28 Março 2016
“Bem examinada a reprimenda de Teori, ela contém uma advertência séria não só contra a ilegalidade da decisão de um juiz em divulgar um determinado fato sujeito a sigilo, como um aviso à sua conduta pessoal de magistrado, vetada até pelo Código de Ética da magistratura”, afirma Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
Tanto a defesa do impeachment da presidenta Dilma, quanto a defesa desta têm fundado a sua argumentação na Constituição Federal, o que leva para o campo do direito e das leis questões políticas de alta complexidade, transferindo para um “poder não eleito”, como Boaventura de Sousa Santos denomina o Judiciário, a responsabilidade de oferecer solução para a grave crise em que o Brasil está envolvido.
Se o parágrafo único do primeiro artigo da Constituição reconhece todo o poder emanar do povo, e uma das formas da sua expressão ser a do voto, tem-se de dar como certo o sujeito dessa soberania ter escolhido recentemente a presidenta como mandatária desse poder.
Ora, a infidelidade a qualquer mandato, ainda mais quando esse é o de governar o Estado em função daquele mesmo soberano, exige prova incontestável. Não pode depender, por exemplo, só do desgosto de quem perdeu as eleições, ou da admissão apressada e indiscriminada de delações premiadas, notoriamente selecionadas e divulgadas para apressar uma determinada saída do impasse sob o qual vive a nação. Muito menos de decisões judiciais singulares, levadas a público, em franca desobediência aos limites da competência de quem assim decide, e ao previsto em lei, para a regular tramitação de uma investigação dessa gravidade.
Por isso, a baixaria que inspirou a turba inconformada com o despacho do ministro Teori Zavascki, determinando ao juiz Sergio Moro a remessa ao Supremo Tribunal Federal de todas as investigações relativas ao ex-presidente Lula, acrescenta mais um indicativo da contradição motivadora do grupo que tem ido às ruas em defesa do impeachment da presidente.
Se é mesmo a defesa da moral pública, a punição das/os corruptos que ela persegue, deveria reconhecer que o despacho do ministro não teve base exclusivamente jurídica mas fundamentalmente ética, demonstrativa, por sinal, de que o juiz Sergio Moro pode ter dado aí um passo fatal para o futuro dos seus despachos nas operações policiais que determina.
Bem examinada a reprimenda de Teori, ela contém uma advertência séria não só contra a ilegalidade da decisão de um juiz em divulgar um determinado fato sujeito a sigilo, como um aviso à sua conduta pessoal de magistrado, vetada até pelo Código de Ética da magistratura:
"Não há como conceber, portanto, a divulgação pública das conversações do modo como se operou, especialmente daquelas que sequer têm relação com o objeto da investigação criminal. Contra essa ordenação expressa, que – repita-se, tem fundamento de validade constitucional – é descabida a invocação do interesse público da divulgação ou a condição de pessoas públicas dos interlocutores atingidos, como se essas autoridades, ou seus interlocutores, estivessem plenamente desprotegidas em sua intimidade e privacidade",
“Não há como conceber” “descabida invocação de interesse público”, “conversações que sequer têm relação com o objeto da investigação criminal” desprotegendo “intimidade e privacidade das pessoas”, esse recado dá a entender ao juiz destinatário que ele está praticando verdadeiro desvio de poder, abusando da sua autoridade, uma das faltas mais graves que um juiz pratica.
Infelizmente, Sergio Moro não está sozinho. Quem defende direitos humanos em nosso país já presenciou e sofreu, junto das vítimas a quem presta seus serviços, muita humilhação judicial do mesmo tipo. Basta elas se organizarem em algum movimento popular, para defender os seus direitos, para sentirem como a intepretação e a aplicação da lei se distancia da sua letra, quando aqueles direitos estão em causa. À arrogância e à prepotência contra “pés de chinelo”, como a cultura ideológica da desigualdade social presente na intepretação e aplicação da lei contra pessoas pobres as identifica, tem tudo a ver com o verdadeiro soberano, com quem manda no Estado e no seu povo.
Em “Soberania e Constituição” Gilberto Bercovici demonstrava, em 2008, numa linha semelhante às mais recentes lições de Tarso Genro e Boaventura de Sousa Santos, onde se encontra a causa das crises como a brasileira de agora:
“Capitalismo e Estado estão indissociavelmente ligados, são parte da mesma evolução histórica.” {...} O Estado moderno, como Estado mercantilista, firmou-se como uma entidade econômica autônoma.” {...}
“Não à toa, o capitalismo, ou seja, a razão econômica da nova sociedade internacional, está em estreita relação com a razão de Estado. A razão de Estado, primeiro discurso do estado de exceção, tinha por finalidade garantir a preservação do Estado a qualquer preço.” {...} “Mas, para surpresa dos liberais, ao realizarem suas revoluções, um novo ator político entrou em cena: o poder constituinte do povo, incontrolável e ameaçador. As experiências de fundação dos regimes constitucionais inglês, americano e francês demonstram os esforços das classes dominantes em limitar e fazer desaparecer o poder constituinte do jogo político.” {...} “Com o discurso exclusivo da legalidade, a distinção entre normalidade e exceção perde o sentido, pois a exceção, ao ser legal, assume a veste da normalidade.
A forma institucional disso foi o constitucionalismo. O constitucionalismo nasceu contra o poder constituinte, buscando limitá-lo. A separação dos poderes, por exemplo, foi pensada menos para impedir a usurpação do poder executivo do que para barrar as reivindicações das massas populares.”
Que um diagnóstico duro como esse seja aceito sem mais, é de se duvidar, ainda mais considerado o grau de paixão atualmente em conflito entre as defesas jurídicas da presidenta e as do seu impedimento, mas que o aviso desse constitucionalista sobre a manipulação da Constituição em favor de um capital visivelmente insatisfeito com o governo dela, tem toda a procedência, isso não dá para esconder.
As tais “forças ocultas” do passado já nem se escondem mais e se o verdadeiro poder constituinte vacilar, até ele vai ser atropelado por elas. Agora, porém, esse já começou a mostrar que não vai ser pego desprevenido, como aconteceu em 1964, e o povo, consciente das advertências de juristas como aqueles acima lembrados, pode ter a chance de provar que a soberania prevista no parágrafo único do primeiro artigo da Constituição Federal, desta vez, será exercida pelo seu verdadeiro titular.
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A crise brasileira atual revelará quem realmente é soberano no país. - Instituto Humanitas Unisinos - IHU