08 Novembro 2016
Um dos temas centrais da 22ª edição da Conferência das Nações Unidas (ONU) sobre Mudanças Climáticas (COP22), que começou nesta segunda (7) em Marrakesh (Marrocos), o mercado de carbono tornou-se pilar dos esforços internacionais para incentivar reduções de gases de CO². Um grupo de acadêmicos, ambientalistas e ativistas sociais vem questionando a supervalorização que lideranças mundiais dão à precificação do carbono como solução para os problemas do aquecimento global.
A reportagem é de Flávia Villela, publicada por Agência Brasil, 07-11-2016.
No Brasil, representantes de comunidades localizadas em regiões ricas em recursos naturais relatam sofrer com o assédio de empresas voltadas para atividades econômicas florestais.
O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém (PA), Manuel Edvaldo Santos Matos, contou que as redes de comunidades indígenas, camponeses e populações tradicionais têm resistido à implantação de projetos de comercialização de créditos de carbono florestal na Unidade de Conservação Tapajós-Arapiuns, de mais de 640 mil hectares de floresta. Um projeto que estava sendo articulado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o Ministério do Meio Ambiente e organizações internacionais de gestão e conservação de florestas e de financiamento de negócios sustentáveis foi suspenso depois que indígenas ocuparam a sede do instituto em Santarém, em agosto de 2015.
“Tentaram impor um projeto que impede a população de exercer as atividades produtivas no território de forma sustentável. Além disso, muitos ali são nômades, a floresta para eles não tem fronteiras e precisa da terra para sobreviver”, comentou.
Na época, o projeto já contava com investimento inicial de R$ 385 mil da iniciativa privada, disse Matos. “O dinheiro não iria diretamente para as comunidades, mas para os cofres do governo. E de lá não teríamos o controle desse destino. Mas ainda não acabou. Estão retornando com essa discussão”, lamentou. “As comunidades temem ser proibidas de exercer as atividades produtivas de manejo dos recursos naturais, plantar mandioca, milho e outras culturas de subsistência. Precisamos é de regularização fundiária para acabar com os conflitos de terra, ter acesso à saúde e educação, à assistência técnica e política para a gente poder viver da nossa produção”, declarou.
O ICMBio informou que “nunca existiu qualquer projeto de geração de créditos de carbono. Apenas foi iniciada uma discussão com as comunidades sobre o tema, que não avançou por motivos diversos”.
Para a raizeira de Turmalina (MG) Lourdes Cardozo Laureano, a biodiversidade e o conhecimento não podem ser precificados.
“Vemos que há uma disputa pela biodiversidade do Cerrado, que é muito rica, como também o nosso conhecimento, muito ligado ao patrimônio genético. Vemos com desconfiança essa economia verde, que prioriza o dinheiro, o valor de mercado”, declarou.
“Tratamos da saúde da comunidade usando as plantas e raízes do cerrado. Conhecemos o perfil de saúde e doença das famílias, a mulher que teve parto difícil, a que o marido passou doença para ela, a família que tem dificuldade com segurança alimentar. Esse conhecimento e o uso sustentável da natureza não têm preço, mas é muito valioso”, afirmou.
A valoração do meio ambiente com mecanismos tradicionais de mercado foi tema de palestra promovida pela Fundação alemã Heinrich Böll Brasil, no Rio de Janeiro, no fim de outubro. Os conferencistas defenderam que a lógica da economia verde, baseada na métrica do carbono, causa mais danos do que benefícios ao meio ambiente e aos cidadãos do planeta.
Coautor do livro Crítica à economia verde, o pesquisador alemão Thomas Fatheuer declarou no encontro que os métodos utilizados até o momento de redução de emissões não lograram frear a devastação das florestas nem a poluição. “E ainda estão impulsionando o uso de tecnologias arriscadas e prejudiciais, como a energia nuclear, sob a alegação de que emitem menos carbono. Um estudo recente aponta que mais de 60% da produção mundial de óleo de palma estão sendo queimados para servir de combustível, florestas sendo queimadas na Indonésia para diminuir as emissões na Europa”, disse ele.
“Os caminhos para diminuir as emissões de CO² estão sendo traçados pelo mercado e não pelos cidadãos. Essa é a grande falha da economia verde”, afirmou Fatheuer. Uma das saídas para o problema, defendeu, é a abertura de espaços políticos para cidadãos evitarem violações e distorções ocasionadas pela ganância das empresas e a maior democratização das riquezas, para que a economia volte a servir ao ser humano, e não ao contrário.
A pesquisadora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Camila Moreno, coautora do livro A Métrica do Carbono: Abstrações Globais e Epistemicídio Ecológico, ressaltou que, ao longo dos anos, foi construído um discurso que acabou por justificar e naturalizar a métrica do carbono no mundo.
“A métrica do carbono é uma ficção simplificadora e despolitizante. Nega as diferentes formas de saber que dão sentido à existência de povos e de culturas no mundo. A racionalidade científica isola as contradições nas várias partes do mundo, dos ecossistemas, das cadeias alimentares, das relações sociais e de poder, religiosas, isola tudo isso em um ambiente asséptico, criando unidade no mundo”, declarou ela, ao defender que a ciência não é livre de ideologias.
“É possível no site da empresa aérea pagar um pouco mais para neutralizar a ida para a Europa. Não se questiona a sociedade do consumo, dos privilégios. Precisamos problematizar esse simplismo da teoria que enxerga a natureza como máquina. Sabemos como a ciência é produzida, financiada e controversa. A ciência é o vértice a partir do qual hoje se exerce o real poder na sociedade”, completou.
Outro aspecto negativo desse mercado, segundo os grupos críticos à economia verde, é a expansão de monoculturas. O agrônomo Luiz Zarref, da coordenação do Movimento dos Sem Terra (MST), lamentou a quantidade de terra ocupada por árvores de crescimento rápido, como o eucalipto geneticamente modificado, que acaba por destruir milhares de hectares de terra, devido à grande quantidade de água que retiram do solo.
De acordo com Zarref, os principais movimentos sociais do campo entendem que a agroecologia – agricultura a partir da perspectiva de um ecossistema sustentável – é a única possibilidade de reprodução do campesinato e de produção de alimento em larga escala. “Precisamos garantir a soberania alimentar, o que queremos produzir, onde e quando. Precisamos de reforma agrária e alimento saudável para as cidades”.
O plantio de árvores exóticas, como o eucalipto, segundo o Ministério do Meio Ambiente, sequestra dióxido de carbono da atmosfera e fornecer fonte de carvão vegetal renovável e neutro em carbono. O secretário de Mudanças Climáticas e Qualidade Ambiental do Ministério do Meio Ambiente, Everton Lucero, informou que o governo quer incentivar essa atividade econômica no país. “É um setor que valoriza os recursos naturais e a floresta e tem grande potencial de contribuição para atingirmos as metas de redução de carbono até 2025 e até 2030”, disse ele. “As empresas que trabalham nessa área estão estruturadas com ciclo de cultivo longo e estruturam o plantio considerando as áreas de preservação, corredores ecológicos e a manutenção de vegetação nativa”.
Na opinião do secretário, o modelo de desenvolvimento deve mudar, mas uma economia de baixo carbono só será alcançada no longo prazo. “Por isso, precisamos de uma estratégia que valorize os recursos ambientais e estimule a utilização de energias renováveis em substituição aos combustíveis fósseis”, disse ele.
Para o secretário executivo do Observatório do Clima, Carlos Rittl, a métrica do carbono tem sido muito útil como indicador e diagnóstico do problema. “A gente analisa a concentração dos gases de efeito estufa na atmosfera a partir da métrica do carbono. Assim como amostras de gelo na Antártica nos permitem percorrer a história de centenas de milhares de anos da concentração desses gases na massa de gelo. A métrica do carbono nos permite dizer que em pelo menos 4 milhões de anos nunca houve tanta concentração de carbono na atmosfera como hoje”, lembrou.
“Os padrões de produção e consumo atuais precisam ser modificados. Infelizmente, não vamos mudar as bases do capitalismo com todos os seus efeitos perversos a tempo de solucionar o problema das mudanças climáticas. Temos seis anos e dois terços de chance de limitar o aquecimento global a 1,5º. Precisamos mudar drasticamente essa trajetória”, afirmou Rittl.
O diretor executivo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), André Guimarães, argumentou que o fato de haver projetos ruins não inviabiliza a ideia original da comercialização de créditos de carbono. “Precisamos separar a forma do conteúdo. A forma realmente deve ser aprimorada, transparente, não deve ser um projeto imposto de cima para baixo”, disse. “Precisamos combater o mau uso do dinheiro, a apropriação de direitos das populações tradicionais, mas preservar a floresta e o desenvolvimento sustentável custa dinheiro. Se a forma está errada, melhoremos a forma, mas não deixemos de investir”.
A presidente do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC), Suzana Kahn, acredita que o mercado de carbono pode ser muito útil se não priorizar apenas a redução de carbono. “É interessante encarecer o processo produtivo que utilize carbono. Mas é preciso criar uma série de condicionantes, determinando os projetos elegíveis para entrar no mercado e mecanismos de controle eficazes”, disse ela.
O único consenso aparente é de que justiça social e democracia forte são os caminhos mais seguros para o desenvolvimento sustentável. “Se não melhorarmos nossa democracia, com reforma política abrangente, vamos continuar discutindo, debatendo, e todos vão perder. E aqueles que sempre ganharam com a exploração predatória dos recursos naturais vão continuar ganhando”, observou Carlos Rittl.
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Mercado de carbono dá licença aos mais ricos para poluir, afirmam ambientalistas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU