14 Setembro 2016
"Dois projetos de Brasil continuam hoje em choque entre si: o paradisíaco de milhares de anos atrás, traduzido no Rio Grande do Sul, pelos Sete Povos das Missões, contra o projeto europeu dos últimos 516 anos, o sistema capitalista", analisa Antonio Cechin, irmão marista, agente de Pastoral nas periferias, coordenador do Comitê Sepé Tiaraju e da Pastoral da Ecologia do Regional Sul III da CNBB. Também é autor de Empoderamento Popular. Uma pedagogia de libertação (Porto Alegre: Estef, 2010).
Eis o artigo.
À primeira vista, Olimpíada-Paraolimpíada e Impeachment da presidenta Dilma, os dois últimos e impactantes acontecimentos parecem distintos, mas por serem realizados no Brasil, obedecem, ambos, à lógica do nosso processo histórico colonizador que impera nesta nossa pátria desde o ano de 1.500 quando da “descoberta” como Terra da Vera Cruz, nome em seguida mudado para Terra de Santa Cruz e que acabou com a imposição de Brasil.
Estamos vivendo, durante 516 anos, a radicalidade que nos foi imposta pelo império português quando aqui aportaram as caravelas de além-mar como vanguardeiras do capitalismo europeu que, também, sem solução de continuidade nos divide em opressores e oprimidos.
Darcy Ribeiro, o antropólogo que mais pesquisou e mais escreveu a respeito do povo brasileiro, entre as dezenas de livros que lançou sobre o assunto, o último, como uma espécie de testamento, coroa seus esforços de síntese de uma vida inteira debruçada sobre a alma da nossa população. Trata-se do livro que leva o título de “O Povo Brasileiro” e que aborda a história da formação do povo deste nosso país. Foi escrito em Maricá, cidade do litoral do Rio de Janeiro, para onde Darcy fugiu, abandonando o hospital em que estava internado e, segundo suas próprias palavras no prefácio do livro, “na iminência de morrer sem concluí-lo”.
Logo na introdução, Darcy Ribeiro desfaz o mito da integração racial pacífica. Segundo ele, a unidade nacional resultou de “um processo continuado e violento de unificação política, logrado mediante um esforço deliberado de supressão de toda identidade étnica discrepante e de repressão e opressão de toda tendência virtualmente separatista. Portanto, esqueça todas as belas e possivelmente inverídicas palavras que você já leu sobre este país. O Brasil não foi palco nem de uma farsa, nem de uma comédia, mas de uma tragédia”.
“As elites dirigentes, primeiro lusitanas, depois luso-brasileiras e, afinal, brasileiras, viveram sempre e vivem ainda sob o pavor pânico do alçamento das classes oprimidas. O Brasil não é um país de oportunidades. A mobilidade social é praticamente inexistente. O mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes a transpô-lo, porque se cristalizaram num “modus vivendi” que aparta os ricos dos pobres, como se fossem castas e guetos. Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira de indiferença com a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram ignorar ou ocultar numa espécie de miopia social, que perpetua a alteridade”.
“...À medida que os portugueses faziam filhos nas negras e índias, uma nação de mestiços foi sendo criada”. Ribeiro descreve em detalhes o empreendimento colonial: “A empresa escravista, fundada na apropriação de seres humanos através da violência mais crua e de coerção permanente, exercida através dos castigos mais atrozes, atua como uma mó desumanizadora e deculturadora de eficácia incomparável. Submetido a essa compressão, qualquer povo é desapropriado de si, deixando de ser ele próprio, primeiro, para ser ninguém – o termo usado pelo autor é “ninguendade” – ao ver-se reduzido a uma condição de bem semovente, como um animal de carga; depois, para ser de outro, quando transfigurado etnicamente na linha consentida pelo senhor, que é a mais compatível com a preservação dos interesses patronais.”
Até aqui enfileiramos frases de Ribeiro a fim de sentirmos interiormente o linguajar em que o livro “O Povo Brasileiro” foi escrito, e para nos perguntar a nós mesmos: Poderia Darcy expressar a tragédia da “descoberta” da Terra da Vera Cruz, seguida de três séculos de colonialismo de estirpe totalmente portuguesa, continuado nas elites brasileiras de hoje, continuadoras do mesmo colonialismo, com uma linguagem e estilo mais acachapantes e de soberano horror?
Um sacerdote e teólogo amigo que assistiu Darcy Ribeiro nos últimos momentos de vida, ao pé do leito, contou-me que nosso antropólogo maior dizia, entre outras coisas, que em vida, fracassara em todas as suas frentes de luta que abraçara, porém, se tivesse que recomeçar a vida, retomaria todas elas de novo, as mesmíssimas, sem abandonar nenhuma porque achava todas como as mais importantes do mundo.
Queixava-se também Darcy da incapacidade que tinha de crer, de ter a mesma fé cristã que tivera sua falecida mãe. Aliás quantas vezes o falecido teólogo João Batista Libânio repetia em seus cursos de formação teológica: “crer nunca foi fácil!”
Junto ao leito de Ribeiro, o teólogo sacerdote encorajava-o com palavras assim: se partires desta vida, encontrarás imediatamente a Deus Jesus Cristo, que nos ama mais do que ninguém. De braços abertos, à tua espera, te receberá com as palavras: “Darcy, meu irmão, vem para o abraço e para a recompensa de toda uma vida de coragem. Todas as tuas lutas sempre foram em favor dos meus e teus irmãos, os brasileiros. Entra agora no Reino que preparei para ti desde toda a eternidade.”
Quando o teólogo me confidenciou a respeito do chamado que lhe fizera Darcy Ribeiro a fim de estar a seu lado, no instante em que os médicos não lhe deram mais esperança de vida, logo pensei com meus botões, que a dificuldade de Ribeiro em ter fé, em acreditar, tendo como base os livros às dezenas e as pesquisas sobre a alma brasileira que produziu, o escândalo impeditivo para a fé teve origem, com certeza, no fato histórico da “descoberta” do Brasil quando aqui desembarcaram ao mesmo tempo o império português personalizado em Pedro Álvares Cabral, comandante da armada, e Frei Henrique de Coimbra trazendo o tesouro da Fé Cristã.
Tão logo Frei Henrique pisou em terra firme, celebrou a primeira missa no território. Foi assistida com suma devoção pela população indígena que procurava imitar os gestos e ritos litúrgicos dos cristãos celebrantes, aliás como foi muito bem documentado tanto pelo escrivão da armada, Pero Vaz de Caminha, quanto pela pintura famosa de Pedro Américo.
O horror começou a reinar na nova terra “descoberta”, poucos dias depois do retorno das caravelas ao porto de Lisboa. Portugal esvaziou todas as prisões portuguesas descarregando deste lado do Atlântico o que por lá tinham de pior: os criminosos. Também implantou aqui o regime de escravidão, primeiro dos índios, depois dos negros e depois da população miscigenada.
Com palavras tão ou até mais graves que as de Darcy Ribeiro, a filósofa Marilena Chauí, considerada a mais importante mulher filósofa brasileira da atualidade, testemunha o horror que significa a intolerância e o verdadeiro asco para com a gente pobre, que cultiva a elite paulista dos dias de hoje, sucessora direta da portuguesa do ano de 1500.
Tudo isso nos veio à tona na noite da inauguração das Olimpíadas do Brasil, dia 5 de agosto, na encenação que fizeram, com a chegada das caravelas portuguesas junto à costa brasileira. Seguindo-se a esta cena, na noite de agosto-2016, o desenrolar de episódios considerados os mais importantes de nossa história como nação, ao longo dos 516 anos idos e vividos. Naturalmente uma apresentação triunfalista não condizente com a verdade.
Estamos convencidos de que com muito mais fidelidade histórica, o poeta e músico Chico Buarque de Holanda, através da composição de uma cantiga-parábola sob o título de Minha História, acena para algo de bem mais verídico.
Na mesma linha da análise em “O Povo Brasileiro” que faz Darcy Ribeiro, Chico Buarque de Holanda nos conta e canta o que significou para o Brasil a “descoberta” com a chegada das tais caravelas lusas no ano de 1500. Em nome de todo o continente europeu desembarcou no Brasil o sistema capitalista neoliberal, hoje fortemente questionado pelo papa Francisco que conclama as forças sociais do mundo inteiro a acabar com “o sistema que mata.”
Naquele momento histórico da “descoberta”, o povo indígena, sumamente acolhedor e que já vivia nestas terras desde mais de 6000 anos – desde o Dilúvio, diziam os guaranis em guerra contra os reis de Espanha e Portugal – contemplou deslumbrado a chegada do homem branco. Desde tempos imemoriais era a chegada do homem branco, objeto de uma lenda que acalentavam. Do lado leste, desde o mar Atlântico, chegariam criaturas humanas bem mais diferentes do que as que conheciam destas bandas de cá.
Durante a ditadura cívico-militar de 1964, Chico Buarque de Holanda, tornou-se famoso também pelo fato de ter lançado ao público brasileiro, várias canções de protesto contra a situação opressiva da época. De tanta raiva que tinha dos horrores ditatoriais de 64, ligou em “minha história” o batismo cristão de 1.500 com os tempos de chumbo de 1964. Realidade aquela de 1500 que escandalizou a vida inteira de Darcy Ribeiro, somada à gravidade do fato do Brasil, hoje, ser o maior país católico, apostólico e romano do planeta e como tal, não tendo ainda conseguido converter essa mesma elite escravocrata de séculos.
Segundo comentários que pude ouvir nos nossos meios “subversivos” próximos da carceragem em 64, a boca pequena, naqueles tempos ferozes, que recém começamos a desvendar através de Comissões da Verdade, Chico pretendia lançar uma produção sua, tendo como título o palavrão fp. Desencorajado por amigos que não o podiam imaginar preso pelos esbirros da ditadura, mudou de idéia e genialmente acabou por dar à composição, o nome de “Minha História” que damos a seguir:
“Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar
Eu só sei que falava e cheirava e gostava de mar
Sei que tinha tatuagem no braço e dourado no dente
E minha mãe se entregou a esse homem perdidamente, laiá, laiá, laiá, laiá
Ele assim como veio partiu não se sabe prá onde
E deixou minha mãe com o olhar cada dia mais longe
Esperando, parada, pregada na pedra do porto
Com seu único velho vestido, cada dia mais curto, laiá, laiá, laiá, laiá
Quando enfim eu nasci, minha mãe embrulhou-me num manto
Me vestiu como se eu fosse assim uma espécie de santo
Mas por não se lembrar de acalantos, a pobre mulher
Me ninava cantando cantigas de cabaré, laiá, laiá, laiá, laiá
Minha mãe não tardou a alertar toda a vizinhança
A mostrar que ali estava bem mais que uma simples criança
E não sei bem se por ironia ou se por amor
Resolveu me chamar com o nome do Nosso Senhor, laiá, laiá, laiá, laiá
Minha história é esse nome que ainda carrego comigo
Quando vou bar em bar, viro a mesa, berro, bebo e brigo
Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz
Me conhecem só pelo meu nome de Menino Jesus, laiá, laia, laia,liá
Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz
Me conhecem só pelo meu nome de Menino Jesus, laiá, laiá, laiá, laia
Antes de mais nada, não posso me furtar ao parêntesis seguinte: não deixemos passar em branco as excelências poéticas de Chico Buarque; demos atenção, pelo menos, a um único verso: o segundo da segunda estrofe: “esperando, parada, pregada, na pedra do porto” e perguntemo-nos se é ou não é uma autentica curtição, cantar esse verso ou lê-lo em voz alta, saboreando o papel onomatopaico das cinco palavras em fila indiana que, de certa forma, estão sob o domínio da consoante pê: esPerando, Parada, Pregada, Pedra e Porto?!... A explosão de ar de que necessitam para serem pronunciadas, exprimem ao mesmo tempo as explosões dos soluços do choro convulsivo da mulher-mãe em pranto desatado. Somemos ainda o detalhe da rima rica de porto com curto. Tudo traduz , em “minha história” uma paixão amorosa, logo seguida do desespero da inocência original abruptamente perdida.
Na parábola de Chico, a mulher-mãe é a população indígena que correu para junto da costa atlântica para a acolhida das caravelas e dos homens brancos que haviam sido considerados uns semi-deuses e principalmente pelo fato de que em meio de tanta ambigüidade, trouxeram também o tesouro da Fé Cristã, acarinhada com imensa “devoção” pelos ameríndios.
O arrivista “que falava e cheirava e gostava de mar, tinha tatuagem no braço e dourado no dente” é o navegador português. O “nome do Menino Jesus” “uma espécie de santo” “o nome de santo” “aí estava bem mais que uma simples criança” é, obviamente, a fé cristã que nunca como na “descoberta” veio em “vasos de barro” segundo a feliz expressão do apóstolo Paulo, pior até porque, aqui, agora, naquelas caravelas se tratava também da chagada de autênticos “vasos de guerra” do Império de além-mar. A população nativa deixara-se cativar pelo navegador branco e cristão, mas... como é que continuou esse capítulo inicial da paixão indígena?
O império “descobridor” do Brasil, logo que retornou a Portugal, esvaziou as prisões do reino despejando na Terra de Santa Cruz aquilo que por lá tinham de pior: criminosos e bandidos.
A canção “Minha História” é a história da “descoberta” do Brasil. Os índios foram enganados totalmente em seu primeiro amor, cativados pelo tesouro escondido que aqui chegou na ambigüidade da Fé Cristã do Deus Amor, logo mesclada com a opressão do império. As mulheres indígenas de antanho, miscigenadas e estupradas, – aliás ainda abundantemente nos dias de hoje - prostituídas, só podiam gerar fps (o palavrão). A “Terra Sem Males” a partir de então virou terra de todos os males ou terra capitalista e dizer que até hoje não conseguimos o revertério. Segundo Darcy Ribeiro, continuamos em 2016 ainda pisoteados pelas botas da classe hegemônica colonizadora, sem solução de continuidade. O impeachment nos divide inexoravelmente em golpistas e anti-golpistas.
Dois projetos de Brasil continuam hoje em choque entre si: o paradisíaco de milhares de anos atrás, traduzido no Rio Grande do Sul, pelos Sete Povos das Missões, contra o projeto europeu dos últimos 516 anos, o sistema capitalista.
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Olimpíada e Impeachment - Instituto Humanitas Unisinos - IHU