03 Março 2017
Psicopolítica dos Alimentos: o poder da indústria na definição do que comemos – seja um pote de sorvete ou um copo de cerveja transgênica.
O artigo é de Juliana Dias, editora do site “Malagueta – palavras boas de se comer” (www.malaguetanews.com.br), mestre em Educação em Ciências e Saúde pelo NUTES/UFRJ, e doutoranda em História das Ciências, das Técnicas e Epistemologia, na UFRJ, em artigo publicado por Outras Palavras, 02-03-2017.
Juliana Dias pesquisa sobre alimentação, cultura e sociedade, tendo como eixo as áreas da educação e comunicação e é co-líder da associação Slow Food, no Rio de Janeiro, e membro do Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea-Rio).
Eis o artigo.
A marca Häagen-Dazs foi criada pelo imigrante polonês Reuben Mattus em de New York, em 1961. A embalagem trazia um mapa da Dinamarca e o nome das cidades de Copenhagen e Oslo, sugerindo que o sorvete de origem escandinava.
Na verdade, Häagen-Dazs não quer dizer grande coisa em línguas nórdicas, porém, o visionário criador da marca utilizou uma estratégia de marketing chamada foreign branding com a finalidade de aproveitar o valor que os consumidores costumam dar a produtos que parecem estrangeiros. O nome permitia criar histórias sobre as origens do produto. A estratégia de posicionamento da marca foi clara para o seu criador desde o início: o segmento de luxo. O senhor Mattus estava convencido de que o consumidor pagaria mais pelo prazer de comer um sorvete premium, “estrangeiro”, feito com ingredientes de primeira. Na época, a Dinamarca era reconhecida pela alta qualidade de seus produtos lácteos e os países escandinavos tinham uma imagem positiva nos Estados Unidos.
A aposta no foreign branding e o posicionamento de qualidade premium deram frutos. Mattus fez fortuna. Os mais de 30 anos de experiência no segmento de sorvetes, onde começou trabalhando desde adolescente na empresa familiar, o levaram a segmentar um nicho de mercado especifico, realçando um fator diferenciador. Ele observava como os sorvetes eram cada vez mais baratos e com menos qualidade. Sua decisão foi ir no sentido oposto. Devido ao processo de fabricação, a marca ganhou reputação como mais denso, rico em textura, convertendo-se em produto de luxo. Este tem sido o posicionamento que leva os consumidores a pagar mais pelo “melhor”.
Há 20 anos, a Häagen-Dazs pode ser comprada e desfrutada por quem pode pagar por um sorvete gourmet no Brasil. Recentemente, um polêmico edital da presidência da República previa contratar serviços de alimentação nos aviões estimado em mais de 1 milhão de reais. A lista incluída 200 potes do luxuoso sorvete.
A compra dos potes de sorvete Häagen-Dazs gerou um grande fluxo de narrativas politizadas no contexto brasileiro. Ao considerar as políticas de “austeridade” do governo, que preveem congelamento do gasto público durante vinte anos em áreas como saúde e educação, é contraditório lançar um edital público para cobrir despesas com produtos de luxo.
O presidente Michel Temer não teve outra opção a não ser anular a licitação no, por meio de nota. Desta vez, os sorvetes Häagen-Dazs para o avião do presidente Temer não serão pagos com o dinheiro do contribuinte, ao menos estes 200 potinhos. E para nós, que gostamos de falar em comida, é uma oportunidade de explorar analogias entre a mente humana e a mente pública, fazer conexões entre narrativas políticas, branding, políticas alimentares, sal, açúcar e gordura e neurogastronomia entre outros assuntos.
Como vimos, Reubens Mattus, apostou pelo estrangeirismo que apelaria à qualidade do leite na Escandinávia para impulsionar sua marca como líder do segmento de luxo. Vamos nos concentrar na Dinamarca, porque suas escolhas com relação à política agrícola são verdadeiramente interessantes, já que é o país com maior desenvolvimento e amplitude do comércio de produtos orgânicos. Há 25 anos, possui leis protegendo a natureza, a água, proibindo o uso de agrotóxicos e outros insumos químicos — o que tem permitido que 97% da população, compreenda a importância da produção sustentável.
O contexto dessas políticas de sustentabilidade, traz um elemento importante para o debate: o conhecimento dos cidadãos, seus meios de informação e sua opinião na tomada de decisões, entre as quais, as políticas de alimentação. Há mais de 20 anos, a Dinamarca realiza a Conferência de Cidadãos (CdC), que combina uma formação prévia (em que os cidadãos estudam) com uma intervenção ativa (em que interrogam) e um posicionamento coletivo (em que discutem entre si e opinam). De acordo com Jacques Testart (2011), administrador da Fundação Ciências Cidadã, na França, a CdC é composta voluntários, após sorteio de uma lista eleitoral. Na sua opinião, surge nos dias de hoje e, depois de numerosas experiências mundiais, como capaz de produzir pareceres preciosos para o uso dos tomadores de decisão, bem como de outros cidadãos.
Os observadores das conferências de cidadãos surpreendem-se com a capacidade de pessoas comuns deliberarem sobre assuntos complexos, afastando-se de questões somente locais e imediatas, para propor soluções em geral ignoradas pelos especialistas, e raramente ouvidas nas instâncias políticas. Nas palavras de Testart “estamos longe da hipótese de um “público irracional”, que seria incapaz de apreciar os efeitos reais da tecnociência. Assim, pode-se, no tempo de um “ensaio de humanidade”, transformar em cidadão responsável o “indivíduo alienado” que se manifesta em nós a cada dia” .
Ao providenciar que as conferências sejam transmitidas nos meios de comunicação, esses procedimentos aprimoram também a competência de toda a população e podem restabelecer a confiança diante dos cientistas e de suas propostas (pp. 401-402).
Nesse contexto de mobilização social, exercício democrático e político, observamos o surgimento de políticas que apontam para outro desenvolvimento possível. No final de 2015, o ministério da Agricultura dinamarquês anunciou o plano Økologiplan Danmark, apresentando como meta dobrar área de produção orgânica até 2020, em comparação com 2007. O objetivo é bem ambicioso: ser a primeira nação no mundo a produzir 100% de alimento orgânico, antes de 2020.
Para isso, a Dinamarca propõe-se trabalhar em duas frentes: aumentar a quantidade de terras agrícolas que usem agricultura biológica e estimular maior demanda para os produtos de origem comprovadamente orgânica e sustentável.
Serão privilegiados os produtores que quiserem investir na conversão de suas terras, da agricultura convencional para a orgânica e biodinâmica e os projetos que visem desenvolver novas tecnologias para a promoção da sustentabilidade no campo.
O plano prevê ainda reforçar a cooperação entre municípios, regiões e ministérios com novas iniciativas. As políticas para reforçar a demanda visam que 60% dos orgânicos sejam destinados a hospitais, escolas e restaurantes comunitários, como anunciado pelo ministro da Alimentação e Agricultura, Dan Jørgensen, ao website The Local.1 Atualmente essas instituições públicas nacionais servem 800 mil refeições por dia. A mesma política, de servir só refeições de origem orgânica, já está sendo ampliada para os ministérios dinamarqueses em suas cantinas. 2
Alguns projetos já estão em marcha: um exemplo é a criação de hortas em terrenos abandonados. Nas prefeituras, a ocupação de áreas antes baldias, com produção orgânica de hortaliças sazonais é uma realidade.
Um ponto que nos chama especialmente a atenção no programa dinamarquês. O país inteiro, com todas suas instituições, parece marchar junto para transformar-se em uma região livre de agrotóxicos. Isso revela que a alimentação saudável é assunto de estado, assim como a aceitação e preferência por alimentos orgânicos por parte dos cidadãos, Como foi mencionado anteriormente, 97% dos dinamarqueses é consciente da importância da agricultura sustentável. Território livre de agrotóxicos na mente dos dinamarqueses?
A filósofa e escritora indiana Vandana Shiva argumenta, no livro Monoculturas da mente: Perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia (2003), que a monocultura antes de ser semeada no solo precisa ocupar a mente. Vandana cunhou o termo “monocultura da mente” para se referir à colonização do poder e do saber, que tem levado o mundo inteiro a subjugar e invisibilizar sistemas agrícolas locais, herdeiros da sabedoria ancestral e milenar da humanidade.
Enquanto observamos com entusiasmo o projeto dinamarquês, o Brasil continua como campeão mundial de consumo de agrotóxicos desde 2008 — ano em que ultrapassou os EUA. Segundo dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o Observatório da Indústria dos Agrotóxicos da Universidade Federal do Paraná divulgados em 2012, enquanto nos últimos dez anos o mercado mundial de agrotóxicos cresceu 93%, o mercado brasileiro cresceu 190%. (ANVISA; UFPR, 2012 apud ABRASCO, 2015, p.49). Em fevereiro, foi anunciado que o ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) assumirá o controle das informações sobre os agrotóxicos registrados. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), subordinada ao Ministério da Saúde, não presta mais informações a respeito de agrotóxicos, inclusive sobre aqueles registrados antes de 2016. O titular da pasta do MAPA é o ruralista Blairo Maggi, conhecido como o Rei da Soja.
De acordo a matéria no site Rede Brasil Atual 3, especialistas na área analisam que a mudança no controle das informações faz parte de uma ação coordenada por representantes do agronegócio que trabalham para acelerar a tramitação e aprovação de projetos de lei que compõem o chamado “pacote do veneno”. São projetos que, entre outras coisas, vão facilitar a aprovação, o registro, a comercialização, a utilização, o armazenamento e o transporte de agrotóxicos, aumentando a presença dessas substâncias nas lavouras brasileiras. “O controle de informações no MAPA ocorre paralelamente a outras medidas em curso, sugerindo que o ‘pacote do veneno’ está sendo implementado mesmo antes de ter sido aprovado no Congresso e sancionado por Temer”, diz o coordenador da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida, Alan Tygel.
Diante dessas articulações, lançamos a questão: a aceitação do uso de agrotóxicos está na mente dos brasileiros? O agronegócio precisa do agrotóxico, o “Agro é tóxico”. No entanto, de acordo com a campanha da Rede Globo, o Agro é Pop, é tech e está na Globo!
A Campanha “Agro é Tech, Agro é Pop, Agro é tudo”4 , foi concebida pelas gerências de Marketing e de Comunicação da Rede Globo e deve estar no ar até junho de 2018. A cada 15 dias, um novo tema é apresentado ao público. Alguns dos temas abordados foram frango, café, milho, arroz, laranja e flores. Todos importantes produtos do agronegócio. Encontramos assim o poder hegemônico da mídia hegemônica a favor do agronegócio, reforçando o que Guattari, denominou fabricação capitalística da subjetividade (PORTO-GONÇALVES, 2011, p.139).
De acordo com Deleuze e Guattari, o processo de captura do qual depende o funcionamento da axiomática capitalística precisa do apoio dos aparelhos materiais do Estado para a sua construção semiótica. O Estado contribui para produzir a objetividade social quando esta seja necessariamente submetida a seu controle e sua apropriação. Ela mesmo ganha neste circuito uma necessidade absoluta, no interior dessa objetividade, onde seu constrangimento se incorpora, e ao limite onde aparece como a ordem das coisas (SIBERTIN-BLANC, 2013, p.58). Assim, a mensagem que se difunde na mídia de massa para os consumidores é que o agro é pop e no campo das políticas, as medidas em favor do modelo de produção em larga escala com uso de agrotóxicos, transgênicos e biofortificados avançam no sentido de conferir maior legalidade e legitimidade, com apoio da população. Seria esta a via para produzir, distribuir e consumir alimentos saudáveis?
De onde vem a narrativa brasileira totalmente oposta ao tão mundialmente elogiado objetivo de produção 100% orgânica na Dinamarca? No próximo texto, vamos tentar entender historicamente a partir de políticas públicas que têm influído a mente pública.
Notas:
1 Mundo sustentável
2 IDEC
3 Rede Brasil Atual
4 Portal G1
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Haagen-Danz, Temer e o país do agronegócio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU