26 Julho 2016
Eles estão no centro das depurações, na Turquia, depois que o presidente Erdogan listou-os como principais inspiradores da tentativa de golpe, uma semana atrás. São tidos como uma espécie de Estado paralelo, crescidos nestes últimos anos no País. Mas há quem, entre os seguidores de Fetullah Gülen, que conheceram, nos últimos anos, um rosto decididamente diferente. É o caso de Paolo Branca - islâmico, professor da Universidade Católica, responsável pela seção das relações com o Islã, da arquidiocese de Milão - que há alguns anos, na Itália, colabora com as associações relacionadas à galáxia gulenista. Ele não concorda em identificar o amplo e complexo movimento nos limites dos jogos de poder em curso em Ancara hoje.
A entrevista é de George Bernardelli, publicado por Vatican Insider, 23-07-2016. A tradução é de Ramiro Mincato.
Eis a entrevista
Professor Branca, como conheceu o movimento de Gülen Fetullah?
Devo admitir que o nome de Fethullah Gülen me era quase desconhecido até poucos anos atrás. Conhecia-o apenas como continuador do grande místico turco contemporânea Said Nursi. Mas, como arabista, eu tinha o bastante seguindo potenciais reformadores e ruidosos restauradores de um universo complexo e contraditório como é o Islã arabófono. Foi uma experiência totalmente casual, de encontros com muitos ativistas do movimento Hizmet (que em turco significa “serviço”), atuantes na Itália, sob várias siglas (Alba, Milad, Tevere ...), que me fizeram conhecer uma realidade que me marcou profundamente.
Qual é?
Mulheres e homens, geralmente profissionais ou estudantes. Na Itália, representam apenas uma pequena parte da reduzida comunidade turca, pouco mais 15 mil pessoas. Embora profundamente crentes e praticantes, nunca tentaram vender-me suas convicções. Ao contrário, mostraram interesse e respeito pelo meu modesto, mas não ocasional, percurso de conhecimento das suas tradições religiosas. Imediatamente colocaram nossas relações em perfeita paridade. Nunca – nem aqui, nem na Turquia, onde estive, frequentemente, junto às suas instituições – senti-me minimamente tratado com hipócrita condescendência.
Que tipo de atividade desempenhou junto a eles?
Em Istambul, encontrávamo-nos em jantares, na casa de amigos, junto com as famílias onde conseguia comunicar diretamente em inglês com os mais jovens, enquanto com os adultos, alguém fazia de intérprete. Numa tarde de Sexta-feira Santa, pediram-me que explicasse o que significava, para mim, cristão, aquele dia particular. Enquanto relatava a paixão e a morte de Jesus, o chefe de família pegou uma Bíblia em turco, da estante, e me disse: “Isto que o senhor está dizendo, está escrito aqui. Em nenhum país árabe havia acontecido algo semelhante em trinta anos. Exatamente naqueles dias, tinha acontecido o assassinato do famoso jornalista armênio Hrant Dink. Um dos hóspedes confessou-me, com sincera tristeza: “Eu gostaria de dizer a um armênio o quanto sinto... mas descobri que não tenho nenhum amigo armênio".
Fala-se muito, nestes dias, das suas escolas. Há quem diz que são uma rede paralela de doutrinação...
As cerca de 200 escolas, mantidas pelo movimento, e espalhadas pelo mundo, são configuradas em critérios de excelência, sem a mínima intenção de serem Madraças. ‘Já têm demais, se por 200 anos não construirmos mais nenhuma, está bom assim, disseram-me. O Corão se estuda na mesquita ou em casa, ali fazemos ética’. Eu nem acreditei estar ouvindo aquilo. De resto, as muitas iniciativas estimuladas e generosamente mantidas por eles, também na Itália, sempre se inspiraram na abertura aos outros, de religiões diferentes, ou até sem religião nenhuma. Um belo livro publicado pela Jaca Book sobre o papa João XXIII, amigo dos turcos, recolhe extraordinária experiência humana e espiritual do Papa do Concílio, nas margens do Bósforo, iniciativa editorial mais uma vez mantida por estas realidades, que hoje são acusadas, em nossa pátria, de todas as iniquidades.
Erdogan os acusa de promoverem uma tentativa de golpe na Turquia.
Não nasci ontem para acreditar que componentes de um tal grupo possam ter podido terminar em terrenos minados. Não sonho, nem de longe, apresentá-los como anjos anos descidos do céu. Sei, porém, que o governo de Berlin confiou às suas escolas o ensino do alemão aos refugiados sírios. Sei que antes de partirem para Istambul alguns deles visitaram, junto comigo, a capela do aeroporto dizendo-me: ‘se posso, prefiro rezar numa casa de Deus’. Sei que, enquanto assistia meu sogro num asilo para doentes terminais, rezando comigo, na cabeceira da cama, em plena noite, só tive a companhia de um deles ao meu lado. E quanto colidi com um grupo de refugiados (principalmente de mulheres e crianças), num período em que a mídia nem falava, telefonei a um deles, desesperado, para pedir ajuda: não me perguntou quem eram, de que religião ou raça, mas somente quantos e onde. Poucos minutos depois chegaram 50 refeições quentes. Ninguém me pediu, depois, detalhes ou prestação de contas.
Que atitudes eles têm com relação às outras religiões?
Juntos fizemos uma viagem esplêndida na cidade onde o Oriente e o Ocidente se encontram: hebreus, cristãos e muçulmanos juntos, visitando mesquitas, igrejas e o museu hebraico de Galata. Participamos também de uma missa dominical, celebrado por um padre do Congo, em italiano, a poucos passos da Taksim. Éramos em maior número do que os poucos fiéis presentes, e um indispensável chá, na casa do pároco, nos deu as despedidas. Poderia continuar, mas penso que é necessário precisar uma coisa: alguns anos atrás, durante aquelas viagens, não me parecia detectar um abismo entre eles e o AKP. Ao contrário, em certo sentido desejava que a Turquia pudesse fazer a diferença, também graças a um grande partido popular não laicista, mas próximo da tradição religiosa local, como tinha sido para os democráticos cristãos na Europa.
E agora?
Fiquei profundamente indignado com o que está acontecendo. Na Turquia, a avidez pelo poder, há muito tempo, conota escolhas irresponsáveis e liberticidas, de um líder que perdeu toda credibilidade. E também na Itália, o centro gulenista de Modena (que como todas as outras sedes não é, e nem quer, se transformar em mesquita), exatamente na noite do assim chamado golpe, sofreu um atentado incendiário, presumivelmente da parte dos apoiadores do Sultão. Parece-me que, pela primeira vez em absoluto, na Itália, um lugar animado por muçulmanos foi atacado não por xenófobos locais, mas por correligionários fanáticos, no silêncio ensurdecedor da mídia.
Nesta tempestade, pois, hoje, é exatamente um dos vultos daquele Islã moderado que tanto se invoca?
Não gosto de chamá-los moderados: são crentes convictos e praticantes, mas dão a própria fé uma orientação diferente, que raramente se encontra em outros lugares. Exatamente, nestes dias, observo com horror a exaltação de Erdogan e da sua repressão como ‘verdadeira revolução’, no lugar da ‘primavera árabe’ da parte dos mesmos expoentes do Islã organizado e etiquetado, que naturalmente nunca gastaram uma só palavra de condenação pelas condições desumanas com que são tratados os trabalhadores estrangeiros – inclusive muçulmanos – nas petromonarquias do Golfo. E, no entanto, estes muçulmanos de salas televisivas têm uma visibilidade enorme em relação aos amigos turcos, para os quais expresso minha inútil, quase desesperada dor. Aos primeiros, todas as vantagens do circo mediático-político, que já não merece nenhuma credibilidade. Aos outros, a obscuridade, mas é nesta onde opera qualquer coisa que se possa chamar Espírito.
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Turquia. O que não se sabe dos gulenistas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU