28 Abril 2016
Após a decisão da Câmara dos Deputados do Brasil, de dar início ao juízo político da presidenta Dilma Rousseff, LA ONDA digital, realizou uma entrevista por e-mail com o cientista político e historiador brasileiro Luiz Alberto Moniz Bandeira, para conhecer sua opinião sobre as causas, o contexto político e social no qual se toma esta excepcional medida. Moniz Bandeira acaba de apresentar seu novo livro: “A Segunda Guerra Fria”, na Feira do Livro de Buenos Aires, que se realiza esta semana, na capital argentina.
Luiz Alberto Moniz Bandeira é doutor em ciência política, professor titular de história da política exterior brasileira da Universidade de Brasília (aposentado), possui mais de 20 obras publicadas, entre as quais estão: “Formação do Império Americano (Da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque)” e “A Segunda Guerra Fria – Geopolítica e dimensão estratégica dos Estados Unidos (Das rebeliões na Eurásia à África do Norte e ao Oriente Médio).
A entrevista é reproduzida por Carta Maior, 27-04-2016.
Eis a entrevista
Após a vitória da oposição na Câmara dos Deputados, por uma margem bastante grande (367 votos a favor, 137 contra), foi declarado o início do juízo político contra a presidenta Dilma Rousseff. A pergunta que muitos se fazem na América do Sul é: como o partido do governo e o próprio governo chegaram a esta solidão, a este cenário de falta de apoio político?
“A campanha subterrânea dos grupos internacionais se aliou à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de liberdade e garantia do trabalho”. Estas palavras foram escritas pelo presidente Getúlio Vargas, na carta que deixou antes de se suicidar, em 24 de agosto de 1954. Elas também explicam o que aconteceu na Câmara dos Deputados no dia 17 de abril de 2016. Mas, como disse Marx, a história se repete, uma vez como tragédia, a outra como farsa. Em 1954, o processo do golpe de Estado culminou com uma tragédia, o suicídio do presidente, que impediu a completa conquista dos objetivos por parte dos interesses nacionais e internacionais que moveram a campanha contra o seu governo. Já o que aconteceu na Câmara de Deputados no recente 17 de abril foi outro golpe de Estado, mas com as características ridículas de um espetáculo de circo. Uma Câmara de Deputados, composta, em 60% do seu total, por parlamentares acusados ou envolvidos indiretamente em processos de corrupção, fraude eleitoral, desmantelamento, sequestro, homicídio, e sob a presidência de um sujeito (Eduardo Cunha) que é réu no Supremo Tribunal Federal (STF), também acusado de corrupção, lavagem dinheiro ilícito, com 40 milhões de dólares em contas secretas na Suíça e no Panamá, que aprovou o impeachment de uma presidenta honesta, que não cometeu nenhum crime.
A votação do último dia 17 foi um show de estupidez, no qual cada deputado que votou pelo impeachment demonstrou também sua vocação criminosa.
Isso significa que o governo brasileiro e o PT, antes da derrota no parlamento, já havia perdido a credibilidade e a simpatia perante a sociedade?
Sim, o governo brasileiro cometeu muitos erros, sobretudo na política econômica, e eles contribuíram para diminuir sua popularidade. Isso foi aproveitado por uma intensa campanha dos meios de comunicação da imprensa corporativa. No Brasil, a liberdade de imprensa é uma ficção. Está virtualmente restrita a quatro ou cinco famílias, que são as donas dos principais veículos de imprensa, rádio e televisão. Mas o golpe de Estado estava articulado desde antes da presidenta Dilma ser eleita pela segunda vez. O objetivo era o retorno do ex-presidente Lula, impedir sua eleição em 2018 e mudar toda a sua política externa.
As manifestações de junho de 2013 foram, sem dúvidas, organizadas por ativistas de ONGs, saídos de cursos de liderança e uso de técnicas de luta não-violenta, conforme os ensinamentos do professor Gene Sharp, autor de From Dictatorship to Democracy. Esses cursos são realizados nas universidades americanas, como Yale e outras, e também dentro da Embaixada dos Estados Unidos. O juiz Sérgio Moro, que conduz o processo contra a Petrobras, realizou cursos no Departamento de Estado, em 2007. No ano seguinte, em 2008, passou um mês num programa especial de treinamento na Escola de Direito de Harvard, em conjunto com sua colega Gisele Lemke. Em outubro de 2009, participou da conferência regional sobre “Illicit Financial Crimes”, promovida no Rio de Janeiro pela Embaixada dos Estados Unidos. A Agência Nacional de Segurança (NSA), que monitorou as comunicações da Petrobras, descobriu os indícios de irregularidades e corrupção de alguns militantes do PT e, possivelmente, passou a informação ao juiz Sérgio Moro, de Curitiba, já treinado em ação multi jurisdicional e práticas de investigação, inclusive com demostrações reais (como preparar testemunhas para delatar terceiros). E para começar um processo de impeachment, bastava inventar um motivo. O clima já existia.
O juiz Sérgio Moro, que deveria ser submetido a uma investigação sobre suas conexões com os interesses dos Estados Unidos, manipulou os antecedentes, com a desculpa de combater a corrupção, estimulando as classes sociais médias e altas, assim como grande parte da pequena burguesia e do empresariado, que nunca aceitaram de bom grado os programas sociais como o Bolsa Família e outros criados pelo governo de Lula, que foram mantidos pela presidenta Dilma Rousseff. Essas classes médias e altas tampouco conseguiram digerir o fato de ter um operário nordestino como presidente de Brasil.
O que ocorre no Brasil é também uma exacerbação da feroz luta de classes. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) gastou milhões de reais na campanha pelo impeachment da presidenta Dilma. A entidade não transparece esses números, mas se calcula que a FIESP teve um custo de pelo menos cinco milhões de reais em propaganda a favor do impeachment nas edições impressas dos jornais Folha de São Paulo e Estado de São Paulo, sem incluir o gasto nas edições digitais, suborno de deputados e outros. Houve e há muito dinheiro nacional e estrangeiro correndo no Brasil para financiar o impeachment.
Mas os juízos políticos não estão previstos na Constituição brasileira? A Justiça processou alguns altos funcionários do governo e da estatal Petrobras. A presidenta não tem responsabilidade institucional e política nesses casos?
O impeachment está previsto na Constituição, mas não se aplica aos casos que estão descritos no processo contra a presidenta Dilma Rousseff que estão sendo analisados no Legislativo. Não há prova nenhuma de que la cometeu algum crime de responsabilidade fiscal.
Essa versão foi levantada pelo Tribunal de Contas da União, já com o propósito de justificar um processo de impeachment. Mas nada está provado, e o que aconteceu foi um atraso no repasse de verbas aos bancos públicos, dando momentaneamente uma cobertura às contas do governo. Todos os presidentes, inclusive Fernando Henrique Cardoso no Brasil e Ronald Reagan nos Estados Unidos, fizeram manobras similares. E isso não é motivo para um impeachment. Deve-se observar e discutir muito mais esta questão. Reitero, o processo para tirar a presidenta Dilma Rousseff do governo é resultado de um projeto político muito bem montado, há muito tempo.
Durante a votação na Câmara dos Deputados, muitos parlamentares, em seus discursos, dedicavam seu voto a favor do impeachment “a Deus”. Isso quer dizer que os governos de Lula e Dilma perseguiram ou tentaram perseguir as religiões?
Não, nada disso. Foram os deputados evangélicos, representantes de seitas que estão infetando o Brasil, que votaram assim por livre e espontânea vontade. A votação na Câmara foi um espetáculo burlesco, que demonstra o baixo nível dos políticos brasileiros. E muitos certamente estiveram na folha de pagamento da FIESP ou das ONGs que recebem dinheiro do exterior.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso assegurou, num evento em São Paulo, que o governo de Dilma Rousseff “não tem mais condições de governar”, e que o Brasil vive uma democracia “corroída e corrompida”. É possível assegurar hoje que o sistema político brasileiro está em crise total?
Sim, a República presidencialista está podre, sua essência é a corrupção, e essa não começou com os governos do PT. As privatizações, ocorridas durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, foram um poderoso veículo de corrupção dos políticos do seu partido. Mas a imprensa corporativa nunca disse nada sobre isso, e se esquece dos grandes escândalos, como a compra do sistema de defesa da Amazônia por parte de uma empresa norte-americana, na qual o presidente Bill Clinton atuou diretamente. E houve muitos outros escândalos. Infelizmente, Fernando Henrique está renegando o seu passado democrata, ao apoiar o golpe de Estado sob a forma de um impeachment. E ele, que faz parte dessa conspiração, é possivelmente o candidato a ser eleito depois que o vice-presidente Michel Temer, que também enfrenta um processo de impeachment na Câmara e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), seja impedido. Assim como o deputado Eduardo Cunha, que é réu no STF e que possivelmente perderá seu mandato, e tampouco poderá assumir o governo.
Por que os BRICS, bloco do qual Brasil é integrante, não saiu em defesa do governo de Dilma?
É um problema diplomático. É importante não intervir nos assuntos internos de outro país. Mas o impeachment da presidenta Dilma Rousseff é um meio de romper o bloco dos BRICS, que busca fortalecer o comércio fora do sistema do dólar, no qual se baseia a hegemonia dos Estados Unidos, o país que tem o absurdo privilégio e o poder exclusivo de emitir a moeda mundial de reserva. Na imprensa dos Estados Unidos, os principais jornais criticaram severamente o impeachment, como em quase toda a imprensa europeia. Entretanto, os setores neoconservadores dos Partidos Republicano e Democrata, os bancos e os interesses da indústria bélica, com o beneplácito do presidente Barack Obama, vem estimulando e financiando o processo contra Dilma, conjuntamente com as classes conservadoras, o empresariado brasileiro e os gritos das capas das revistas.
O regime iniciado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva buscou a independência econômica do Brasil. O plano estratégico nacional instituiu que o Brasil não pode importar nada sem um contrato que estabeleça transferência de tecnologia, algo que os Estados Unidos não admite. Há uma lei do Congresso norte-americano que não permite transferência de tecnologia. Por isso o Brasil desenvolve sua indústria nuclear, para exportação de urânio com tecnologia alemã, por isso não assinou o protocolo adicional do Tratado de Não Proliferação (TNP), o que permitiria investigações intrusivas, completas e sem aviso da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica), para descobrir os segredos das usinas de produção de urânio enriquecido. O Brasil constrói seu submarino nuclear e outros equipamentos com tecnologia francesa. Comprou helicópteros da Rússia e fabrica aviões em associação com a Suécia. E cancelou o acordo para construir uma base de lançamentos de mísseis com os Estados Unidos, na ilha de Alcântara, no norte do país.
Não esqueçamos que o governo de Lula, com seus dois grandes diplomatas, os embaixadores Celso Amorim e Samuel Pinheiro Guimarães, frustraram a implantação da ALCA (Área de Libre Comércio para as Américas), que hoje os Estados Unidos ainda tentam restaurar, através de vários diferentes acordos bilaterais. Logo, o governo de Dilma Rousseff denunciou a espionagem da NSA, e protestou contra o grampo no telefone pessoas da presidenta cancelando a visita de Estado a Washington, em 2013. Tudo isso levou os Estados Unidos a apostarem na troca de regime no Brasil.
A imprensa argentina diz que o governo de Mauricio Macri deu vários sinais de alerta e preocupação por um possível avanço do juízo político contra a chefa de Estado brasileira.
Qualquer que seja o governo no Brasil, a Argentina seguirá sendo sua prioridade. Não creio que isso possa afetar o comércio com o Brasil. Porém, no caso da União Europeia, as negociações parecem ser uma incógnita. Ainda é muito difícil prever. Mas se Michel Temer assumir o governo, também não será por muito tempo. Está condenado a cair, assim como o deputado Eduardo Cunha, presidente do Congresso, que responde processo no STF e não poderá assumir o governo.
Nos últimos anos, vem surgido dados que configuram um certo tipo de crise do sistema capitalista. É interessante observar como os Estados Unidos, a Espanha e o Brasil, para citar alguns exemplos, tenham sintomas similares. Seria correto afirmar que o capitalismo entrou numa situação que pode finalizar numa crise generalizada e mais profunda que a desatada há 20 anos? A China também está mostrando elementos da crise que se manifesta a nível mundial. Significa que se se encerra a possibilidade de que esse país se transforme no gigante do mundo? Diante dessa realidade, o Terceiro Mundo deve se integrar?
Sim, existe uma crise sistêmica do capitalismo, que vem se acentuando desde 2007 e 2008. Mas o capitalismo ainda não esgotou a capacidade de desenvolvimento das suas forças produtivas, muito menos na China, que ainda pode absorver grandes espaços de áreas não-capitalistas, pré-capitalistas ou ainda mais atrasadas, sobretudo agrícolas. Por isso os dirigentes do PC chinês estão prevendo o começo da socialização somente para daqui a 100 anos. E estão certos, conforme a doutrina de Karl Marx, que escreveu que uma formação social nunca desmorona sem que as forças produtivas dentro dela estejam suficientemente desenvolvidas, e as novas relações superiores de produção jamais aparecem em lugares onde as condições materiais para sua existência sejam incubadas nas entranhas da própria sociedade antiga. Marx e Engels jamais conceberam o socialismo como via de desenvolvimento econômico ou modelo alternativo para o capitalismo, mas sim como consequência do desenvolvimento histórico do próprio capitalismo. Quem pensa o contrário não aprendeu nada, nem mesmo com a experiência da história, como foi demostrado no colapso da União Soviética.
Com respeito ao Terceiro Mundo, ele não existe. Foi uma expressão política criada numa determinada época, mas todo o mundo está, de um modo ou de outro, integrado no sistema capitalista mundial, único modo de produção que teve capacidade e condições de se expandir, ainda que de forma desigual, irregular e combinada, em todos os continentes do planeta. É preciso que a esquerda leia Marx, Rosa Luxemburgo, Kautsky e todos os teóricos que desenvolveram o pensamento de Marx, no qual o método é o elemento mais importante e plenamente atual.
O desenvolvimento científico e tecnológico, dos meios de comunicação e dos instrumentos eletrônicos, aumentando a produtividade do trabalho e impulsando ainda mais a internacionalização e a globalização da economia, produzindo uma profunda mutação no sistema capitalista mundial, na estrutura social dos poderes industriais e no caráter da própria classe operária, provocou que esta já não seja a classe operária que algumas tendências políticas de esquerda ainda concebem na teoria, pensando o mundo como se ainda estivessem no Século XIX, ou começo do Século XX.
O deslocamento do centro da produção industrial aos países asiáticos foi acelerado, e hoje se busca mudar a arquitetura política internacional. Embora o capitalismo ainda exista, ele é como o rio, que se altera continuamente, pois as águas estão sempre correndo e passando. “Nós entramos e não entramos no mesmo rio, somos e não somos”, nos ensinou Heráclito. Isso não significa que o capitalismo seja eterno. Chegará dia em que todas as possibilidades de desenvolvimento capitalista estarão esgotadas, e a história mostrará o que acontece com todo sistema econômico: ele há de cair, pelo peso de suas próprias contradições, as violentas e/ou as não violentas. Isso ocorreu com o Império Romano e com o feudalismo.
Hoje, porém, o desenvolvimento da tecnologia digital, dos meios de comunicação e de transporte deram maior velocidade à civilização moderna. Entretanto, é possível que a queda do capitalismo ainda tarde algumas décadas. Mas chegará, e será dramática e violenta, como sua ascensão.
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"A república presidencialista está podre, sua essência é a corrupção" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU