31 Outubro 2016
"Com o gesto ecumênico do Papa Francisco, abre-se o ano dedicado a Lutero e à sua obra, mas se manifesta de modo incisivo a distância existente em relação à tensão e à divisão que imperavam há 500 anos e na continuação dos séculos posteriores."
A opinião é do cardeal italiano Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 30-10-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nesta segunda-feira, o Papa Francisco vai cruzar o limiar da Igreja mais antiga e importante da Suécia, a Domkyrkan da cidade de Lund, sede da prestigiosa universidade à qual tinha se dirigido o velho professor Isaac Borg para receber o prêmio que selou a sua carreira, como recordam todos aqueles que viram e amaram "Morangos silvestres", o estupendo filme que Bergman filmou em 1957.
Dentro daquela obra-prima da arquitetura românica nórdica – que os turistas admiram especialmente pelo relógio astronômico do século XIV da fachada com o seu desfile de Magos a cada batida de hora – quem irá acolher o papa será a arcebispa de Uppsala, primaz luterana da Suécia, que atualmente é uma mulher, Antje Jackelén.
Anteriormente, essa teóloga ocupou precisamente a sé episcopal de Lund, onde ela também foi professora na universidade já citada: eu mesmo tive a oportunidade de encontrá-la várias vezes e de desenvolver com ela um importante diálogo na Academia das Ciências de Estocolmo.
Como se sabe, a data escolhida para esse ato ecumênico está ligada àquela quarta-feira, 31 de outubro de 1517, quando Martinho Lutero afixou (de acordo com uma tradição não estritamente documentada) as célebre 95 teses nas portas da igreja do castelo de Wittenberg, cidadezinha às margens do Rio Elba, na Saxônia, manifesto ideal do protestantismo.
Na realidade, como diz o título do editio princeps, aquelas asserções giravam em torno da questão debatida das indulgências, Disputatio pro declaratione virtutis indulgentiarum, mas já se entreviam nela os gérmens da futura Reforma. Com o gesto ecumênico do Papa Francisco, abre-se o ano dedicado a Lutero e à sua obra, mas se manifesta de modo incisivo a distância existente em relação à tensão e à divisão que imperavam há 500 anos e na continuação dos séculos posteriores.
Naturalmente, teremos ocasião de recordar ainda esse centenário que tem o seu início nesta segunda-feira. Por enquanto, nos contentaremos apenas com algumas sinalizações bibliográficas recentes, em alguns aspectos marginal.
Uma ênfase particular é logo merecida pelo breve ensaio de um cardeal teólogo alemão conhecido, Walter Kasper, que esteve, por mais de uma década, à frente do dicastério vaticano para a Promoção da Unidade dos Cristãos. O seu retrato de Lutero é em "perspectiva ecumênica", posto sob a insígnia do diálogo: de fato, "precisamos de um ecumenismo acolhedor, capaz de aprender uns com os outros" e não de nos exorcizarmos reciprocamente, interpondo logo o muro das diferenças doutrinais e eclesiais que também devem ser reconhecidas.
Precisamente por isso, é necessária uma obra de contextualização, porque Lutero está intimamente entrelaçado nos fios emaranhados de uma época histórica em que religião e política se confundiam e se confrontavam, um útero obscuro, mas fecundo, do qual nasceria a modernidade.
O grande reformador, por isso, certamente se revela revestido dos hábitos surrados de um passado já remoto, mas, ao mesmo tempo, revela uma atualidade íntima profunda, até porque ele, "com inédita energia, coloca no centro a mais central de todas as questões, a questão sobre Deus" e, consequentemente, "a questão teológica decisiva da relação entre teonomia e autonomia". O seu impulso principal não era o de fundar uma Igreja separada, mas de renovar a cristandade, levando-a novamente para a sua matriz, isto é, a glória e a graça de Deus e a fé do ser humano.
Como escreve Kasper, para além do vigor polêmico, que não lhe faltava, e dos desvios a que ele foi obrigado pelo contexto sociopolítico e pela infausta e dura reação católica, "o evangelho para Lutero (…) era uma mensagem viva que interpela a pessoa existencialmente, um encorajamento e uma promessa pro me et pro nobis. Era a mensagem da cruz, a único que dá a paz".
Para captar esse clima espiritual radical de um homem de fascínio magnético, que às vezes era até mesmo rude e brutal, mas que também sabia ser místico e delicado, pode ser útil – dentro da sua imensa produção teológica – recortar algumas das suas orações. Foi o que fizeram um teólogo valdense, Fulvio Ferrario, e uma funcionária consular, Berta Ravasi, com uma sugestiva seleção de invocações que abrangem todo o arco dos momentos espirituais e litúrgicos do dia, do amanhecer à noite, da contemplação e da tentação, do pecado e do perdão, do casamento e da família, da vida eclesial e da civil, para chegar à última hora, quando a morte, muitas vezes evocada, será abraçada porque conduz ao encontro com o amado Senhor e a Sua paz infinita.
Certamente, a Reforma protestante vai além do seu primeiro artífice e se revela mais complexa e nem sempre facilmente acessível. Uma professora de história de uma universidade estadunidense, Glenn S. Sunshine, então, propõe um perfil um pouco "impressionista" da Reforma, "para quem não tem tempo", apontando sobretudo para aquela trajetória histórica de mil ramificações que chega até a Paz de Vestfália, quando, no dia 24 de outubro de 1648, todas as potências europeias envolvidas na dura guerra político-religiosa dos Trinta Anos chegaram a um acordo, deixando cair a cortina sobre o Sacro Império Romano.
O caminho, necessariamente simplificado, acompanhado por desenhos animados um pouco grosseiros de Ron Hill, é delineado por uma angulatura protestante, mas substancialmente equilibrada e linear, e se estende por todo o horizonte europeu, incluindo, por isso, o cisma de Henrique VIII, as escolhas radicais de Zuínglio, a obra de Calvino e também aquela Suécia da qual partimos (na imponente cripta da Catedral de Lund, sustentada por 28 colunas, repousa o último arcebispo católico, Birger, que morreu em 1519, artífice da restauração daquele templo), enquanto um apêndice de Carlo Papini se interessa pelo protestantismo italiano.
Um protestantismo minoritário forçado a se defrontar, muitas vezes duramente, com a catolicidade predominante. Sem querer entrar nesse território acidentado, queremos propor apenas um curioso documento recentemente publicado pelo Comitato Edizioni Gobettiane. Trata-se de um breve ensaio sobre a "Revolução Protestante" (e o título é significativo) de um amigo de Gobetti, o conhecido pensador antifascista defensor de um liberalismo progressista: o calabrês Giuseppe Gangale (1898-1978), primeiro católico, depois ateu, em seguida maçom e, por fim, convertido ao protestantismo, com um forte compromisso intelectual e social e uma experiência de exílio em países protestantes.
Pois bem, a sua análise o leva a assumir, dentre outras coisas, um dos componentes da visão protestante, o apelo à consciência individual, para esboçar uma "revolução" que pontilharia o terreno social italiano, contaminado por aquele tipo de erva daninha que era, aos seus olhos, o catolicismo, definido sem hesitação como "o mal da Itália". Propõe-se, assim, como observa um dos nossos maiores teólogos protestantes, Paolo Ricca, no seu pontual posfácio crítico, uma religião (e uma concepção civil) em que "o homem é sacerdote de si mesmo, e a autoridade não é mais exterior, mas interior, fundada sobre a consciência autônoma e não mais heterônoma". A partir dessas páginas, consegue-se intuir, por contraste, como é complexo, mas necessário, um sério diálogo em todas as suas formas, para evitar mal-entendidos e estereótipos, simplificações e equívocos, mas descobrir também coincidências e valores comuns.
Vejam-se também:
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Annus lutheranus. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU