22 Fevereiro 2016
Das janelas do novíssimo e espelhado prédio destinado à imprensa nacional e internacional, que cobrirá no Rio o maior evento esportivo do mundo, dá para ver a casa de Francisco Marinho. É uma estrutura de concreto de dois andares, com algumas plantas na sua porta como única decoração. A casa está rodeada de lama, pedaços de concreto, restos de azulejo, cabos, e poças de água cheias de mosquitos. O abastecimento de água e a luz faltam frequentemente e o último sinal para desconfiar de que onde ele mora parece terra de ninguém, foi o correio parar de chegar na sua porta. Seu Francisco, de 55 anos, é um dos últimos sobreviventes da Vila Autódromo, a comunidade que virou símbolo das desapropriações e resistência cidadã frente ao legado oficial dos Jogos Olímpicos, que acontecerão na cidade entre 5 e 21 de agosto. Hoje, enquanto o Parque Olímpico alcança 97% de execução, a comunidade está praticamente reduzida a entulhos, não há mais igrejas, nem bares, nem lojinhas, mas cerca de 50 famílias ainda resistem a sair desse pedacinho de terra espremido entre as arenas e a Lagoa de Jacarepaguá.
A reportagem é de Maria Martín, publicada por El País, 20-02-2016.
“Não vou sair. É minha primeira casa própria. Eu fiz ela com minhas mãos e as dos meus filhos. Todos trabalhamos muito para conseguir. Me ofereceram 900.000 reais pela minha casa e 600.000 pela da minha filha que está construída em cima, mas eu compraria com esse dinheiro uma casa onde? Perto daqui é impossível". Francisco está empenhado em ficar, pois a sua não está na lista das casas que devem ser desapropriadas, mas cobra condições mínimas para viver dignamente, porque é ciente de que a pressão de morar em um cenário de guerra pode ser insuportável. "Eu já fiz uma proposta absurda de alta, no caso de eu não ter mais nenhuma opção além de sair, mas eu não quero os milhões deles”, reclama Francisco, porteiro há 30 anos num prédio próximo da comunidade.
Na entrada da Vila Autódromo, o trânsito de caminhões da obra é intenso. É ali que fica a simbólica associação de moradores, que ainda está em pé graças a uma medida cautelar que impediu provisoriamente sua derrubada, um restaurante improvisado para os operários e que oferece um menu de 13 reais, e duas vans da Guarda Municipal com uma dezena de agentes cochilando, embora, sua missão seja, segundo um deles, “custodiar o canteiro de obras”.
Os moradores não gostam de conviver com os guardas na porta. É com eles que se enfrentam toda vez que uma retroescavadeira, ainda no silêncio do amanhecer, avança contra as casas da comunidade, e foram eles os que agrediram moradores com cassetetes e bombas de efeito moral quando pretenderam impedir as demolições. A presença dos guardas é interpretada, junto com os cortes de luz e água e o panorama total de desolação, como mais uma medida de pressão para obrigá-los a sair.
Revoltada com o cenário, Suelly Campos, de 59 anos, explica por que resiste a abandonar o local, que tem sido seu bairro por 22 anos. “Eu fui obrigada a negociar. Me deram 325.000 reais pela minha casa, mas em seguida comprei outra na comunidade. Eu não quero morar num condomínio. Se eu me sacrifiquei para ter uma casa grande, porque eu vou me sacrificar e morar ali nos infernos em uma casa de pombo? Mesmo sem conforto nenhum, eu quero ficar aqui”.
Passaram dois anos desde que os primeiros moradores começaram a abandonar a comunidade, formada então por cerca de 700 famílias, e suas casas foram demolidas deixando um rastro de casas demolidas, entulhos e buracos no chão. Quando começaram as negociações, em 2013, os moradores apresentaram um plano de urbanização para evitar a desaparição da comunidade, elaborado em parceria com uma equipe técnica da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que foi premiado pela Urban Age Award, do Deutsche Bank e da London School of Economics and Political Science. A Prefeitura o ignorou e justificou as desapropriações – compensadas com apartamentos em um empreendimento social próximo ou indenizações – pela necessidade de proteger ambientalmente a beira da lagoa e a construção das vias de acesso ao Parque Olímpico.
O custo da implementação do plano foi calculado em 14 milhões e contemplou também o reassentamento na comunidade dos moradores que tivessem que sair para a viabilidade das obras. A Prefeitura, que sempre afirmou que poderia ficar na comunidade quem quisesse, optou pelos despejos e já gastou só em indenizações 208 milhões de reais, segundo um levantamento do gabinete da vereadora Teresa Bergher (PSDB).
"Como todas as ações da Prefeitura, falta transparência ao processo de desapropriações da Vila Autódromo. Denunciei a discrepância de valores, pois para alguns imóveis a Prefeitura chegou a pagar milhões, e para outros, 40.000 reais. A população tem o direito de saber como este processo está ocorrendo e quanto estamos gastando em uma ação que é do interesse de poucos”, lamenta a vereadora e líder da bancada tucana na Câmara. A Defensoria Pública do Estado acompanha o processo e questiona sua legalidade desde o começo. Para o defensor público João Helvécio de Carvalho a presença dos guardas é uma violação dos Direitos Humanos, pois acaba coibindo a liberdade dos moradores, a fiscalização das execuções de ordens judiciais deve ser constante para evitar arbitrariedades e a Prefeitura nem sequer é proprietária do terreno – o Estado outorgou nos anos 90 a concessão de uso aos moradores por 99 anos.
A resistência também vem de fora
Mas os conflitos na Vila Autódromo não terminam na Vila Autódromo e seus ex-moradores, instalados no Parque Carioca, o empreendimento do Minha Casa Minha Vida para onde foram enviados a maioria deles, ameaçam entrar na Justiça contra a Prefeitura e protagonizar manifestações durante os Jogos Olímpicos. Na sexta-feira, um grupo de seis famílias, “em representação de muitas mais que estavam trabalhando”, apareceu na subprefeitura da Barra da Tijuca em um ensaio de protesto. Eles dizem se sentir enganados pelo prefeito Eduardo Paes que lhes vendeu um sonho que não se cumpriu. “Ninguém queria sair. Aceitamos porque estávamos seis meses sem água. Mas só se deram bem e conseguiram boas indenizações os que bateram de frente com eles [os políticos]. Agora meu apartamento caiu inteiro, está mofando, os materiais são muito ruins”, reclama a auxiliar de serviços gerais Maria Aparecida Victor de Almeida, de 41 anos.
Em uma das reuniões com moradores em 2014, o prefeito Paes assegurava que os que trocassem suas casas na Vila Autódromo por um apartamento estariam se mudando para um “empreendimento privado”. Naquela reunião, gravada em vídeo, Paes falava do empreendimento do Minha Casa Minha Vida como se fosse efetivamente um empreendimento privado e não do Governo Federal em parceria com a Caixa Econômica Federal. Tanto, que em uma das projeções que ele usa para ilustrar seu discurso aparecem imagens do “Empreendimento privado Wind Residencial”, um projeto da Odebrecht a poucos metros do Parque Carioca com sauna, forno de pizza, brinquedoteca, academia, uma grande piscina e cujo metro quadrado custa cerca de 6.100 reais [a média no Rio, a mais alta do país, é de 10.600 reais]. A Prefeitura não confirmou se há ex-moradores da Vila Autódromo morando no empreendimento da Odebrecht, assim como não respondeu a nenhuma das perguntas enviadas por este jornal.
No Parque Carioca, um conjunto de prédios simples onde há churrasqueira e uma modesta piscina para 900 famílias, Carlos Andres dos Santos não se conforma. “Mentiram para a gente. Quando o prefeito nos falou que iríamos para um condomínio privado, onde o metro quadrado está avaliado em 6.500 reais muitos queríamos vir para cá”, explica ele, que trocou sua casa por um desses apartamentos. “Eu fui pacífico e sai de imediato, mas aí me lasquei. Hoje me arrependo. O apartamento está rachado, o cano de esgoto é pequeno demais e fica entupido o tempo todo, os materiais são tão ruins que o vizinho de acima joga uma moeda no chão e você adivinha o valor que é”. Havia muitos problemas na Vila Autódromo, mas estava pago, a casa era minha. Hoje se quiser vender aqui tenho que aguardar 10 anos”.
O que acontecerá com a Vila Autódromo depois dos Jogos está por vir. Os que resistem mantêm a esperança de ter, enfim, asfalto e saneamento básico, mas o fantasma imobiliário nunca deixou de pairar na comunidade. Carlos Carvalho, dono de mais de 10 milhões de metros quadrados de terras na Barra da Tijuca, deu uma pista dos seus planos para o entorno da Vila Autódromo em uma entrevista à BBC em agosto do ano passado. Nos seus mapas, a comunidade aparece como um área verde. “O Parque Olímpico é o local onde depois as crianças vão brincar e se divertir. Na área remanescente, que o município nos vendeu por cerca de um bilhão de reais, vamos construir empreendimentos imobiliários a partir de 2018. Alguns dos prédios vão ser construídos aqui nesta área (apontando para a faixa de terra em frente à Vila Autódromo)”, explicava Carvalho. “Mas tem gente que não concorda, que acha que isso não é bom, e que tinha que deixar os que estavam lá, mas esse problema não é meu. Quem está dando o tom é o prefeito, e nós naturalmente estamos juntos, e achamos que as providências são adequadas”.
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Os últimos sobreviventes do Parque Olímpico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU