15 Julho 2016
Uma dor simbólica e fisiológica. É sobre todos os percursos da dor de que trata Pedro Almodóvar em seu mais recente longa-metragem, Julieta. A paisagem fria do Canadá e o tom contido da escritora Alice Munro, Prêmio Nobel de Literatura de 2013, foram adaptados a uma Espanha que oscila entre uma estética dos anos 1980 típica do cineasta (como em Mulheres à beira de um ataque de nervos) e a sobriedade. Os contos Destino, Logo e Silêncio, de Munro, serviram de mote para que Almodóvar construísse sua narrativa: recuperando-se da morte do marido, Xoan, a protagonista do filme (Emma Suárez/Adriana Ugarte) precisa lidar com o desaparecimento espontâneo da filha (Blanca Parés). Ao completar 18 anos, Antía despede-se da mãe para ir ao um retiro espiritual e resolve desaparecer quase que completamente – para Julieta, mais um outro tipo de morte.
O comentário é de Marina Moura, publicada por Revista Continente, 07-07-2016.
Em Antropologia da dor, o francês David Le Breton recorre a duas grandes divisões do sofrimento: as dores agudas e as crônicas. O primeiro tipo engloba o que poderíamos chamar de sofrimentos transitórios, cujo motivo é facilmente identificável, de alguma maneira passível de ser remediado e que não chega a comprometer o senso de identidade do indivíduo. A primeira dor sentida por Julieta no filme ocorre em uma viagem de trem, pouco antes de conhecer Xoan. Um desconhecido aproxima-se de seu vagão e insiste em conversar com ela. Julieta irrita-se com a insistência, há algo no olhar do homem que a assusta, e sai da cabine. Pouco depois, ele se suicida. Embora se abale por não ter percebido a situação de urgência e por se dar conta de que poderia ter alterado o destino dele se tivesse aceitado o convite ao diálogo, Julieta segue com sua vida, vai trabalhar como professora de filologia e, assim, pode-se dizer que seu senso de si mesma não é ameaçado pela dor que experimenta.
Já as dores crônicas, observa Breton, representam um “entrave à existência”. Ainda segundo o autor, esse tipo de sofrimento está associado ao que é irremediável e, portanto, ameaça se instalar. Há algo mais irremediável que a morte? É a partir da morte do marido que Julieta inicia o percurso de uma dor que oscila entre a melancolia, a tristeza e a fúria, e culmina na “dor total”, à qual se refere Breton. O ápice da dor da personagem é representado pela ausência de Antía. Algumas cenas dão corpo à devastação de Julieta diante da falta da filha e da incerteza da sua volta, como o ritual de comprar um bolo de aniversário para Antía e jogá-lo no lixo. Qual é a função de um bolo comemorativo que não se divide com ninguém, ou que remete a uma pessoa que não está presente? “Não houve mensagem no Natal. Mas, em junho, no outro cartão, bem no estilo do primeiro, sem qualquer palavra escrita”, escreve Munro, em Silêncio, sobre o único meio de contato utilizado por Antía.
Qual seria a moral da dor? A ideia ocidental entende que a dor existe para que se passe por uma provação divina ou se partilhe com Deus a dor. Nesse caso, o indivíduo é mais ou menos isentado de culpa. A perspectiva oriental, no entanto, associa a dor a uma justiça transcendente, relativa a vivências passadas. O ser que tem dor precisa passar por ela. Antía chega a dizer, em dado momento do filme, que cada um tem a dor que merece. De todo modo, as duas possibilidades de interpretação metafísica da dor não são de todo punitivas, pois a elas são atribuídos valores de purificação. O longa de Almodóvar não aponta nem propõe uma moral da dor. As personagens, sobretudo Julieta, experienciam o sofrimento como uma condição da vida, ou, como diz Breton, “como uma abertura para o mundo”.
O filme nos diz, na verdade, que todos os problemas da origem são insolúveis, porque remete sempre a questões, percepções, angústias que passaram despercebidas e, no entanto, foram primordiais para o cenário de descompasso. Almodóvar faz uma espécie de elogio da dor às avessas: sem romantizá-la ou traçar o falso caminho de início-apíce-fim do sofrimento, em Julieta, a dor adquire força e atinge em cheio o espectador somente porque, para além da superação (a superação, aliás, existe?), o indivíduo que sofre encontra-se com a dor do outro.
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Almodóvar e a dor como condição de vida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU