19 Janeiro 2016
Fundador da cidade do Rio de Janeiro, Estácio de Sá morreu um mês após ser atingido no rosto por uma flecha indígena envenenada, o que lhe custou uma infecção generalizada. Em meio ao caos atual na Saúde do Rio, a morte agonizante do militar português do século XVI virou sinônimo de mau agouro. Antes do natal de 2015, o governador Luiz Fernando Pezão, do PMDB, ordenou que retirassem de seu gabinete o quadro Alegoria da Morte de Estácio de Sá, encomendado em 1911 pelo então prefeito carioca Inocêncio Corrêa. A decisão foi tomada após uma visita de Jorge Ben Jor. Depois de dar três batidas na moldura da obra, o músico sentenciou. “Está muito carregado, tira”. “Bastou o quadro sair e começou a entrar dinheiro”, comemorou o governador.
A reportagem é de Miguel Martins, publicada por CartaCapital, 19-01-2016.
À parte o misticismo de Pezão, a situação da Saúde no Rio ganhou algum fôlego no início de 2016. Em dezembro do ano passado, os pacientes fluminenses estavam em situação de abandono: hospitais foram fechados por falta de medicamentos e materiais, cidadãos eram atendidos apenas em caso de risco de vida e até as Unidades de Pronto Atendimento (UPA), uma das bandeiras eleitorais de Pezão, tiveram suas atividades interrompidas. Com uma dívida de 1,3 bilhão de reais na pasta, o governo estadual decretou estado de emergência e recorreu a Dilma e à prefeitura para garantir a retomada dos serviços essenciais.
Recentemente, o Ministério da Saúde autorizou o repasse de 155 milhões de reais para o governo do estado. Além dos recursos federais, Pezão obteve um empréstimo de 100 milhões da prefeitura do Rio e disponibilizou 152 milhões da arrecadação do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços para retomar o atendimento da população nas unidades de emergência.
Com o aporte, a Secretaria de Saúde afirma que a assistência de média e alta complexidade foi normalizada em todos os hospitais públicos do estado. Segundo a pasta, as UPA também voltaram a funcionar. Embora pacientes sem risco de vida continuem a ser remanejados, o secretário Luiz Antônio Teixeira Júnior afirma que o atendimento emergencial tem funcionado da “maneira como foi programado”. “Temos apenas problemas pontuais de medicamento e material em algumas unidades, e repasses a serem feitos a fornecedores”.
Teixeira promete ainda rever o valor de contratos com as organizações sociais para tentar saldar o restante da dívida bilionária. Na terça-feira 5, Eduardo Paes, prefeito do Rio, anunciou que os hospitais Albert Schweitzer e Rocha Faria, antes administrados pelo governo estadual, passarão a ser geridos pelo município.
A situação caótica no Rio de Janeiro combina equívocos de gestão, entre eles aumentos de gastos na pasta, e uma conjuntura econômica desfavorável no País e no estado. Por outro lado, tem relação com a crise estrutural de subfinanciamento do Sistema Único de Saúde. Em 2015, a arrecadação do ICMS no Rio de Janeiro, responsável por 70% dos impostos estaduais, foi de 34 bilhões de reais, valor 0,48% inferior ao registrado no ano anterior. A queda porcentual não considera ainda a inflação no período. Houve também uma diminuição de 62% na arrecadação dos royalties do petróleo. A crise na Saúde não é, porém, uma exclusividade do Rio. Diversos estados brasileiros têm tido problemas para arcar com os custos da pasta. Um dos principais motivos é a tendência de as secretarias serem obrigadas a arcar com gastos superiores ao mínimo constitucional determinado.
De acordo com a atual legislação, os estados têm de destinar um mínimo de 12% dos recursos para a Saúde e municípios, 15%. O Conselho Nacional de Secretários de Saúde, presidido por João Gabbardo dos Reis, mandatário da pasta no Rio Grande do Sul, estima que os governos estaduais têm gasto em média 14% e as prefeituras perto de 25%. “Aqui no Rio Grande do Sul, o Ministério da Saúde transfere cerca de 60 milhões por mês para tratamentos de média e alta complexidade, mas muitas vezes esse gasto pode chegar a 80 milhões, o que nos obriga a retirar recursos do nosso próprio Orçamento”.
Além dos gastos superiores assumidos pela maioria dos estados e municípios, uma mudança aprovada no ano passado tornou os repasses da União ainda mais suscetíveis às variações macroeconômicas. Antes, o valor era o mesmo do ano anterior mais a variação nominal do PIB. Após a aprovação de uma Emenda Constitucional em 2015, foi estabelecido que o governo federal deve transferir neste ano 13,2% da receita corrente líquida para ações e serviços públicos em Saúde. Embora a emenda estabeleça um aumento progressivo da porcentagem para 15% em cinco anos, estima-se uma perda de receitas de cerca de 7 bilhões de reais em 2016. Em 2014, o governo repassou 14,2% de sua receita líquida para a área.
O economista Carlos Ocké-Reis, atual diretor do Departamento de Economia da Saúde, Investimentos e Desenvolvimento do Ministério da Saúde (Desid) e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, teme uma perda real de recursos neste ano. “Como a receita corrente líquida depende do crescimento econômico, a taxa de 13,2% deve se dar em uma base menor neste ano, e isso em meio a uma alta da inflação”.
Em reunião com Nelson Barbosa, novo ministro da Fazenda, dez governadores, entre eles Pezão e Geraldo Alckmin, propuseram que os estados passem a cobrar dos planos de saúde pelo uso de hospitais públicos por clientes da rede privada. O objetivo é dividir a responsabilidade da cobrança com a Agência Nacional de Saúde Suplementar, que exige o ressarcimento das operadoras e destina os recursos para o Fundo Nacional de Saúde. Dessa forma, os governos estaduais pretendem aumentar suas receitas sem ter de depender de novos repasses da União.
Em dezembro de 2015, a dívida das operadoras de Saúde com o SUS chegou a 1,1 bilhão de reais, segundo dados da ANS. No ano passado, os planos de saúde haviam pago 728,3 milhões de reais em ressarcimento ao SUS pelo uso da estrutura da Saúde Pública. O valor tem crescido a cada ano. Em 2010, a agência havia recuperado apenas 15,5 milhões das operadoras. Os valores não consideram ainda os débitos suspensos pela Justiça. Segundo a ANS, 527,3 milhões foram encaminhados à dívida ativa nos últimos anos e vêm sendo cobrados por meio do Judiciário.
De acordo com Gabbardo, a cobrança das operadoras pelos governos estaduais pode ser uma medida importante, mas trata-se de uma solução de difícil aplicação. “Os estados e municípios precisariam investir em uma assessoria jurídica para dar conta dos processos parados na Justiça. O mais importante não é quem fiscaliza, mas como ocorre o rateio desses recursos”.
Se o presente não inspira confiança, o futuro da Saúde Pública preocupa ainda mais. No último ano, houve uma diminuição de cerca de 10% de segurados nos planos de saúde, o que deve aumentar ainda mais a demanda por serviços do SUS. Ligado à Secretaria Executiva do Ministério da Saúde, dirigida por Agenor Álvares, o Desid tem buscado soluções para ampliar e garantir o financiamento do SUS, sem prejuízo da política econômica do governo.
Se aprovada a CPMF, Ocké-Reis defende que quase metade da arrecadação seja transferida a estados e municípios. Outra proposta que vem sendo discutida no Congresso é o aumento da porcentagem a ser transferida à área nos próximos anos. No lugar de 15% em 2020, a taxa pode chegar a 18,7%, caso seja aprovada uma nova Emenda Constitucional. Além dessas opções, o economista lembra que a ampliação do SUS serve de medida anticíclica. “Quando se olha para a Saúde apenas como gasto, perde-se de vista que políticas da área podem servir para mitigar os efeitos deletérios da crise sobre a população”.
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O SUS e sua agonia sem fim. A crise da pasta no Rio de Janeiro revela problemas conjunturais e estruturais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU