12 Setembro 2016
"O ano de 2013 abriu uma oportunidade – inclusive para o governo Dilma – e o PT perdeu a oportunidade, porque teve conflito social. E quando não se abre um caminho pela esquerda, se abre um caminho pela direita. O PT perdeu a oportunidade histórica porque não quis conflito com a classe dominante, basicamente é isso. E depois de 2013 levaram um susto e mantiveram a política mais do mesmo". A afirmação é de Valério Arcary, professor titular do Instituto Federal de São Paulo, em entrevista à Raquel Júnia da EPSJV/Fiocruz, 09-09-2016.
Segundo ele, "a herança do PT é dramática. Isso já tinha sido sinalizado pelo mensalão em 2005 e explodiu de maneira dramática em 2015 e 2016. O PT preparou o terreno para a direita voltar ao poder. E não só: ao fazê-lo em grande medida o partido se autodestruiu".
O historiador alerta que, "num momento de crise é que a esquerda radical pode crescer, e também pode crescer a direita radical. Porque nos momentos de crise é que as pessoas estão mais abertas à ideia de que há conflito, e de que alguém tem que pagar pelo preço da crise, e que, portanto, não há solução para todos. Alguns ganham, outros perdem".
Eis a entrevista.
Diversas análises identificam o crescimento da direita no país impulsionada pelo processo de derrubada de Dilma e uma maior visibilidade de pautas conservadoras ligadas à ultradireita, como o projeto Escola sem Partido. Houve uma aliança entre a direita tradicional e esses grupos para o impeachment acontecer. Agora, o governo Temer tem uma conta a pagar por esse apoio? Qual o papel da esquerda nesse momento?
Sim, o Temer sabe que no arco político-social que se montou ele também tem uma dívida. Mas ele tem outras prioridades. A prioridade dele é a reforma da Previdência e a reforma trabalhista. É isso que ele tem que entregar, se ele entregar isso e não houver uma resistência à altura, a classe dominante vai aplaudir o governo dele e evidentemente a esquerda chega em 2018 numa situação muito mais difícil. Eu acho que a esquerda tem que ser consciente que é preciso combater a extrema direita. Mas há sempre um perigo, quero alertar, de perder o foco. E não se pode lutar contra todos ao mesmo tempo na mesma intensidade. Isso é uma premissa elementar da luta política. Ainda com mais razão quando se abre uma situação mais desfavorável. E hoje é uma situação mais desfavorável do que aquela que nós tínhamos depois de 2013. A evolução da situação política brasileira não foi boa. A esperança aberta em 2013 se fechou – quando se fechou é um debate histórico interessante. Eu acho que foi rápido, logo em 2014. Porque se não avança, recua. Mas, evidentemente, havia uma janela de esperança aberta pelas mobilizações – milhões nas ruas em 2013 contra a corrupção, contra os estádios, em defesa da escola pública, em defesa da saúde pública. Essas mobilizações podiam ter tido uma evolução à esquerda e não foi isso o que aconteceu.
Por uma série de razões perdeu-se a oportunidade e depois ocorreram mobilizações de massas, numa escala equivalente a 2013, mas com o programa reacionário e uma direção reacionária. E isso significa que volta a ideia poderosa de que não se pode combater todos ao mesmo tempo. Então a esquerda não pode combater ao mesmo tempo Bolsonaro, Escola Sem Partido, Marco Feliciano e o seu machismo neandertal, e ao mesmo tempo combater o Temer e a queda do salário médio, o aumento do desemprego, a reforma da Previdência, a reforma trabalhista. É preciso um programa que tenha capacidade de unir a classe trabalhadora com os setores das classes médias, que não evoluíram à direita e tentar demonstrar força social nas ruas, que é a única coisa que pode impedir que o Congresso Nacional faça o trabalho sujo, que é o que a FIESP e a FEBRABAN exigem. Não significa que não é necessário combater a extrema direita.
Por exemplo, no movimento estudantil combater o Feliciano, o Bolsonaro, tudo isso é absolutamente viável. Agora, a esquerda tem que ter as devidas proporções, e a esquerda socialista, radical, tem que disputar a liderança com o PT e com a CUT de qual vai ser a resposta do movimento dos trabalhadores ao governo Temer. Do ponto de vista prático, a questão central é derrotar o governo Temer. Ainda que não possamos descuidar do fato de que no campo da direita há uma reorganização, e podem surgir setores mais radicais, mais reacionários, que disputam a hegemonia, quem está no poder é o governo Temer, e toda a direita apoia o governo Temer. Portanto, o foco da esquerda é combater o governo Temer. Não há campanha política mais importante do que a denúncia do governo Temer. O Fora Temer hoje é uma disputa de consciência.
