Por: Cesar Sanson | 02 Agosto 2016
Projeto “Baixio de Irecê” desrespeita o modo de vida de comunidades tradicionais na região do vale no médio São Francisco.
A reportagem é publicada por David Campos do MAB Bahia/Pernambuco, 01-08-2016.
Comunidades tradicionais de quilombolas e fundo de pasto no oeste da Bahia têm sua vida marcada pela resistência e luta contra a ganância de grandes projetos que se instalam na região, grande parte financiados com dinheiro público, mas que beneficiam somente os poderosos. Agora, entra na conta também os projetos de irrigação para o agronegócio. Mais do que nunca, união e vigilância estão sendo exigidas dos atingidos para não perderem terras e garantir sua maneira de viver.
O projeto “Baixio de Irecê” está sendo executado pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) em diferentes etapas, e pretende abranger uma área irrigável estimada de 48 mil hectares para produção de frutas e grãos. Está localizado na região do Vale no médio São Francisco, abrangendo os municípios de Itaguaçu e Xique-Xique.
Não bastasse a falta da presença do estado em algumas áreas onde não há energia elétrica ou mesmo sinal telefônico, o empreendimento gera conflitos socioambientais ao adentrar áreas em que vivem comunidades tradicionais, sem o mínimo esforço para integração. Pelo contrário, o projeto tem avançado sobre áreas de uso comum dos moradores das comunidades para o manejo da mata, criação de animais e cultivo de roças.
No início de julho, na cidade de Xique-Xique, ocorreu uma Audiência Pública com o objetivo de se chegar a uma negociação entre os envolvidos, com a presença do Ministério Público Federal, Comissão Pastoral da Terra, Sindicato Rural, Promotor de Justiça da Cidade de Xique-Xique e representante das comunidades tradicionais afetadas pelo projeto. No entanto, a Audiência não pôde contar com a presença do principal órgão responsável, a Codevasf, que se ausentou sem qualquer justificativa.
Moradores das comunidades deram relatos de direitos violados em diferentes situações, como por parte de empresas, como o coronelismo e o próprio Estado. As famílias estão sendo proibidas de retirar, como dizem em suas palavras, “um pau de madeira” para lenha e outras atividades que realizam cotidianamente, ou mesmo, de que seus animais circulem em áreas que antes era total controle coletivo, não podem deixar “os bichos soltos” e ainda há a perda de terras que eles dizem ser “muito boa de plantação”, fora as questões afetivas e imateriais que são difíceis de mensurar. Um agravante é que mesmo a obra estando embargada, avança o desmatamento da Caatinga. Nos últimos dias foram ao chão 100 hectares de Mata.
Violações se acumulam na região
Tais violações de direitos relembram o episódio da instalação do Lago de Sobradinho, também no Vale do São Francisco, responsável pela saída forçada de muitas dessas famílias, que na ocasião foram reassentadas nas terras que hoje estão ameaçadas com o projeto de irrigação.
Há depoimentos de mais velhos que foram expulsos das terras onde vivam com suas famílias há anos por capangas armados a mando de coronéis latifundiários em décadas passadas. De acordo com a Comissão Pastoral da terra (CPT), áreas que eram devolutas da União se tornaram objeto de interesse dos grupos políticos quando se soube que muitas delas seriam destinadas ao reassentamento das famílias atingidas pela implantação da Barragem de Sobradinho. Logo se iniciou um processo de grilagem dessas terras.
O promotor responsável pela questão fundiária do município de Xique-Xique realizou uma pesquisa requintada de documentos cartoriais que deixa claro o processo de grilagem e compra indevida dessas terras por empresas públicas por valores superfaturados. Esse processo envolve famílias influentes na região e até grandes empresas como Odebrecht e Cooperverde.
Nota-se assim uma verdadeira sobreposição de injustiças em um território marcado por um verdadeiro caos fundiário, produzido pela grilagem de terras e desmantelamento de órgãos que regulamentavam a questão no estado da Bahia. Foram muitas as manobras institucionais para fortalecer grupos políticos e empresas, como o sucateamento do Instituto de Terras da Bahia - INTERBA e a extinção Coordenação de Desenvolvimento Agrário, forma de facilitar a implantação do agronegócio na nova fronteira agrícola.
Parece um verdadeiro retorno para os tempos onde o que prevalecia era o autoritarismo dos coronéis e não a justiça e democracia. Mais um impacto do poderio econômico nesses grupos que já possuem históricos de direitos humanos violados e encontram a felicidade na simplicidade, sendo vulneráveis, por depender do acesso a determinados recursos naturais para sua sobrevivência e reprodução social. Precisam lutar cotidianamente para provar que existem e resistir mais do que nunca para ter seu modo de vida respeitado.
Uma batalha vencida
O governo brasileiro já reconheceu a dívida social que possui com os atingidos por Sobradinho após a pressão de movimentos sociais como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Grande conquista é a realização de uma pesquisa pioneira em todos os municípios que circundam o lago de Sobradinho, aplicando-se uma metodologia elaborada pelo órgão governamental, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), com o objetivo de mensurar essa dívida e mitigá-la por meio de políticas públicas. Conhecida como Diagnóstico Econômico, Social e Cultural dos atingidos pela Barragem de Sobradinho, a pesquisa está em vigor desde o início deste ano e deve ficar por mais um ano na região.
Foto: MAB.
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Projeto de irrigação ameaça direitos no Oeste da Bahia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU