas novidades. A história julgará positivamente.
Fala-se muito dos críticos do Papa porque o dissenso é notícia. Qual é a atitude que os fiéis deveriam ter frente diante deste debate?
O povo cristão deve pensar que é Cristo quem conduz para a frente a história da Igreja, que, portanto, não será a atitude de um Papa que destruirá a Igreja. Isto não é possível: Cristo não deixa destruir a Igreja, nem sequer a um Papa. Se Cristo leva adiante sua Igreja, o Papa de hoje dará os passos necessários para isso. Se somos cristãos, deveríamos raciocinar assim.
Então, as preocupações excessivas sobre as coisas temporais feitas pelo Papa podem demonstrar uma certa falta de fé?
Sim, penso que fundamentalmente derive disto, de não estar radicados na fé, seguros que Deus enviou Cristo para fundar a Igreja e que ele cumprirá seu plano ao longo da história, por meio de pessoas que se colocarão a sua disposição. Esta é a fé necessária para julgar qualquer pessoa e qualquer advento, não só ao Papa.
É dada muita importância a essas críticas?
A função crítica da humanidade existe e tampouco é errada, porque se deve saber avaliar as situações. Também com Bento XVI havia muitos contrários, e com João Paulo II.
Qual é o limite à crítica? A história está cheia de pessoas que acusam os Papas de hereges, não é novidade, mas qual é a fronteira da livre opinião na Igreja?
O respeito ao Papa. A fé no magistério. Na doutrina católica, o magistério tem uma importância tão grande como a tradição e a revelação. Portanto, é necessário ter fé nesta graça do magistério para interpretar os sinais dos tempos e dar as respostas adequadas. Se anos atrás alguém tivesse dito que as pessoas em nova união pertencem à Igreja, teria gerado escândalo. Hoje, seria um escândalo que não se diga isto, porque se diria: “O Papa restringe a Igreja somente àquelas pessoas que estão corretamente casadas, boas, que não vão contra os sacramentos...”. Assim como evolui a situação histórica da sociedade, logicamente também evolui a resposta que, na tradição da Igreja, o magistério encontra para estas novas feridas. Devemos estar seguros que o magistério da Igreja não trai a revelação, mas a interpreta aplicando às necessidades de hoje.
Como recebe a reflexão de Francisco sobre o papel das mulheres na Igreja?
Como dizia antes, o Papa enfatiza, sobretudo, as relações. Portanto, não eleva a mulher para rebaixar o homem, os dois são importantes na Igreja, porque são assim no plano de Deus. Resgatar esta complementaridade é o que mais importa ao Papa. Daí o reconhecimento de que a contribuição do “gênio feminino” na Igreja é necessária, como faria falta se não houvesse o “gênio masculino”. Mas, não falta o “gênio masculino”, até agora sempre foi preponderante na Igreja. Faltou a contribuição do “gênio feminino”, ainda que nunca completamente, pois sempre existiram conselheiras dos Papas, mas não foi suficientemente valorizado, digamos.
Parece que às santas as coisas custavam o dobro. Hoje, também é assim?
Sim, pode ser. Ter a paridade não é querer ter os mesmos papéis, mas, sim, ver reconhecida a mesma dignidade de poder colaborar com os homens. Mulheres, clero e não clero, leigos, todos, colaborar na realização do plano de Deus para a Igreja, um projeto que é de conjunto, todos juntos”.
Contudo, a opinião pública exige sinais concretos, sem funções parece que não existe valorização. Como chegar a essa valorização sem mexer no desenho original da Igreja?
Também são necessárias as funções, não digo que as mulheres não devam ter funções para ser apreciadas.
Refiro-me à ordenação sacerdotal, você sabe que há grupos de mulheres que, há anos, trabalham só com esse objetivo...
Torna-se obsessivo. Para mim, é uma doença psicológica querer, por força, ser ordenada sacerdote quando se é uma mulher!
Vocês falam muito deste assunto?
Não muito, simplesmente o vivemos. Por estatuto, no Movimento, a presidente sempre será uma mulher. Foi aprovado assim pela Igreja. Contudo, também existem muitos homens, no Movimento, que fazem sua parte junto a esta presidente mulher. Em todas as responsabilidades, a autoridade sempre reside na relação entre um homem e uma mulher. Certamente, é uma mulher que manifesta a unidade de todo o Movimento, que evidencia a importância do perfil mariano na Igreja. Não só pelo aspecto da benevolência, mas pelo caráter generativo que é peculiar da mulher e que deve perpassar a Igreja, sem sufocar o homem. Muitas vezes, a mãe prefere os filhos homens porque existe complementaridade entre os sexos, e eles não se sentem sufocados por ela, mas, ao contrário, valorizados. É assim que deveria ser na Igreja: um sexo valoriza o outro, um e outro a servem.
Qual é o estado de saúde do Movimento dos Focolares?
Eu poderia dizer: “Está bem, graças a Deus!”. Embora isto esteja certo, também ressente uma certa crise, digamos. Uma espécie de cansaço, após um tempo, com a percepção de que as pessoas que o iniciaram já não são jovens e que, embora exista uma mudança geracional, não é suficiente do ponto de vista numérico. Isto não atinge a profundidade do Movimento, a expansão de sua espiritualidade continua e a encontramos onde nem sequer a imaginávamos. Vemos que, não obstante as dificuldades e os conflitos enfrentados no mundo, as pessoas do Movimento, independente de possíveis divergências de opiniões, fazem de tudo para permanecer unidas no amor e no respeito recíproco, em uma unidade profunda, autêntica, fundada na fé em Deus e na fraternidade que sua paternidade nos presenteia. Isto é o mais importante.
Quais são os desafios que identifica à frente?
O mais importante é continuar caminhando com fidelidade a esse carisma que Chiara (Lubich, a fundadora) nos deixou. É um carisma de unidade como resposta às divisões do mundo. Estas não são as mesmas que em 1943, por isso é fundamental encarnar esse carisma e o tornar resposta concreta às necessidades da sociedade e da Igreja. Pensamos que no futuro haverá um grande desenvolvimento dos diálogos em todos os níveis, não só ecumênico e inter-religioso, mas também do diálogo com a cultura e entre as gerações.
Em quais regiões do mundo pensam em centrar seus esforços?
Neste momento, pela primeira vez, estamos fazendo uma “geopolítica” de nosso movimento. Procuramos identificar os lugares onde existe uma grande necessidade de fraternidade, como no Oriente Médio, ainda que não só. O Papa convocou um Sínodo sobre a Amazônia, ali no Brasil. Estamos levando adiante um projeto de evangelização para os povos em torno ao rio. Também pensamos na Índia. A Ásia inteira nos interpela muito. A presença pode ser estável ou temporal.
Enquanto a Igreja segue propondo sua mensagem, o mundo vai em outra direção. Os fiéis, imersos nessa realidade, parecem acabar caindo em uma espécie de “vida dupla”. Como enfrentar este paradoxo?
Este é um grande problema. Antes, os valores eram muito mais difundidos porque eram conhecidos na família, na paróquia e agora já não se ouvem. Parece que existe um grande vazio na humanidade, um vazio de sentido, e isto se vê nos resultados: a violência que aumenta, os suicídios, os jovens que se abandonam em vícios antes desconhecidos”.
Um panorama sombrio...
Gosto de ver isto como uma oportunidade, ao invés de uma dificuldade. Este vazio reivindica uma mensagem séria. Nós, cristãos, devemos estar atentos em levar a sério este vazio e oferecer uma mensagem vivida, não tanto de palavra. Infelizmente, às vezes, parece que é necessário negociar, por quê? Para manter o posto, para fazer carreira... Não são motivos cristãos, portanto que não se negocie. A radicalidade evangélica, para a qual o Papa convida continuamente, é uma mensagem clara que hoje pode ter o máximo impacto em um mundo que não tem nenhuma mensagem clara para oferecer, só o vazio. Diante desta falta de sentido, quem tem uma mensagem clara e sabe transmiti-la com uma integridade de vida, possui uma ótima possibilidade de encontrar um terreno fecundo. Quero ver este vazio como um tempo que Deus nos dá para dizer: “Cristãos, despertem!” Não é a mensagem cristã que já não vale, somos nós, os cristãos, que não vivemos sua mensagem autenticamente e, portanto, devemos nos converter. Acredito que seja um chamado à conversão”.
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O respeito ao Papa como limite às críticas. Entrevista com Maria Voce, presidente do Movimento dos Focolares - Instituto Humanitas Unisinos - IHU