Nós temos assistido a um discurso antipetista, antilulista, que tem resvalado para todo o campo da esquerda. A disputa pela ressignificação da esquerda é prioritária?
É decisiva, absolutamente decisiva. Se o PT continuar sendo o principal partido de esquerda do Brasil nós estamos muito mal. Depois de 12 anos no governo, depois de todas as oportunidades perdidas... A herança do PT é dramática. Isso já tinha sido sinalizado pelo mensalão em 2005 e explodiu de maneira dramática em 2015 e 2016. O PT preparou o terreno para a direita voltar ao poder. E não só: ao fazê-lo em grande medida o partido se autodestruiu. E ameaça levar para o buraco toda a esquerda. Assim como há um processo de reorganização da direita, há um processo de reorganização na esquerda.
Felizmente a reorganização da esquerda está um pouco mais avançada que a organização da direita. Ou seja, o PT está muito mais ameaçado pelo fortalecimento de novas lideranças dentro do Psol, pela possibilidade de construir uma frente da esquerda socialista, a reorganização da esquerda é muito mais acelerada do que a organização da direita. Ainda que eleitoralmente sejam forças equivalentes, pelas pesquisas de opinião, o fato do Bolsonaro ter 8% e a Luciana Genro ter 7%, e aí temos a margem de erro, não significa que são fenômenos simétricos. O processo de reorganização da esquerda tem um potencial de desenvolvimento maior do que a reorganização do espaço da direita. E isso é uma esperança, é preciso ir além do PT. Os limites históricos do PT estão muito claros, o reformismo quase sem reformas do PT fez com que Lula e Dilma tenham perdido as bases sociais históricas do Partido dos Trabalhadores. A grande maioria da classe trabalhadora organizada está em ruptura com o PT, e isso é extraordinariamente positivo. A questão é o que vai vir depois.
Quais são os perigos?
O perigo mais imediato é que a maldição da história se abata. Quer dizer, que a falta de imaginação e a falta de critérios e a falta de resguardo, de reservas, leve a que se cometa os mesmos erros de 30 anos atrás. Tem que surgir também uma nova esquerda, mas que seja capaz de aprender as lições do que foram os erros do PT. E a lição mais importante de todas é que uma esquerda política eleitoral sem raízes sociais fortes, sem implantação nas grandes empresas, uma esquerda política eleitoral que se transforma numa esquerda de políticos profissionais, está condenada a repetir os mesmos erros. Não adianta bater no mesmo projeto e trocar as pessoas. Se for o mesmo projeto, não vai ser trocando as pessoas que vai haver alguma mudança. Aí há pressões objetivas que são muito poderosas. Havia muita gente honrada também no PT, e que sob as pressões, colocou a mão nariz e desviou o olhar quando era claro que o PT se transformava num aparelho eleitoral turbinado por contribuições empresariais, por exemplo. E que desviou o olhar quando ficou claro que o programa de regulação, que o programa do PT não era mais um programa socialista, era um programa de gestão do capitalismo. E nos países periféricos as possibilidades de uma política de gestão do capitalismo, dissociada de base social organizada é um projeto fora da realidade. Na América Latina, na África, na Ásia, ou seja, na periferia do sistema, qualquer transformação social depende da luta de classes, depende de força social organizada, e, portanto, a esquerda é uma esquerda que tem que procurar o conflito, que tem tudo a ganhar com o conflito social. Então uma esquerda que queira fazer a gestão para diminuir conflitos está cavando a sua própria sepultura.
Há empresários que tiveram bastante influência nos governos do PT. Um deles, por exemplo, é o Jorge Gerdau, que é um dos principais financiadores do Fórum da Liberdade, o principal evento que reúne os expoentes do liberalismo. Esse é um exemplo das relações que não se romperam nos governos do PT?
A burguesia brasileira tem enorme habilidade política e pode tolerar qualquer governo, desde que os seus interesses estratégicos não estejam ameaçados. Aliás, a grande maioria da classe dominante brasileira estava durante um período, fundamentalmente de 2006 a 2010, realmente seduzida pelo papel histórico que a direção do PT, em geral, e o Lula em particular, estava cumprindo à frente do governo. E não só. A rigor, mesmo as grandes lideranças políticas dos países que dominam o mundo estavam fascinados. Rússia estava fascinada, América estava fascinada, Sarkozy [ex-presidente da França] estava fascinado. O PT parecia um exemplo de como garantir paz social num país periférico, e ao mesmo tempo preservar os interesses dos investimentos internacionais no Brasil. Eles continuam agora fascinados com o Partido Comunista da China, claro, para eles nada é comparável com o Partido Comunista da China. Mas é uma ditadura. Então tem um probleminha. Faz o serviço, mas é um regime policial militar. No Brasil foi possível manter a paz social num país periférico enquanto se realizavam excelentes negócios. Era muito mais atrativo.
É nesse sentido que você fala que é preciso utilizar com cautela o termo onda conservadora, no sentido de não legitimar um discurso do PT?
Houve uma onda conservadora, mas há uma campanha de intelectuais vinculados aos governos Dilma e Lula que utilizam o mesmo conceito, mas com outro conteúdo. Então, veja, não está errado se dizer que o deslocamento das camadas médias à direita é a expressão de uma onda conservadora. Mas eu sou muito prudente com as palavras porque as palavras também estão em disputa. Eu não acho bom que a esquerda anticapitalista utilize, para explicar a evolução da situação política brasileira, o mesmo vocabulário do PT. Eu acho que isso cria confusão na cabeça das pessoas. Qual é o discurso do PT? O PT explica: ‘os governos do PT foram uma maravilha, Dilma esteve muito bem no primeiro mandato, Guido Mantega era um gênio, as políticas desenvolvimentistas, o papel do BNDES, a política de formar grandes empresas, a nacionalização de toda uma logística para a exploração do pré-sal, tudo isso foi um projeto absolutamente genial, e o que aconteceu que levou a queda do governo Dilma é que, apesar de haver um governo extraordinário, há uma classe média reacionária que não aceita chegar no aeroporto e subir no avião junto com trabalhadores assalariados, com operários’. Não foi por causa disso. A classe média não foi pra rua porque ela chegou ao aeroporto e tinha que ficar na fila junto com operários e com trabalhadores negros ou jovens da periferia.
É uma construção ideológica que não quer admitir aquilo que é absolutamente central: nós chegamos a 2015 com três anos de regressão econômica. Portanto, se o Brasil voltar a crescer daqui a um ou dois anos a 3%, será necessário uma década para a gente voltar ao PIB que o Brasil tinha em 2014. Esse é o resultado do que foi o governo Dilma, uma estagnação profunda. Só que eles estavam absolutamente convencidos de que tinham um pacto com a classe dominante e que estava tudo resolvido. Não estava tudo resolvido. O ano de 2013 abriu uma oportunidade – inclusive para o governo Dilma – e o PT perdeu a oportunidade, porque teve conflito social. E quando não se abre um caminho pela esquerda, se abre um caminho pela direita. O PT perdeu a oportunidade histórica porque não quis conflito com a classe dominante, basicamente é isso.
E depois de 2013 levaram um susto e mantiveram a política mais do mesmo. Então a fórmula da onda conservadora ela é utilizada por diferentes autores com diferentes significados para o fato de que a classe média foi às ruas, aos milhões, para derrubar o governo Dilma. E isto é verdade, em terminologia marxista significa o deslocamento desfavorável da relação social de forças. Isso aconteceu fundamentalmente porque o PT foi incapaz, apoiado na sua base social, e na mobilização da sua base social, de tomar iniciativas a partir do governo que respondessem ao aprofundamento da crise, que não atingiu somente o Brasil. Isso é, digamos, um desenvolvimento de uma situação do mercado mundial que atingiu todos os países periféricos a partir de 2012, não foi só no Brasil que houve explosões em 2013.
O [Vladimir] Putin [presidente da Rússia] teve que enfrentar mobilizações em Moscou em 2012 com centenas de milhares nas ruas, de jovens nas ruas, autoconvocados através das redes sociais, antes de junho de 2013 no Brasil. E o mesmo aconteceu com o movimento dos ‘Indignados’ da Espanha, com mobilizações imensas em Barcelona e em Madri, ou em Portugal. Então nós temos um quadro internacional que é uma mudança da situação econômica e social do mundo, e o governo do PT, o governo Dilma, foram incapazes de oferecer uma saída para isso. Eu repito que atrás de uma fórmula da onda conservadora tem uma análise perigosa que é uma análise que legitima o governo Dilma. É impossível entender a evolução da situação a partir de 2013 sem considerar o que foi o impacto do escândalo da Petrobrás, é evidente que o PT está inteiramente enterrado no esquema da Petrobrás. Porque evidentemente o aparato do partido tinha uma relação com o grande empresariado através das estatais, de financiamento ilegal, inclusive de enriquecimento. E isso foi desmascarado, não é uma invenção. O perigo da simplificação da fórmula onda conservadora é considerar que é irrelevante o processo da Petrobrás. Não é irrelevante o processo da Petrobrás. O país não é mais um país agrário e rural, que tem uma maioria da população analfabeta, é um país urbanizado, um ritmo histórico muito acelerado, que realizou em meio século uma transição do mundo agrário, que nos países centrais consumiu 300 anos. E hoje a classe trabalhadora brasileira, em particular os jovens, tem uma escolaridade muito mais elevada, e não estão dispostos a tolerar que os seus líderes se locupletem e enriqueçam através de relações promíscuas com os grandes grupos econômicos.
E essa bandeira da luta contra a corrupção parece estar agora nas mãos da direita...
E ficou nas mãos da direita porque o PT no poder aperfeiçoou os esquemas de financiamento ilegal que foram construídos pela direita. Evidentemente que o PT é responsável por isso. Ninguém obrigou o PT a ter relações com o Renato Duque ou com o Paulo Costa, na Petrobrás, isso foi uma construção consciente. É este, digamos, o perigo. Qual é a construção ideológica? A construção ideológica feita pela direita é que quando os trabalhadores chegam ao poder os seus representantes querem enriquecer e viver como os burgueses. Então nessa visão infantil do mundo, a vantagem de eleger os ricos para governarem a sociedade é que eles já são ricos. E isso tem um apelo para o senso comum. Então aqui é uma disputa ideológica em torno da luta contra a corrupção que tem que ser feita pela esquerda radical. E é por isso que a reorganização da esquerda tem que avançar delimitando-se claramente do PT. A esquerda não pode deixar essa bandeira na mão da direita. A luta contra a corrupção é uma luta democrática tão importante quando é a luta pelo direito da interrupção voluntária da gravidez, tão importante quanto a luta pela descriminalização das drogas. É uma luta democrática.
Você citou a crise econômica que não atingiu apenas o Brasil, embora o governo não tenha conseguido dar respostas. Para além dessa responsabilidade do governo do PT, podemos considerar que historicamente é típico de momentos de crise a ascensão de grupos de ultradireita?
Sim. A crise torna a vida das pessoas muito mais difícil. O que é uma crise? A crise se abre porque a sociedade está inserida num contexto em que são necessárias mudanças. O Brasil está em crise porque há uma estagnação brutal. Repito, nós perdemos 10% do PIB nos últimos três anos, isso é uma crise. Um país como o Brasil não pode parar de crescer. É um país que ainda está completando a transição do mundo agrário para o mundo urbano, e o capitalismo brasileiro está demonstrando enormes dificuldades enquanto sistema social para fazer essa transição. Então nós estamos em crise, e ela se traduz na vida das pessoas pelo fato de que os jovens não arranjam emprego, quando são empregos com salários abaixo do salário médio. Há crise porque são cortados os programas sociais, as verbas disponíveis para a educação, para a saúde, para a segurança pública são contingenciadas, a vida das pessoas fica pior, mais difícil. Diante disto há inevitavelmente, em todas as classes sociais, uma pressão para encontrar uma saída. Como se resolvem os problemas, quais são as medidas que tiram a sociedade da crise? Os capitalistas têm um programa. Eles dizem que é necessário um choque de mais capitalismo. Dizem que nós temos que nos tornar atrativos para investimentos internacionais e, para isso, os custos produtivos têm que ser reduzidos, o peso fiscal do Estado tem que ser diminuído. Para isso é necessário que o desemprego exerça uma pressão muito forte durante algum tempo para que os investimentos voltem a ser atrativos. Mas basicamente significa que o salário médio em dólares, que ainda está alguma coisa em torno de 650 dólares, caia abaixo disso. Veja, hoje o salário médio na Rússia é menor do que no Brasil, gira em torno de 350 dólares. Então é disso que se trata.
Nós temos um salário médio nacional, avaliado pelo IBGE, quase o dobro do salário médio da Rússia. Então, a classe dominante está dizendo: aqui há uma saída, apertar o cinto e no futuro, depois da redução dos custos produtivos, a economia voltará a crescer. É um discurso duríssimo, e ao ser duríssimo ele vem num embrulho, para que as pessoas não compreendam exatamente aquilo que está sendo feito. Para que elas pensem que os desempregados estão desempregados porque é culpa deles, porque se eles tivessem desenvolvido qualidades X, Y, Z, arranjariam um emprego, o que é evidentemente uma tolice. Quando você tem 11 milhões de desempregados o discurso de que são 11 milhões de pessoas são culpadas pelo seu próprio desemprego é um disparate. Muito bem, a esquerda, especialmente a esquerda radical, tem que ter um discurso político coerente. Ela tem que dizer: isso é o resultado do que é o capitalismo, o capitalismo no momento da crise faz o preço da crise desabar unicamente sobre os ombros da classe trabalhadora, porque eles estão preocupados em recuperar a sua taxa média de lucro e não investem, boicotam investimentos, e, portanto, acentuam a crise, enquanto não recuperarem uma taxa média de lucro mais favorável. E inclusive enquanto não conseguirem atrair capitais externos para se associarem, para fazerem investimentos mais seguros. Muito bem, há, portanto, uma disponibilidade subjetiva, a atitude das pessoas fica mais disponível para discursos radicais em momentos de crise. Em períodos de bonança os discursos radicais assustam. Num momento de crise é que a esquerda radical pode crescer, e também pode crescer a direita radical. Porque nos momentos de crise é que as pessoas estão mais abertas à ideia de que há conflito, e de que alguém tem que pagar pelo preço da crise, e que, portanto, não há solução para todos. Alguns ganham, outros perdem.
Foi o que aconteceu nos momentos que antecederam as experiências fascistas?
Claro. O nazi-fascismo é todo um discurso exaltado em torno da nação e do direito histórico de uma nação e de um povo. É um discurso de uma radicalidade para impor uma saída ditatorial, autoritária, num momento de crise, evidentemente. Embora no Brasil as pessoas tenham dificuldade em entender o nazi-fascismo, porque o nazismo está muito associado ao Holocausto. O Holocausto não era o plano de nazismo, hoje nós temos toda uma pesquisa histórica sobre isso. O plano do nazismo era a imposição de relações pré-capitalistas, de trabalho forçado em grande escala. O que Hitler fez quando chegou ao poder foi construir campos que eram campos de trabalho escravo, que evidentemente foram essenciais para a reconstrução do aparato industrial e militar da Alemanha. A partir de 1934 já havia dezenas de milhares, em 1935, centenas de milhares, depois a escala foi crescendo até milhões de escravos em indústrias. Os judeus primeiro foram escravizados como operários. Sabe quando que os nazistas decidem o Holocausto? Eles decidem o Holocausto quando o nazismo não tem mais como alimentar os judeus e ao mesmo tempo alimentar o exército. Então tinham que decidir se as rações disponíveis iam para a frente oriental, para alimentar o exército, ou iam para as indústrias. E eles fecham as indústrias com os operários judeus e mandam para os campos de extermínio. Bom, isso é pouco conhecido porque a história do nazismo foi em grande medida manipulada. Então não podemos entender o que foi o stalinismo sem entendermos que os campos de concentração do stalinismo eram campos industriais de trabalho forçado. E esse é o mundo contemporâneo. No mundo contemporâneo escravizar, ou pelo menos, impor uma disciplina política social sobre a classe trabalhadora é a chave da sobrevivência do capitalismo. E hoje o que nós estamos assistindo é uma nivelação mundial das condições de trabalho da classe trabalhadora. E evidentemente o patamar desse processo é a indústria chinesa.
O objetivo dos capitalistas é ganhar dinheiro, e para isso é preciso explorar o trabalho. Eles não são, digamos, a nossa classe dominante não é uma classe de psicopatas, embora a política que defende represente uma destruição da vida civilizada, tal como nós a conhecemos. Porque impor condições de vida asiáticas às classes trabalhadoras brasileiras é uma regressão histórica espantosa. Mas é disso que se trata. A questão central do mundo contemporâneo é como se desenvolve a acumulação de capital. E essa é a batalha decisiva da esquerda radical, se ela não compreender isso vai perder o bondinho da história. E o Temer é o instrumento disso, ele sabe muito bem o que quer: nivelar o salário médio nacional e o salário médio industrial em pisos que façam o Brasil ser competitivo na atração dessa enorme massa de capitais que há no mundo, que não sabe investir onde, para produzir o que, para depois vender para quem.
O que eles não contam,mas ainda têm medo, é qual vai ser a reação da classe trabalhadora. A derrubada do governo Dilma pelo Congresso foi o resultado de uma inversão desfavorável da relação social de forças. Houve dois processos: o deslocamento da classe média à direita e a ruptura da classe trabalhadora com o petismo. Como um processo foi mais acelerado do que o outro, ou seja, a classe média girou à direita mais rápido do que a ruptura da classe trabalhadora com o petismo, isso fez com que a capacidade de mobilizar da classe média tenha sido maior do que a capacidade de mobilizar os trabalhadores. Muito bem. A grande pergunta é qual vai ser a reação da classe trabalhadora e dos seus aliados sociais aos ataques do governo Temer. Essa é a grande pergunta. A questão decisiva que o Temer teme, só para fazer um trocadilho, é uma explosão da classe trabalhadora. Ele tem medo.
Por exemplo, no mês passado os trabalhadores das Mercedes Benz começaram a queimar os seus crachás na porta da empresa. Agora, imagina o que é uma fábrica como a Mercedes Benz ocupada – porque lá é demissão em massa, nós estamos falando em 1.800 demitidos na Mercedes Benz. Imagina uma fábrica como essa ocupada. Isso é possível? Claro que é possível. Mas vai acontecer? Não sei. A classe trabalhadora vai aceitar o desemprego em massa sem reação? Vai aceitar a deterioração das suas condições de trabalho sem reação? Mais de uma vez a classe trabalhadora, a juventude brasileira, foram subestimados no passado. O mesmo, por exemplo, em relação às universidades, com as verbas sendo cortadas. Imagina uma onda nacional de ocupações em universidades, onde é que isso pode acabar?
Essa evidentemente é a esperança. A esperança de que haja uma reação duríssima da classe trabalhadora, que evidentemente vai produzir medo na classe média. Sim, é disso que se trata. A classe média só se divide quando ela é aterrorizada pela força da mobilização da classe trabalhadora. Se ela não for aterrorizada pela classe trabalhadora, pelos assalariados, ela se inclina para o lado da classe dominante. Ela pode se levantar. Nós ainda temos mais de 10 milhões de operários industriais no Brasil, temos 12 milhões de funcionários públicos, ainda vai correr muita água debaixo das pontes. O Temer ainda não pode botar a vela no bolo antes da hora.
Sobre essa massa que se deslocou à direita nos últimos anos, algumas análises não identificam no grosso dessas manifestações pelo impeachment uma pauta reacionária em aspectos como saúde, educação. As pessoas não são exatamente liberais a ponto de defender a privatização desses direitos. Mas por outro lado, existe esse pensamento também, embora, segundo alguns analistas, apareça mais na periferia dessas manifestações, associado ainda a pautas de ultradireita. Como podemos caracterizar esses grupos em relação aos diferentes graus de conservadorismo?
Certamente há uma diferença. Existiu uma ultradireita nas ruas, um núcleo duro que defende as reformas liberais, mas algo mais do que isso, defende um Estado forte. Ou seja, há uma ultradireita que entre outros componentes, tem nostalgia da ditadura militar e que não está satisfeita com o regime democrático eleitoral porque percebe que esse regime permite que haja a expressão do conflito social. Então há uma extrema direita que quer impedir a expressão do conflito social, quer, portanto, um Estado forte que impeça a auto-organização da classe trabalhadora e dos setores populares no Brasil. É uma ultradireita que estaria insatisfeita com a legalização de sindicatos e movimentos sociais que lutam pela moradia.
Depois, na ultradireita há também outras componentes como a força política vinculada a uma parte do movimento evangélico. Essa é uma ultradireita dos costumes que tem uma visão muito conservadora, que se apoia numa base social popular que é muito relevante no Brasil porque nós somos um país que saiu relativamente há pouco tempo do mundo agrário. Então, uma ultradireita que se apoia na religiosidade das massas, no conservadorismo e até mesmo na resistência de setores populares ao modo de vida urbano. Portanto, resiste ao movimento de mulheres, ao movimento contra a homofobia, aos movimentos contra o racismo.
E finalmente existe, digamos, a direita encabeçada pelo PSDB, que é o grande partido da classe dominante brasileira, e defende um programa liberal. Esse programa se organiza em torno de uma ideia chave que é: o mercado faz uma alocação de recursos superior ao Estado. E, portanto, mesmo na área da educação e da saúde, para não falar já da segurança pública, para citar três setores chaves, acha soluções de mercado e avança na privatização. Parte da premissa que há alguns serviços públicos essenciais que têm que ser garantidos, porém, depois de uma universalização muito restrita de direitos sociais, cada família e cada pessoa tem que ir à luta por aquilo que corresponde aos seus interesses.
E como a classe média se comporta em relação a esses posicionamentos?
O problema é como definimos a classe média. Fundamentalmente, a classe média, na sociedade moderna, tem dois grandes componentes que estão entrelaçados, mas que numa análise fina precisam ser analisados separadamente. Existe uma classe média tradicional que está apoiada na pequena propriedade – sejam os pequenos comerciantes, os pequenos produtores, urbanos ou rurais, ou os pequenos proprietários de imóveis – e a defesa dos interesses ligados à propriedade explica em grande medida o seu comportamento político. Por outro lado, há outro setor da classe média que nós podemos chamar de a nova classe média, que são as classes médias modernas, urbanas, que se articulam em torno do trabalho especializado. São aqueles que através da educação superior encontraram lugar na sociedade, que é próprio da urbanização capitalista da segunda metade do século 20, que chegou atrasada no Brasil.
Esses dois são assalariados, mas são setores da classe média não só porque estão articulados com heranças, mas porque historicamente o atraso da urbanização e da industrialização, e o próprio atraso cultural do Brasil, permitia àqueles que tinham acesso a um grau de escolaridade mais elevada, mesmo quando assalariados, pertencer a uma camada muito privilegiada de assalariados. Até muito recentemente, quando você terminava um curso superior você já entrava no mercado de trabalho tendo um piso que oscilava entre sete e dez salários mínimos. Isso mudou. Ou seja, aqueles que vivem do trabalho hoje são uma classe mais homogênea e, portanto, a diferença que existia no interior da classe dos assalariados entre as três grandes faixas que são o padrão de análise mundial – ou seja, o salário médio do trabalho manual, o salário médio das funções de rotina e o salário médio do trabalho especializado diminuiu. E isso irrita, evidentemente, as classes médias porque significou na longa duração uma estagnação da sua renda enquanto ocorreu, em termos relativos, uma elevação do piso do trabalho manual, e uma lenta, porém contínua e robusta ascensão do salário médio das funções de rotina.
Então, são dois segmentos diferenciados. E evidentemente isso cria dificuldades para o governo Temer de fazer o ajuste que ele pretende fazer. Ou seja, uma reforma da Previdência que introduza a idade mínima não atinge somente o trabalho manual e o trabalho das funções de rotina, não prejudica simplesmente os operários da indústria ou da construção, ou os bancários, que estão nas posições de rotina, ou todo o setor assalariado urbano, que também está no setor privado nas funções de rotina, nos trabalhos de escritório. Vai atingir também centenas de milhares de economistas, jornalistas, advogados, arquitetos, engenheiros, que são assalariados e dependem da Previdência Social e que, historicamente no Brasil, conseguiam se aposentar mais cedo. Isso cria turbulência no horizonte das reformas que estão para vir, e, portanto, pode voltar a emergir também uma parte daqueles que foram às ruas para derrubar a Dilma. E vão descobrir que a vida pode ficar pior do que ela era, ainda que o cenário se resolva, haja uma redução da pressão inflacionária, mas evidentemente o aumento do desemprego não atinge só a classe trabalhadora, atinge a todos.
Então isso cria instabilidade para o governo Temer, ainda que ele esteja com uma posição muito confortável no Congresso Nacional - ele tem realmente mais de 3/5 para fazer as reformas que estão previstas: a reforma trabalhista, que é uma mudança chave, a mesma que está sendo feita na França, que é a prevalência do negociado sobre o legislado, o que encurrala os trabalhadores nas empresas onde eles não têm condições de resistência. Portanto, sinaliza uma regressão nas relações trabalhistas. Com a reforma da Previdência, com a introdução da idade mínima, ou o fim da aposentadoria especial das mulheres, que já está adiantada, com o fim mesmo, que se especula, da garantia de um piso para a Previdência igual ao salário mínimo, enfim, teremos exatamente o formato da reforma quando ela vier, mas vai ser algo muito duro.
Reconstruir uma aliança dos setores médios com os trabalhadores é um desafio enorme para a esquerda. Isso já aconteceu no passado, porque lembra que a classe média apoiou a ditadura e depois foi para a oposição à ditadura. Depois apoiaram o Sarney, e depois foram para oposição ao Sarney. Apoiaram o Fernando Henrique Cardoso e depois foram para a oposição a FHC. E pode acontecer de novo no futuro, essa deve ser a aposta da esquerda.
Então, não podemos caracterizar a classe média como ideologicamente de direita?
O Brasil é uma sociedade muito diferente dos países centrais. Nossa intelectualidade, como está concentrada nas grandes cidades e está muito articulada com o mundo, frequentemente perde o sentido das proporções. Ou seja, tende a imaginar que fenômenos políticos que são comuns a três ou quatro gerações dos países centrais, prevalecem num país periférico como o Brasil. Mas no Brasil ideologia tem muito pouco impacto para todas as classes sociais. E veja, do ponto de vista ideológico, todas as pesquisas mais especializadas com mais informação, mais qualificadas, sugerem que mesmo no setor médio o Brasil é um país, digamos, de maioria reacionária nos costumes. Não há uma maioria a favor do laissez-faire laissez-passer, do liberalismo econômico, todos contra todos, numa luta infernal. A ideologia dominante no setor das médias é a ideia meritocrática de que a desigualdade é natural, e que seu estatuto de classe média é natural. Ou seja, é um lugar que foi herdado pela progressão dos seus pais, ou dos seus avós. Mas disso não decorre que a classe média esteja, por exemplo, a favor de privatizar as universidades públicas e cobrar mensalidades na USP ou na UFRJ. A classe média, como todas as classes, sabe muito bem onde estão os seus interesses imediatos. Então, no tema da política, as oscilações da classe média em relação ao que é o programa liberal foram muito grandes no passado. Já houve um momento em que apoiaram as privatizações, e depois foram contra as privatizações. Eleitoralmente, o peso da classe média no que é a sociedade brasileira é pequeno, quer dizer, o Brasil não é a Argentina, para nós fazermos uma comparação que é razoável. Eu nem vou falar que o Brasil não é Espanha. Na Espanha, 60% da população tem um imóvel. E depois, quase metade tem dois imóveis. Ou a Argentina, onde você tem metade do país na grande Buenos Aires, um peso social, demográfico da classe média incomparavelmente mais elevado do que no Brasil.
Então, o Brasil é um país no qual a classe média é uma classe muito pressionada. Por um lado, pelo gigantismo da classe trabalhadora, e por outro lado pela enorme concentração de renda que está na mão dos grandes proprietários, do grande capital. Claro que a partir da última década uma parcela da classe trabalhadora passou a ter o consumo de produtos que anteriormente eram quase exclusivos da classe dominante ou da classe média, mas isso não mudou o seu estatuto social. O fato de trabalhadores pagarem mensalidades da faculdade privada dos seus filhos não transformou esse trabalhador em classe média. Quando nós fazemos análise de realidade não podemos considerar aquilo que as pessoas pensam que elas são. Nós temos que analisar o que elas são. É claro que é relevante para a política o que as pessoas pensam sobre o seu lugar na sociedade. Mas a análise não parte daí. Uma parte enorme da classe trabalhadora, pelo menos da grande São Paulo, imagino que no grande Rio, na grande Porto Alegre, na grande Belo Horizonte, ou mesmo na grande Salvador, faz churrasco no fim de semana. Uns fazem churrasco com picanha e outros fazem com acém ou com fraldinha. O fato de fazer churrasco no fim de semana pode levar a muitos trabalhadores pensarem: “bom, agora eu já estou na classe média”. Disso não decorre que ele esteja na classe média, ele só está comendo churrasco de fraldinha. Uma análise marxista não pode se deixar impressionar pela aparência dos fenômenos.
O fato é que do ponto de vista histórico-social, as camadas médias, só em momentos muito excepcionais da história do Brasil cumpriram um papel decisivo. Um desses momentos realmente excepcionais foi na queda do governo Dilma no primeiro semestre deste ano, que foi um primeiro semestre muito diferente do que foi 2015, porque teve um salto de qualidade. Uma coisa é levar 100 mil pessoas às ruas e outra é levar meio milhão de pessoas às ruas. Porque quando você bota 500 mil significa que para cada um que foi às ruas tem dez pessoas que estão apoiando. É sempre assim, também foi assim nas Diretas. Quando se colocou um milhão de pessoas nas ruas, no Anhangabaú, é porque havia 10 milhões apoiando. Quando se colocou aquela massa enorme das Diretas, na frente da Candelária, é porque havia muitos e muitos milhões que não foram naquele dia, mas que também apoiavam. São momentos raros. Então há uma disputa muito grande por ser feita.
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'Não há campanha política mais importante do que a denúncia do governo Temer' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU