04 Março 2017
Ao venezuelano Arturo Sosa Abascal, prepósito-geral da Companhia de Jesus, ele aconselharia, talvez, abster-se dos calmantes. A Donald Trump (e à Europa), dos antidepressivos. É o lado médico de Francisco, que tem uma receita para todos. Com dois médicos rumo aos altares.
A nota é de Simone M. Varisco, publicada no blog Caffè Storia, 02-03-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Ser radical na profecia é o famoso sine glossa, a regra sine glossa, o Evangelho sine glossa”, explicava Francisco aos superiores-gerais reunidos no Vaticano no dia 25 de novembro passado. “Isto é: sem calmantes! O Evangelho deve ser tomado sem calmantes”.
A referência é a um dos pilares do pensamento de Francisco de Assis, e deveria ser escrito em uma receita. Francisco poderia pensar nisso depois das palavras de Arturo Sosa Abascal, novo prepósito-geral da Companhia de Jesus: “Seria preciso começar uma bela reflexão sobre o que Jesus disse verdadeiramente... Naquele tempo, ninguém tinha um gravador para registrar as Suas palavras. Aquilo que se sabe é que as palavras de Jesus devem ser contextualizadas”. Externações que, há dias, geram discussão, na fronteira entre reivindicação exegética e relativismo fonográfico.
Na receita de Francisco, os antidepressivos nem sequer aparecem, “porque a misericórdia é o melhor antídoto contra o medo”. Como recordou o papa aos participantes do 3º Encontro Mundial dos Movimentos Populares, de fato, a misericórdia “é muito melhor do que os antidepressivos e os ansiolíticos. Muito mais eficaz do que os muros, as grades, os alarmes e as armas. E é grátis: é um dom de Deus. Queridos irmãos e irmãs, todos os muros caem. Todos. Não nos deixemos enganar”. Trump e a Europa estão avisados.
Em Santa Marta, poderiam confirmar isto: a farmácia Francisco está bem abastecida, pelo menos de metáforas. Porque a relação do papa com a medicina é totalmente particular. Uma atitude que poderia se tornar ainda mais atual enquanto, na Itália, volta-se a discutir questões bioéticas, e, entre os últimos candidatos às honras dos altares, estão nada menos do que dois médicos, o pediatra espanhol Pedro Herrero Rubio e o cirurgião italiano Vittorio Trancanelli.
“A todos vocês, eu gostaria de aconselhar um remédio. Alguém vai pensar: ‘O papa é farmacêutico agora?’. É um remédio especial, para concretizar os frutos do Ano da Fé, que chega ao fim. Mas é um remédio de 59 grãos intracordiais.”
No princípio foi a Misericordina. Era o dia 17 de novembro de 2013, e o pontífice, ainda novo depois da eleição, surpreendeu os fiéis reunidos na Praça de São Pedro com a distribuição de 20 mil kits para a oração do Terço da Divina Misericórdia. “Não se esqueçam de tomá-lo, porque faz bem para o coração, para a alma e para toda a vida.”
Menos de três anos depois, no dia 21 de fevereiro de 2016, Francisco voltaria ao assunto, lançando uma nova “propaganda” da janela do escritório papal, expondo a “Misericordina Plus”.
A relação de Francisco com a medicina – feita também de improvisos – não se consuma apenas dentro do Palácio Apostólico. Se João XXIII se escondia em Castel Gandolfo para imergir na natureza do Lago Albano, e João Paulo II fugia do protocolo para ir esquiar, Francisco faz isso para comprar óculos novos. Como em setembro de 2015, em uma loja da Via del Babuino, a poucos passos da Piazza del Popolo. “Eu não quero uma armação nova. É preciso apenas refazer as lentes. Não quero gastar”, teria dito o pontífice ao vendedor.
A quebra de programa foi reproposta no ano seguinte, poucos dias antes do Natal. Uma reviravolta imprevista, no retorno do Pontifício Conselho para a Nova Evangelização, em direção a Via dei Gelsomini, na Gregorio VII. Destino: uma loja de artigos para a saúde bem abastecida com sapatos ortopédicos. Surpresa, confusão e imagens que deram a volta ao mundo.
Pelo menos tanto quanto as 15 “doenças” da Cúria diagnosticadas pelo pontífice no seu segundo discurso à Cúria Romana para os votos de Natal de 2016. Gerou grande discussão, na época, o “Alzheimer espiritual”. Se a reforma da Cúria não pode ser entendida como “uma espécie de lifting” – acrescentaria Francisco dois anos depois – e a prática do promoveatur ut amoveatur é um “câncer”, não surpreende que o pontífice não proponha soluções farmacológicas fáceis.
Nenhum recurso a “pílulas da felicidade”, nem mesmo para enfrentar as dores de cabeça que ultimamente parecem vir para o papa mais de dentro do que de fora da Igreja. “Qual é a fonte da minha serenidade?”, brincou Francisco diante dos superiores-gerais, em novembro passado. “Não, eu não tomo comprimidos tranquilizantes! Os italianos dão um bom conselho: para viver em paz, é preciso um sadio menefreghismo [não estar nem aí]”. Útil, se poderia dizer, também na vida da Cúria.
“Há dois anos, quando eu falei das doenças, um de vocês veio me dizer: ‘Aonde eu devo ir, à farmácia ou me confessar?’. ‘Bem, a ambos’, eu disse”, destacou o papa em dezembro de 2016. “E, quando eu cumprimentei o cardeal Brandmüller [que, dentre outras coisas, é um dos quatro purpurados signatários das célebres dubia sobre a Amoris laetitia], ele me olhou nos olhos e me disse: ‘Acquaviva!’. Eu, no momento, não entendi, mas, depois, pensando, pensando, lembrei que Acquaviva, quinto geral da Companhia de Jesus, tinha escrito um livro que nós, estudantes, líamos em latim, os padres espirituais nos faziam lê-lo, e se chamava assim: Industriae pro Superioribus ejusdem Societatis ad curandos animae morbos, isto é, as doenças da alma” Naquela ocasião, o pontífice quis homenagear os cardeais justamente com a nova edição italiana da obra, editada pelo Pe. Giuliano Raffo.
Há a vaidade – “osteoporose da alma” – e a “urticária”, que não deixa em paz aqueles que têm a consciência suja. Mas também aquele “reumatismo da alma”, que impede que muitos homens, também da Igreja, curvem-se à misericórdia de Deus e às necessidades dos irmãos.
Uma coleção de doenças que fizeram com que Francisco desejasse uma Igreja que saiba ser “hospital de campanha depois de uma batalha”. Porque “é inútil perguntar a um ferido grave se ele tem colesterol e os açúcares elevados! É preciso cuidar das suas feridas”, explicara o pontífice, a poucos meses da sua eleição, na sua primeira entrevista à revista La Civiltà Cattolica.
Depois, não faltam os compromissos oficiais. Causou surpresa – e algumas perplexidades inevitáveis – a participação do pontífice no Congresso Mundial da Sociedade Europeia de Cardiologia, no dia 31 de agosto de 2016, a primeira de um papa em um congresso de medicina. “Entre as mãos de vocês, passa o centro pulsante do corpo humano. Portanto, a responsabilidade de vocês é grande”, frisara Francisco.
Também foi cirúrgica a intervenção do pontífice no discurso dirigido aos membros da Comissão “Carità e Salute” da Conferência Episcopal Italiana. “Se há um setor em que a cultura do descarte mostra com evidência as suas dolorosas consequências é justamente o da saúde. Quando a pessoa doente não é posta no centro e considerada na sua dignidade, geram-se atitudes que podem levar até mesmo a especular sobre as desgraças alheias. E isso é muito grave.”
Justamente no tema dos compromissos oficiais, porém, nem todos os “remédios” de Francisco parecem funcionar. Pelo menos não contra o resfriado, por causa do qual por nada menos do que duas vezes o pontífice teve que cancelar compromissos com o cardeal Angelo Scola. A primeira, quando o arcebispo de Milão, que tinha ido ao Vaticano para convidar oficialmente o papa para a Expo 2015, não foi recebido por Francisco. Resfriado demais, disse-se, até mesmo para participar, no ano seguinte, na cerimônia prevista no Hospital Policlínico Gemelli, em Roma, onde quem iria acolhê-lo seria novamente Scola, na qualidade de presidente do Instituto Toniolo. Naquela ocasião, os turistas tiraram fotos do papamóvel vazio.
A menos de um mês da visita de Francisco a Milão, porém, outro resfriado já parece estar excluído.
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Do superior-geral dos jesuítas a Trump, Francisco tem uma receita para todos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU