01 Julho 2016
"A Vanitas pode não só inspirar amor pungente às coisas amadas e efêmeras, mas tornar-se ela mesma objeto e substância do amor, como acontece especialmente no Decadentismo", escreve Claudio Magris, em artigo publicado por Corriere della Sera, 28-06-2016. A tradução é de Ramiro Mincato.
Eis o artigo.
Há um abismo entre "vaidoso” e “vão”. O dizem também as definições antitéticas que o grande Dicionário da língua italiana, de Salvatore Battaglia, dá de “vaidade”. "Fátua complacência de si e de suas habilidades e talentos; reais ou supostas, acompanhadas pela ambição, pelo desejo excessivo de despertar aplausos e admiração; excessiva estima de si, do seu próprio valor, da própria origem ou extração; vanglória, imodéstia, presunção; soberba e insolente ostentação da própria autoridade".
Creio que, com estas palavras, desfilam diante dos olhos da mente, de cada um de nós, rostos de pessoas famosas, vips ou pretensos vips de todos os tipos, inteiros clãs da política, dos salões, das assembleias e, talvez, os mais rudes e insolentes de todos, os da assim chamada cultura e da literatura. Obviamente este desfile de pretensiosas vaidades se interpõe, em cada um de nós, entre o rosto e o espelho, poupando-nos e impedindo-nos de ver nossa presumível vacuidade.
Mas, na mesma página do dicionário, tem outra definição de vaidade: “precariedade, transitoriedade, instabilidade, caducidade, duração efêmera, passageira do que está destinado a perecer, da vida mesma".
Esta, mais do que “Vaidade”, é Vanitas, e tem pouco a ver com presunção arrogante; não é ostentação de nenhum merecimento exclusivo, pois é uma condição humana universal, é o sentimento desta condição. É o sentido de igualdade de todos os seres humanos, sujeitos ao destino comum de murchar, definhar e desvanecer, e de ver murchar, definhar e desvanecer o que desejam, amam, e que acreditam, e que gostariam ter para sempre. Boccaccio fala do "esplendor improvisado por esta coisa vã, demonstrando que da vaidade das coisas desta vida nasce esta luz como um flash, a luminosidade que sendo, imediatamente traz admiração, e em seguida, de repente, se transforma em nada". Petrarca, acenando para a mulher amada, agora velha, evoca “de’vostri occhi il lume spento; / e i cape’ d’oro fin farsi d’argento” (“dos vossos olhos a luminosidade apagada; / E os cabelos de ouro até ficarem prata").
Mas é Batrocco, sobretudo, a sentir - e amar, com o sentido do amar em vão - coisas fugazes destinadas a passar e a morrer. Protagonista e motor da Vanitas, para Marino é o tempo: "Como um flash é a beleza, a idade é uma sombra, / nem sabe parar a irreparável fuga [---]. Amor não menos veloz do que ele tem as plumas / foge com a flor da face a flor dos anos".
A mulher é rosa que desvanece, o sol, vivido e admirado quando cai: "Assim, reluz o sol mais docemente - diz um soneto de Fabio Leonidas – melhor se vagueia, quando desce, / passado o meio-dia em direção ao Ocidente".
A Vanitas não é apenas melancolia e fadiga, mas também, e talvez sobretudo, intensidade de desejo, tanto mais apaixonado quanto mais consciente da efemeridade de seu objeto e de si mesmo. "Assim, transpassa o transpassar de um dia - canta o pássaro com penas coloridas na Jerusalém libertada - da vida mortal e a flor e o verde; / nem, porque retorna abril de novo / refloresce ela jamais, nem verdeja outra vez. / Colhamos a rosa sobre manhã adornada / deste dia, que em breve o sereno perde; / Colhamos de amor a rosa; amamos agora quando / se pode ser amado amando".
Este sentido da Vanitas permeia a literatura barroca de toda a Europa; para dar um exemplo apenas, se pense em Góngora. “Mientras por competir con tu cabello / oro bruñido al sol relumbra en vano”... ("Enquanto competir com teu cabelo / ouro polido ao sol brilha em vão”...,) e o poema termina: "Aproveita colo, cabelo, lábios e testa, / antes quanto era / em idade dourada / ouro, lírio, cravo, cristal / não só em prata ou roxo truncada / muda tu e todos juntos / em terra, fumaça, poeira, sombra, nada - en tierra, en humo, en polvo, en sombra, en nada". Há também um pathos da Vanitas, "labirinto" - dizia Foscolo, contestando-o - no qual necessariamente nos perderemos".
A Vanitas pode, portanto, não só inspirar amor pungente às coisas amadas e efêmeras, mas tornar-se ela mesma objeto e substância do amor, como acontece especialmente no Decadentismo.
Amar não tanto alguém ou algo, mas o amor mesmo, o amor vão; talvez até mesmo a palavra, a música melodiosa da palavra "vão" - o "desir vano" de Ariosto, melodia das sereias do coração.
Um grande exemplo deste poema Vanitas é Pascoli. Ele ama as nuvens vãs, talvez apenas porque são vãs, seu desejo vai à sua pequena inconsistência, à sua rápida caducidade. Na incrível Última jornada dos Poemas conviviais, Odysseus, chegado à ilha Eana, a ilha de Circe, segue o seu caminho entre os bosques e as manchas, seguindo o som da cítara de Fêmio, o aedo, mas encontra este último numa pilha de folhas secas, morto. É o vento que toca a harpa pendurada nos ramos de uma árvore, "tão triste canção / havia tão distante e tão vazia". É a maior celebração poética do que é vão e parece a própria essência da poesia, objeto de um amor indizível, que não só não se pode alcançar, mas que é amor só porque é potencial, ainda não dito, ainda não objetivado: "O amor que dormia no coração, / e que despertado, só então te morre". Se ama só, enquanto não se ama algo ou alguém determinado, enquanto se ama a Vanitas, o desejo. Um eco ressoa em tantos poetas posteriores, até os dia de hoje.
Bem outra, a Vaidade cantada pelo maior dos seus poetas e um dos maiores poetas em sentido absoluto, Leopardi. A leopardiana "infinita Vaidade de tudo" não é o morboso ou pungente fascínio da fumaça onde desaparece tudo e todos os sentimentos. É a seca, objetiva, alta poesia de uma firme constatação do nada. "Das coisas criadas não permanecerá nem mesmo um traço, mas um silêncio nu, e a paz mais profunda encherão o imenso espaço. E assim, o admirável e assustador arcano da existência universal, antes de ser manifesto e cumprido, se desvanecerá e se perderá". Seja ou não tudo isto efeito do “mau / poder que, ascoso, um comum dano impera", trata-se da mais alta expressão do universal tornar-se nada de todas as coisas.
Muito foi escrito sobre o pessimismo de Leopardi; poucos anos atrás, num incisivo, marcante livro de Andrea Rigoni, Leopardi torna-se a chave introdutória do tema geral e variado da Vaidade, cujo livro se intitula explicitamente, Vanità. A perspectiva de Rigoni é vasta e inclui uma série de autores; se existe a sublime Vaidade de Leopardi, existe a Vaidade superficial e fácil de quem reage à inconsistência do mundo e da vida, identificando-se com esta, tornando-se um hábito ou um emblema da inteligência refinada, dedicando-se à futilidade com falsa faceirice, autoconvencendo-se de esnobar e desprezar o mundanismo, cujo desejo é de ter acesso, fingindo-se rir das elites das quais realmente deseja ser parte, acreditando-se o Narratore de La Recherche fascinado pelos Guermantes, mas incapazes, ao contrário do narrador proustiano, de entender que os Guermantes são desde o início, já desde sempre, os Verdurin.
No sentimento e na representação leopardiana da Vaidade de tudo, se adverte, seca e classicamente dominada, a profunda dor por esta Vaidade, o impossível desejo - percebido como vão, mas não por isso menos doloroso – de que a vida seja diferente. A altíssima poesia de Leopardi, da Vaidade de tudo, não admite nem ânsia pela Vanitas, nem volubilidades de salão. "Vagas estrelas da Ursa eu não cria...." Exatamente o oposto do pessimismo contente e satisfeito, e, portanto, filisteu, de um Cioran, totalmente à vontade na proclamação do nada e hábil em mascarar a gratificante banalidade numa máscara de Vaidade, que mesmo apresentando-se intencionalmente e, de fato, exibindo-se deliberadamente como tal, sugere e faz supor dolorosas profundidades disfarçadas no fátuo cinismo da conversação mundana.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
As duas faces (efêmeras) da vaidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU