15 Junho 2016
Há um paralelo entre o mais letal atentado a tiros da história americana, que teve como alvo uma boate gay e deixou cerca de 50 mortos (entre eles o atirador), e os casos cotidianos de discriminação contra a população LGBT no Brasil: tudo faz parte do avanço de uma onda internacional conservadora movida por motivos religiosos, afirma o historiador e brasilianista James N. Green, professor de História do Brasil na Brown University, nos Estados Unidos.
A entrevista é de Fernanda da Escóssia, publicada por BBC Brasil, 15-06-2016.
A diferença é que, se nos Estados Unidos essa onda se alia também ao extremismo islâmico, no Brasil, Green associa o avanço homofóbico ao fortalecimento de grupos religiosos mais radicais, especialmente evangélicos. "É uma homofobia internacional, baseada nas religiões, com conceitos passados, controladores, que criam dentro das pessoas ansiedades, medos e ódios que levam a esse tipo de violência", analisa.
No Rio para a conferência "Ditadura e Homossexualidades", realizada no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ (IFCS) na última segunda-feira, Green estuda há alguns anos o tema da homossexualidade no período do regime militar brasileiro.
É cofundador do primeiro grupo de afirmação da identidade homossexual no Brasil, o "Somos", e lançará em junho do ano que vem a biografia de Herbert Daniel, ex-guerrilheiro que sofreu o preconceito da própria esquerda e se transformou num dos pioneiros não só do ativismo gay no Brasil, mas também no combate à discriminação contra portadores do HIV.
Chamava-se Herbert Eustáquio de Carvalho, mas foi como Herbert Daniel, juntando o nome de batismo e o codinome da guerrilha, que ele se tornou mais conhecido. Revolucionário e gay: a vida extraordinária de Herbert Daniel é o título da biografia do ativista, que morreu de Aids em 1992.
Discípulo de Thomas Skidmore, morto no último sábado, Green assumiu desde 1999, com a aposentadoria do mestre, a cátedra de História do Brasil na Brown University. Ele destaca o legado de Skidmore no estudo de temas brasileiros contemporâneos, diz que muitos estereótipos sobre o país persistem lá fora e que ainda hoje segue aprendendo sobre a terra que estuda há 43 anos.
Eis a entrevista.
É possível apontar paralelos entre o atentado nos EUA e a situação do Brasil?
Sim, porque é uma onda conservadora internacional. São muitos fatores que explicam, e um deles é uma reação forte, desde o 11 de setembro, senão antes, a ideias culturais e liberdades sexuais que cada vez mais ficam visíveis. São ideologias reacionárias, de muçulmanos e cristãos, contra essas liberdades. Aqui no Brasil não são os muçulmanos, mas evangélicos, contra os gays.
É uma onda conservadora religiosa, que questiona avanços mundiais sobre liberdades, ameaçados nesse momento. A ideologia xiita contra ideias e comportamentos diferenciados é a mesma ideologia que proíbe ideias não tradicionais nas escolas, como essa campanha "Escola sem Partido", que é muito reacionária.
(Eduardo) Cunha representa essa onda conservadora e possivelmente não vai ser impedido dentro do Congresso. É o exemplo de consolidação de uma força conservadora, religiosa, e não de uma religião específica - porque aqui não são os muçulmanos, e no atentado em Orlando vê-se a onda conservadora que passa pelo mundo islâmico.
Como combater essa onda?
Com intransigência na defesa dos direitos já conquistados. Movimentos pela laicidade do Estado têm que ficar mais eficientes e não recuar. Essas ideias de maior liberdade são novas, modernas, vêm do Iluminismo e têm que ser defendidas.
(Donald) Trump, Cunha, (Michel) Temer, tudo é parte dessa onda. Temer faz parte dessa onda, a aliança dele é com essa onda conservadora. O fato de eles estarem tentando manter Cunha no Congresso é um exemplo. Sua base é o setor superconservador da sociedade brasileira.
Nos Estados Unidos, especificamente, como analisa o impacto do atentado sobre o debate pela redução do número de armas de fogo?
É impressionante como, com esse número de atentados, violências, mortos, ainda se consegue dizer que não tem nada a ver com o acesso às armas nos Estados Unidos. Claramente tem a ver, é uma cultura violenta, em que qualquer pessoa pode andar com armas. A direita americana tem consolidado a ideia de que qualquer tentativa de controlar armas é um ataque contra eles como pessoas. É uma noção individualista.
Trump está aproveitando isso de um lado e, de outro, a xenofobia contra qualquer muçulmano. Ele vai usar isso na campanha eleitoral. Vai coincidir com o racismo embutido na sociedade americana e reforçar a ideologia contra o estrangeiro, contra o outro. Vai justificar suas declarações horríveis sobre a necessidade de controlar a entrada de qualquer muçulmano no país.
É uma violação básica da Constituição americana, que é contra a discriminação por religião. Não dá para dizer: podem entrar cristãos, mas não católicos, podem protestantes e judeus, mas não muçulmanos. Infelizmente, a ignorância, a falta de conhecimento, o medo, a histeria, vêm criando um clima odiento.
O senhor escreveu vários livros sobre o tema da homossexualidade durante a ditadura. Como era ser homossexual naquele período?
Esse período é complexo e cheio de contradições. A homofobia existia antes de 1964, preconceito contra homossexual, lésbica, isso existia na sociedade brasileira há muito tempo. Era uma ideologia promovida pela Igreja Católica e pelo discurso médico legal que considerava o homossexual uma pessoa defeituosa. Infelizmente existia um discurso homofóbico dentro das esquerdas que estavam na oposição à ditadura.
A partir de 1968, 1969, nos Estados Unidos e na Europa, surgem movimentos de gays e lésbicas reivindicando participação efetiva na sociedade e contra a discriminação. Mas não pôde surgir esse movimento no Brasil, onde todas as condições estavam dadas, porque justamente neste momento surgem o AI-5 (Ato Institucional nº 5, que marcou o endurecimento dentro do próprio regime ditatorial) e a repressão à oposição.
Quando se criaram as condições de sociabilidade homossexual e de mudança nesse tipo de cultura, para reivindicar transformações, não é permitido, pela repressão, pelo AI-5, pela censura, pela tortura, pelo medo, pela impossibilidade de organizar grupos.
Só quando a abertura já estava em curso as pessoas puderam pensar nessa possibilidade de organização. Aí fundam a primeira revista que luta pelos direitos dos gays, Lampião, publicada no Rio de Janeiro, e paralelamente o primeiro grupo de afirmação homossexual, o Somos, do qual fui um dos cofundadores.
A ditadura então atrasou a luta pelos direitos homossexuais no Brasil.
Atrasou pelo menos dez anos. Se não fosse o AI-5, o Brasil teria sido um dos países pioneiros nas conquistas. Embutido no golpe de 64, nos movimentos que apoiaram o golpe, estava uma ideologia muito conservadora, muito controladora. A direita, entre 64 e 69, argumentava que a esquerda promovia corrupção da sociedade, sexo, drogas e homossexualidade. E é o contrário da realidade.
A esquerda também era homofóbica?
Infelizmente, a esquerda nesse momento era homofóbica, se você era homossexual tinha que reprimir sua sexualidade. O melhor exemplo era Herbert Daniel, estou fazendo a biografia dele.
Ele descobriu sua homossexualidade, era estudante de medicina em Belo Horizonte e entrou numa organização clandestina, a mesma da qual Dilma também fazia parte.
Sentia que não tinha espaço para a homossexualidade na esquerda naquele momento, e abafa a homossexualidade para ser membro da organização.
São coisas muito contraditórias e quero que as pessoas comecem a ter uma leitura mais sofisticada. Outro exemplo é a expulsão de homossexuais do Itamaraty no governo Médici. Vários são expulsos só por serem homossexuais, não por nenhuma outra coisa. Naquele momento não havia a menor possibilidade de apelar, fazer campanha, estava expulso e pronto.
Como Herbert Daniel nos ajuda a compreender aquele momento?
Com suas 500 e tantas páginas, o livro acompanha essa pessoa muito interessante que vive esses anos da ditadura, entra numa organização clandestina, atua politicamente, participa das ações armadas a partir de 69 e fica na clandestinidade quando a sua organização desaparece.
No exílio, ele faz uma crítica à luta armada e à esquerda por sua homofobia e assume sua homossexualidade. É fundamental nos primeiros anos da abertura, quando é candidato a deputado estadual no Rio pelo Partido dos Trabalhadores e Partido Verde, mas também quando entra no movimento contra a discriminação das pessoas com HIV.
Ele transforma o discurso sobre Aids dizendo que a melhor cura é a solidariedade. Infelizmente, morreu de Aids em 1992. Herbert Daniel representa uma parcela de uma geração muito comprometida com as mudanças sociais, disposta a jogar sua vida nessas mudanças. E soube politizar sua homossexualidade para as transformações sociais.
O senhor acredita que no Brasil, questão islâmica à parte, os homossexuais estão sujeitos ao mesmo tipo de violência que houve em Orlando?
Totalmente. É o que tem sido. As mortes de homossexuais, travestis, lésbicas, as violências que têm sido documentadas ao longo dos anos...é a mesma situação. Só que nos Estados Unidos é uma tradição de assassinato coletivo. Aqui é mais individual.
Você encontra uma pessoa transexual ou travesti na rua e vai pensar que pode matar, que haverá impunidade, que vai matar e ninguém vai fazer nada. Tudo está ligado. É uma homofobia internacional, baseada nas religiões, com conceitos passados, controladores, que criam dentro das pessoas ansiedades, medos e ódios que levam a esse tipo de violência.
O senhor é o sucessor de Thomas Skidmore, que morreu sábado, em sua cátedra na Brown University. Em sua análise, em que medida Skidmore mudou o paradigma dos estudos sobre o Brasil?
Ele representava o brasilianista em si, uma pessoa de fora que vem para analisar o país. Isso gerou um certa reação contra o gringo que vem aqui para falar sobre o país, especulações, forças nefastas etc.. Ele estudou algo que ninguém estava estudando, história contemporânea. Nesse momento, os historiadores brasileiros estavam preocupados com a censura e a repressão.
O debate lá fora era se o Brasil era um país feudal, capitalista, etc. e ele diz não, vamos escrever sobre a história presente. Fez um trabalho sistemático para criar uma narrativa sobre aquele período.
Foi também dos primeiros a escrever sobre o pensamento brasileiro sobre raça, branqueamento da sociedade. É para mim um ícone, a essência do que é o brasilianista, sendo um democrata, liberal, progressista, que ele era. Denunciou também tortura e repressão no Brasil, num momento em que o Itamaraty estava dizendo que não havia tortura no Brasil.
Como é hoje, lá fora, o interesse pelo Brasil?
Ainda muito aleatório. As pessoas que sabem português quando chegam à universidade são ou filhos de brasileiros ou portugueses, ou que fizeram intercâmbio no colégio e caíram aqui ou pessoas cujos pais eram missionários ou ligados a multinacionais e moraram alguns anos no Brasil ou Portugal. As pessoas não sabem muito sobre o Brasil, infelizmente. Quando se fala que você é do Brasil, alguns, ou quase todos os estereótipos permanecem.
A gente faz todo o possível para modificar isso. Se não tem contexto, é muito difícil entender o Brasil. Tom Jobim disse bem: "O Brasil não é para principiantes". É muito complicado. Eu que convivo com o Brasil há 43 anos, que morei aqui seis anos, sou brasilianista, não entendo nada nesse país.... (risos) A elite desse país tem uma capacidade de conciliação, de sobrevivência, de aparentar que está mudando para não mudar nada, que é fenomenal.
Nesse momento em que se fala de corrupção, estou esperando a anistia. Vão anistiar como em 79, quando os torturadores não foram punidos. É a capacidade da elite brasileira de sobreviver. O espetáculo que foi aquela votação (do impeachment de Dilma Rousseff) reforçou como estão atrasados os políticos brasileiros, representam o pior do país, não o melhor. Isso eu aprendi. O Brasil mudou muito, mas não mudou muito.
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Atentado nos EUA e casos de homofobia no Brasil são parte de onda conservadora religiosa mundial, diz brasilianista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU