13 Junho 2016
"Eu acredito que este é um passo muito importante", disse o padre jesuíta Hans Zollner, um dos maiores especialistas da Igreja na luta contra o abuso sexual de crianças, sobre uma nova medida do Papa Francisco para estabelecer procedimentos para a exclusão de bispos que são negligentes no trato de acusações de abuso. "A medida não esclarece tudo, mas dá um sinal claro aos bispos: eles têm que seguir as regras".
A entrevista é de Inés San Martín, publicada por Crux, 06-06-2016. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Um dos principais especialistas Católicos na luta contra o abuso sexual de crianças diz que o Papa Francisco acabou de dar um sinal de alerta aos bispos católicos em todo o mundo: "Eles têm de seguir as regras."
O pontífice emitiu recentemente um documento legal que define um processo para remover bispos que são negligentes nas respostas a alegações de abuso. O padre jesuíta alemão Hans Zollner disse que, embora "não esclareça tudo", o documento "dá um sinal claro aos bispos: eles têm que seguir as regras".
Zollner, um membro da Comissão Pontifícia para a Tutela de Menores criada pelo Papa Francisco em 2014, é vice-reitor acadêmico da Universidade Jesuíta Gregoriana de Roma e chefe de seu Instituto de Psicologia, sede do "Centro de Proteção à Criança", que promove um seminário inigualável na prevenção e combate ao abuso sexual.
Os primeiros 19 alunos do curso de "Tutela de Menores" formar-se-ão neste mês, e as vagas do curso para o próximo ano já estão preenchidas.
Dos recém-formados, 11 provêm de países africanos, um continente onde, de acordo com Zollner, "a sensibilidade para a questão da proteção dos direitos das crianças é muito subdesenvolvida", e não apenas dentro da Igreja, mas na sociedade em geral.
Zollner disse que a "consciência global" sobre o abuso sexual de menores está crescendo e, ao mesmo tempo, alertou que ainda há "um longo caminho a percorrer para pôr fim a este mal, que vai persistir enquanto existirem seres humanos".
Falando de suas décadas de experiência no combate ao abuso sexual clerical, ele admitiu estar "frustrado" com o fato de que em alguns países do Leste Europeu, bem como em partes da África, da Ásia e da América Latina, ainda há sacerdotes que vêem isso como um "problema ocidental".
"É frustrante, porque esta é uma negação óbvia da realidade por pessoas que deveriam estar mais informadas", disse ele.
Eis a entrevista.
Qual é a importância de um curso como o oferecido pela Gregoriana sobre a tutela dos menores?
Ele prepara os responsáveis pela proteção de menores para as conferências episcopais, associações de religiosos, dioceses e congregações, especialmente nos países onde não há estrutura e pessoal para isso.
Pode parecer estranho para os norte-americanos e europeus ocidentais, mas se você olhar ao redor do mundo, apenas um pequeno número de países têm um alto padrão de medidas em vigor, não só no papel. Isso é verdade para a sociedade em geral, bem como para a Igreja.
Acreditamos que o curso vai aceitar 18 alunos, no máximo 20, a cada ano. Tivemos 19 este ano. Seis receberam bolsas da Congregação [do Vaticano] para a Evangelização dos Povos, o que mostra que há um interesse focado na formação de pessoas nos países de missão.
Mas havia também pessoas de outros países africanos, além dos escolhidos pela Congregação. Esperamos que possamos ter mais pessoas da Europa Oriental, porque há também muito pouco para a atuação lá, e também da Ásia e da América Latina. Mas o foco no momento é claramente a África.
Por que a África?
Porque a conscientização e a sensibilização para a questão da proteção dos direitos das crianças são muito subdesenvolvidas. Algumas semanas atrás eu falei com um importante líder político africano e ele disse que um dos principais focos para os governos africanos é a participação na luta contra o casamento infantil.
Em quase todas as constituições dos países africanos há uma idade mínima de 18 anos para o casamento, mas na verdade, as meninas continuam casando aos 12. Então, o que está no papel e o que está acontecendo é, às vezes, completamente diferente. Precisamos trabalhar a médio e longo prazo para gerar uma mudança de atitude.
Você pode ter cursos e obter certificados, mas no final o que importa é o quanto isso realmente muda a prática.
Para que seja possível entender que há lugares onde os direitos das crianças ainda não são respeitados, existem hoje, 40 milhões de pessoas escravizadas, muitas das quais são crianças...
Sim. E depois há toda a questão da migração, que está em foco na Europa. Pelo que sabemos, não há uma única mulher ou criança que não seja abusada durante o processo de migração, enquanto são refugiados ou estão em fuga.
Se você considerar todas as situações de guerra, as catástrofes, a pobreza nos países de origem, de onde os migrantes já vêm traumatizados, e adicionar todo o trauma do seu caminho para a Europa, como a abdicação de suas terras, a perda de um ou vários membros da família, e ainda o abuso sexual, você terá milhões de pessoas profundamente traumatizadas.
O Papa Francisco lançou um motu proprio que estabelece um procedimento para a remoção de bispos e superiores que negligenciarem queixas de abuso. Este documento era necessário?
Era, porque esclarece que os procedimentos já existentes devem ser postos em prática.
Ele chama a atenção da comunidade mundial, da comunidade religiosa e de todos os responsáveis pela Igreja, de forma explícita e muito séria, ao fato de que os bispos devem ser responsabilizados por suas ações ou omissões e que existem medidas para processar um bispo por negligência bem como um abade ou um grande superior de uma ordem ou congregação.
O motu proprio foi recomendado pela Comissão Pontifícia para a Tutela de Menores?
Sugerimos ao Santo Padre que ponderasse sobre um procedimento para a acusação de bispos em casos de negligência nos processos, de negação e também de remoção de um perpetrador de uma paróquia para outra.
O que foi explicado claramente é que pode estar faltando empenho, mesmo "sem culpabilidade moral grave" por parte do bispo, e que para remoção do cargo, no caso de abuso de menores, "é suficiente que a falta de empenho seja grave" e não "muito grave", como em outros casos.
Vamos ver como as congregações [do Vaticano] que recebem denúncias, [ou seja, as Congregações para] Bispos, Evangelização dos Povos, Igrejas Orientais, os Institutos de Vida Consagrada, as Sociedades de Vida Apostólica lidam com isso e, em seguida, enviá-los à escola de especialistas legais que ajudarão Francisco a julgar se as alegações são fundamentadas.
Acredito que é um passo muito importante. "Ele não esclarece tudo, mas dá um sinal claro aos bispos: eles têm que seguir as regras".
Eu também acredito que o motu proprio ajudará a acelerar as decisões sobre os procedimentos, como quem apresentaria a denúncia, quem seria o réu, quais seriam as possibilidades de recorrer as decisões.
O documento mostra um compromisso do Papa Francisco com a responsabilização dos abusadores?
Certamente. Ele tem uma linha que começou logo depois de sua eleição e continua com mais do que o que é percebido em um nível global. Em alguns momentos ele encoraja os que trabalham na proteção dos menores e profere palavras muito fortes sobre as pessoas que abusam de menores e que encobrem os abusos. Ele menciona as organizações de proteção e está ciente do que fazemos aqui no Centro de Proteção à Criança.
O que as pessoas não percebem é que para ele, assim como para muitas pessoas do hemisfério sul, o abuso sexual é algo terrível, mas há outras violações dos direitos das crianças que para as pessoas nesses países também são muito relevantes: guerra, crianças no exército, pobreza infantil, tráfico de crianças.
Para as pessoas nesses países, isso fica claro imediatamente quando eles falam sobre abuso sexual de crianças: é uma das muitas violações dos direitos das crianças.
O problema do abuso sexual clerical tem estado nas manchetes por três décadas. Quão frustrante é saber que ainda há pessoas na Igreja que precisam ser lembradas de que isso é real?
Acabei de voltar de uma viagem à Lituânia e à Letônia, onde me encontrei com os bispos locais. Alguns sacerdotes ainda dizem: "Este é um problema ocidental, nunca aconteceu aqui". "É frustrante, porque esta é uma negação óbvia da realidade por pessoas que deveriam estar mais informadas", disse ele.
Fiquei muito surpreso: como é possível que ainda haja pessoas que negam esse fato?
Mas, ao mesmo tempo, como psicólogo e psicoterapeuta, vejo que são mecanismos de defesa. Você consegue ver no fundo do seu coração que crimes cometidos pelo clero existem, mas não vai falar sobre isso por causa de sua própria vergonha. Você acha que você não pode ferir sua mãe, a Igreja.
Vamos falar apenas sobre a Europa Central e Oriental, onde ainda há uma boa parte do clero que nega este problema. Há mais de 50 anos, a Igreja era a única instituição que deu algum tipo de liberdade, onde as pessoas sentiam-se em casa e não perseguidas ou espionadas.
Muitos desses padres foram ordenados clandestinamente e eles devem todo o seu desenvolvimento pessoal à Igreja e à sua fé. Assim, aceitar que há um pequeno número de padres que cometeram crimes e pecados terríveis, assim como admitir e reconhecer o sofrimento dos sobreviventes, traz um enorme conflito interior.
No entanto, eu viajo muito e percebo que globalmente estamos em um nível de consciência em que negar que há um enorme problema torna-se cada vez mais difícil para as pessoas.
Isso também é válido para estudantes africanos com quem eu falo. Ou se você ouvir alguns bispos, como os que vieram para cá há quatro anos para o simpósio, alguns vieram e disseram que tratava-se de "um problema ocidental" quando chegaram.
Três dias depois, após terem ouvido Marie Collins [uma sobrevivente de abuso sexual clerical e membro da Comissão para a Tutela dos Menores] e outros bispos de todo o mundo, eles perceberam que este não é apenas um problema Ocidental, mas que eles também devem olhar ao seu redor.
Poucos minutos atrás, conheci uma pessoa da Bósnia Herzegovina que é qualificada para trabalhar com esta questão e está disposta a fazê-lo neste país onde a situação da Igreja é muito delicada - croatas contra bósnios, católicos e muçulmanos, e assim por diante. Falar sobre uma fonte de enorme dano para os sobreviventes e para a imagem da Igreja nessa situação não é fácil.
Se considerarmos a Índia, os bispos indianos eram muito relutantes em colocar suas orientações online, porque o que aconteceria é que alguns nacionalistas hindus imediatamente apontariam o dedo e diriam: "Olhe para os católicos, que coisas terríveis eles fazem".
Ao apontar o dedo, eles conscientemente evitam olhar para o que é feito não somente pelos sacerdotes hindus, mas pela sociedade indiana em geral, que é talvez uma das mais afetadas e infectadas pelo abuso sexual de menores.
Há uma crescente conscientização global na Igreja a respeito do problema do abuso sexual infantil?
Sim. É possível vê-la na Lituânia, República Checa, Gana, Equador, Quênia ... a Igreja nessas regiões é uma vanguarda. Nestes países, a Igreja é a única instituição que fala sobre isso publicamente e está intensificando seus esforços à proteção das crianças.
Na Índia, as instituições católicas fazem muito mais para a proteção dos direitos das meninas do que quaisquer outras instituições, e provavelmente até mais que o Estado.
A consciência global está crescendo, mas ainda temos um longo caminho a percorrer para pôr fim a este mal, que vai continuar enquanto existirem seres humanos.
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Especialista antiabuso diz que está claro: Bispos devem seguir as regras - Instituto Humanitas Unisinos - IHU