09 Mai 2016
"Tanto Margarida quanto Rose, como se vê, não morreram em vão, são mães ainda vivas pelos filhos e pelos exemplos que deixaram à posteridade, só não lembradas num dia como o das mães, com o carinho e a admiração pela vida que deram em defesa da vida por quem, desse direito humano fundamental, só conhece o próprio, individual, indiferente pela injustiça que cobra o preço cobrado dessas duas mães", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
O clima de festiva homenagem às mães, no segundo domingo de cada maio, não aconselha qualquer lembrança de dor e sofrimento, muito menos morte. Parentes, filhas/os, amigas/os, dão-lhe presentes, conforme permite a capacidade de pagar algum, recordam histórias passadas vividas pela sua família, repartindo tempos e lugares onde ela provou o seu amor, sua paciência e compreensão, a prontidão vigilante de socorro para qualquer dificuldade, o sacrifício próprio da disponibilidade para ajudar de forma incondicional e até perdoar o que se fez de errado.
Nada contra todo esse carinho mais do que merecido. Quando esse dia, porém, recorda a viúvos, filhas/os e neta/os a mãe falecida, as causas dessa ausência tornam essa lembrança bem mais dolorosa no caso de ela ter sido provocada pela inconformidade alheia com os méritos da morta. Se ela cai em defesa da justiça, como grande número de mulheres martirizadas por essa razão a história conta, a busca de uma resposta para isso não deveria eximir ninguém.
Interrompida a vida de uma mãe pobre por um crime - como acontece frequentemente com mães sem-terra e sem-teto, entre outras situadas no mesmo nível de carência, não há necessidade de muito discernimento para se dar como certa a injustiça social motivando a mão assassina. A ganância, o ódio de classe, o preconceito e o desprezo comumente abrigados na ideia e na ação de quem se considera superior a pobres e mede qualquer pessoa conforme seu próprio juízo e egoísmo, aumenta nas vítimas sobreviventes dessa separação um sentimento forte e perigoso de revide. A vingança começa a se impor como única saída de reparação justa do mal sofrido.
Não foi o que aconteceu com os maridos e as/os filhas/os de duas mulheres, mães sem-terra, mortas em defesa da vida própria, da de suas famílias e a da própria terra. Margarida Alves foi assassinada, na presença do marido e de um dos seus filhos, de apenas dez anos, na frente de sua casa, em Alagoa Grande (Paraiba), no dia 12 de agosto de 1983. Menos de 4 anos depois, em 12 de março de 1987, morria Roseli Nunes, com dois outros companheiros, Iari Grosseli, e Vitalino Antonio Mori, durante manifestação multitudinária de protesto de sem-terras, realizada na BR 386, em Sarandi/RS. Foram atropelados por um caminhão que feriu mais 14, em circunstâncias bem suspeitas, pois o veículo ultrapassou a barreira humana então montada pelas/os agricultoras/es para a realização do protesto.
Por que Margarida foi assassinada? “À época de seu assassinato, Margarida movia mais de cem ações trabalhistas na Justiça do Trabalho local, batendo de frente contra interesses dos donos da Usina Tanques, a maior usina de açúcar do Estado, e de alguns “senhores de engenho”, remanescentes do período em que os engenhos dominavam a economia açucareira. Fazendeiros não ligados à lavoura de cana também se viram em posição oposta à sindicalista, que denunciava abusos contra trabalhadores rurais e o descumprimento da legislação trabalhista”, de acordo com o site Portal Brasil.
Por que Rose - assim era mais conhecida Roseli por suas companheiras e companheiros sem-terra, e assim foi ela identificada por Tetê Moraes em dois filmes que contam a sua história, “Terra para Rose” e “Sonho de Rose” - participava do protesto das/os sem terra em Sarandi, quando perdeu a vida? “Ela e outros 5.000 mil agricultores protestavam por melhores condições para os agricultores e uma política agrária voltada para os camponeses. Não existia, naquela época, política de crédito para a pequena agricultura”, segundo o mesmo site Portal Brasil.
Em 1985, Roseli tinha participado, com seus dois filhos e grávida de outro, mais o marido, da ocupação do latifúndio Fazenda Annoni, uma das mais famosas ocupações de terra ocorridas no Brasil, servindo de exemplo e abrindo caminho para muitas outras realizadas em outros Estados da Federação. Em 28 de outubro do mesmo ano deu a luz o terceiro filho, Marcos Tiaraju.
Ele “foi estudar medicina em Cuba, na ELAM (Escola Latinoamericana de Medicina) onde se formou em 2012. Voltando ao Brasil, foi trabalhar com as comunidades carentes do município de Nova Santa Rita, no interior do Rio Grande do Sul. A decisão de exercer a medicina vinculada aos movimentos sociais está ligada as suas origens, a sua história e aos compromissos de cuidar da sua gente, valores que sua mãe cultivou e aliados aos reforços humanitários que recebeu na ELAM”, também conforme registra o Portal Brasil.
Na edição de 8 de setembro de 2013 do site Sul 21, Tiaraju concedeu uma longa entrevista sobre o modelo de medicina que pratica, inclusive junto ao programa “mais médicos” do governo federal, que é cumprido em parte por profissionais oriundos de Cuba, as prioridades pela prevenção de doenças e pelo tratamento de pessoas necessitadas, moradoras em lugares interioranos, considerados pouco atrativos por outras/os profissionais da medicina.
Tanto Margarida quanto Rose, como se vê, não morreram em vão, são mães ainda vivas pelos filhos e pelos exemplos que deixaram à posteridade, só não lembradas num dia como o das mães, com o carinho e a admiração pela vida que deram em defesa da vida por quem, desse direito humano fundamental, só conhece o próprio, individual, indiferente pela injustiça que cobra o preço cobrado dessas duas mães.
Talvez a mais famosa mãe sem terra, contudo, seja aquela que teve de suportar ver seu filho agonizar durante horas e, sob escarnio generalizado, morrer numa cruz como um réu condenado, embora sem ter praticado qualquer crime. Mesmo assim, antes da sua morte, Maria recebeu dele a missão de ser mãe da humanidade toda. Isso explica como o nome dessa mulher se multiplicou quase ao infinito em todo o mundo.
Embora sua vida tenha sido muito manipulada e distorcida pela história futura, pró e contra o seu comportamento como mulher e mãe, continua dando um exemplo raro de uma e de outra para qualquer geração humana: como aconteceu ao pé da cruz do Seu Filho Jesus Cristo, ela não abandona nenhum/a das/os seus filhas/os ainda hoje crucificadas/os, seja pela lei, seja por qualquer sistema econômico ou político, reprodutor de pobreza, miséria e morte.
Parabéns, pois, a todas as Mães dotadas de uma coragem como essa.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Homenagem às mães mártires da injustiça social - Instituto Humanitas Unisinos - IHU