09 Outubro 2017
Hugh Hefner faleceu, que Deus o abençoe - e os inúmeros milhões que sua repulsividade afetou direta e indiretamente. Sua vida foi dedicada não só ao pecado pessoal, mas também a moldar a sociedade em direções diametralmente opostas a tudo o que o catolicismo representa, desde a mercantilização capitalista do corpo até a celebração do libertinismo e a exploração das mulheres.
O comentário é de Pascal-Emmanuel Gobry, escritor e membro do Ethics and Public Policy Center, e seus artigos são publicados, entre outros, por Forbes, The Atlantic, First Things, Commentary Magazine. O presente artigo é publicado por América, 05-10-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla,
Alguns podem salientar que a Playboy agora é muito recatada em relação aos horrores pornográficos que a seguiram, mas a revista abriu caminho. Alguns podem encontrar algum valor redentor nas tentativas da Playboy de sofisticação e intelectualismo, mas os valores do Novo Testamento sugerem que uma camada de respeitabilidade burguesa piora a depravação, não atenua. A despedida convenientemente incendiária de Ross Douthat é irretocável. Segundo ele, a revolução sexual teria acontecido mesmo sem Hefner, mas ele conseguiu piorá-la. Talvez ainda seja possível mencionar algumas coisas.
Hef, como homem, não importa mais para a cultura há décadas, mas, como símbolo, continua importando. A disposição de algumas elites culturais em homenagear Hefner sem lidar com sua óbvia oposição aos valores progressistas e feministas que defendem revela que há um conjunto muito diferente de valores em jogo. A partir da perspectiva progressista, o que esse capitalista descarado tem para se orgulhar? Por que uma feminista admira um homem que drogava as mulheres? Se nossos reais valores de elite cultural são o hedonismo e o desejo por poder, e o progressismo e o feminismo são usados apenas para mascará-los de forma conveniente, Hefner é definitivamente parte desse grupo.
Não me refiro a isso como acusação, como se poderia pensar. O hedonismo e o desejo por poder são as tentações básicas do homem, e qualquer elite, em qualquer lugar, se enxergaria cada vez mais entregue a elas, mais dobrada, e qualquer elite, em qualquer lugar, justificaria essas atividades, muitas vezes acreditando sinceramente nessas desculpas, pelo menos até certo ponto. Não precisamos apontar para Hollywood para mostrar que o poder corrompe e cria um desfiladeiro para a depravação e a exploração. Basta ler a Bíblia ou lembrar a história da Igreja, bem como a história recente.
Ainda é importante notar que é assim que o mundo funciona. Acredito profundamente que ideias têm consequências, que até mesmo mudam o mundo. Mas as ideias muitas vezes também são meras cortinas para esconder interesses pessoais ou impulsos primordiais. Essas realidades coexistem, não só ao nível social, mas também individual, já que nós, trapaceiros, somos mestres em nos enganar. Esta realidade ajuda a explicar algumas das contradições no argumento progressista: a família era uma instituição burguesa opressora que precisava ser transcendida, até ser tão boa que sua definição precisasse incluir casais homoafetivos. Os direitos humanos são universais e a ciência deve ser sempre aprovada, mas os filhos não nascidos não têm direitos, e o momento em que a vida começa é um grande mistério. As incoerências marcam uma coerência mais profunda: a necessidade de excluir todas as barreiras ao individualismo expressivo.
Nunca gostei da expressão "ditadura do relativismo", do papa Bento XVI. O movimento, por exemplo, em prol do casamento homoafetivo foi uma cruzada moral por uma visão específica do bem, sem vestígios de indiferentismo, aquele bicho-papão dos papas do século XIX.
Argumentos ao estilo de "Por que se importar se não lhe afeta?" foram coadjuvantes, nunca os principais. Mas a expressão de Bento XVI reflete a maneira pela qual as premissas filosóficas tornam-se instrumentos de uma luta mais profunda. Hef era uma caricatura da misoginia, dedicada à causa da degradação das mulheres, mas tinha os inimigos certos e avançou na causa do individualismo expressivo, de modo que as feministas o celebram fervorosamente do mesmo modo.
Ainda assim, ele não aconteceu do nada. "O mundo moderno está cheio de velhas virtudes cristãs enlouquecidas", diz a célebre frase de GK Chesterton. Eu corrigiria. Acho que o mundo moderno está cheio de velhas ideias cristãs que a Igreja esqueceu. Os ateus pegaram essas ideias e levaram-nas para muito longe ou em direções destrutivas. E acredito que reconhecer isso é a chave para lidar com a modernidade. Muitos católicos veem, ou pelo menos retratam, a revolução sexual como um terremoto súbito e indesejado em uma tranquila quase utopia. Nunca seremos capazes de responder corretamente à modernidade sem entender que o "louco" disso é uma resposta às nossas falhas anteriores. Durante séculos, a Igreja esqueceu que as pessoas LGBT são filhos amados por Deus, com tanta dignidade infinita como qualquer outra pessoa. Não é de se admirar que ninguém nos ouça a respeito dessas questões agora?
Hoje, certos católicos despencam-se para seguir João Paulo II na ênfase de que a doutrina católica não é contra o sexo, nem contra o corpo, que o sexo é bom e santo, e é precisamente porque é tão bom e santo que a Igreja tem tantas regras em torno disso. Amém. Não só isso, somos informados, mas essa sempre foi a doutrina da Igreja, já que é eterna e imutável. A implicação é que qualquer um que pensa que existe algo mais do que uma relação incidental entre cristianismo e prudência está apenas gravemente desinformado. Não nos enganemos. Qual seria o resultado de uma pesquisa global com os católicos que frequentam a missa sobre o que a Igreja ensina sobre sexo, por volta de 1850? Ou 1950?
Perdoe a franqueza: acho que o que mais me enoja nele não é apenas ter transformado o corpo feminino num objeto de compra e venda; é o ter transformado num objeto feio de compra e venda. O corpo feminino ideal para Hef não é um corpo; é um iPhone: liso, sem características, plástico, incolor, inodoro, insípido. Imagino que faça sentido para um glutão ir da apreciação de comida sofisticada a devorar lixo. Mas, como o estereótipo do filho adolescente que se transforma em seu pai justamente por se rebelar contra ele, Hef não se tornou o oposto, mas o espelho do puritanismo da aversão ao corpo (em grande parte anglo-protestante) que o precedeu.
As páginas centrais da Playboy têm o mesmo relacionamento com o corpo feminino que uma imagem vitoriana de uma mulher vestida de preto até o pescoço, cobrindo os pulsos e os tornozelos: uma superimposição da projeção da patologia masculina que apaga a beleza, a especificidade e a desejabilidade dadas por Deus, criando um corpo que não é mais um corpo, mas uma ideia. Os homens sempre ficarão atraídos pela pornografia, mas apenas uma sociedade que já foi treinada em um desprezo gnóstico subconsciente pelo corpo, especialmente pelo corpo feminino, poderia ter respondido de forma positiva à estética da Playboy. E o treinamento aconteceu professando cristãos, sem surpresa notória da Igreja na época.
Não estou trazendo a expressão "tirar a viga do seu olho" - neste exemplo específico, a viga com certeza está no olho do outro. Mas gostaria de trazer a que diz: "Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai celestial." Toda história sobre a loucura da modernidade é também uma história sobre o fracasso da Igreja, e se nosso objetivo é "falar a verdade no amor", nunca devemos esquecer disso.
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A cultura cristã estadunidense abriu caminho para a revolução sexual de Hugh Hefner? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU