09 Dezembro 2015
A Igreja escolheu uma nova via durante os trabalhos do Concílio Vaticano II: depois de séculos de vida eclesial caracterizados pela intransigência, muitas vezes pelo exercício de um ministério de condenação, abria-se um tempo novo.
A opinião é do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 08-12-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
"Hoje, a esposa de Cristo [a Igreja] prefere recorrer ao remédio da misericórdia em vez de brandir as armas da severidade." Essas palavras do Papa João XXIII no discurso de abertura do Concílio Vaticano II há mais de 50 anos representam uma reviravolta evangélica na Igreja Católica: depois de séculos de vida eclesial caracterizados pela intransigência, muitas vezes pelo exercício de um ministério de condenação, abria-se um tempo novo, caracterizado pelo exercício da misericórdia: na Igreja, para toda a humanidade, para aquele "mundo" que "Deus amou tanto que lhe deu seu Filho único" (Jo 3, 16).
No rastro aberto por João XXIII, poucos anos depois, Paulo VI chegou a afirmar: "Teremos na vida da Igreja (…) um período de maior liberdade, isto é, de menores obrigações legais e de menores inibições interiores. Será reduzida a disciplina formal, abolida toda intolerância arbitrária, todo absolutismo... Será promovido o sentido daquela liberdade cristã que tanto interessou à primeira geração cristã, quando ela se soube exonerada da observância da lei mosaica e das suas complicadas prescrições rituais".
Depois dele, João Paulo II sentiu a necessidade de dedicar a sua segunda encíclica ao tema da misericórdia: "É preciso que a Igreja do nosso tempo tome consciência mais profunda e particular da necessidade de dar testemunho da misericórdia de Deus em toda a sua missão. (…) A Igreja contemporânea está profundamente consciente de que só apoiada na misericórdia de Deus poderá realizar as tarefas que derivam da doutrina do Concílio Vaticano II".
Depois, o cardeal Joseph Ratzinger, na homilia da liturgia eucarística do início do conclave que o elegeria papa, afirmou: "Ouçamos, com alegria, o anúncio do ano da misericórdia (cf. Is 61, 2) (…) Jesus Cristo é a misericórdia divina em pessoa: encontrar Cristo significa encontrar a misericórdia de Deus. (…) Somos chamados a promulgar, não só com palavras, mas com a vida e com os sinais eficazes dos sacramentos, 'o ano de misericórdia do Senhor'".
Desse anúncio, por fim, o Papa Francisco se encarregou várias vezes: "Estamos aqui – afirmou com força – para escutar a voz do Espírito que fala a toda a Igreja neste nosso tempo, que é precisamente o tempo da misericórdia. Estou certo disso. (…) Nós estamos vivendo em um tempo de misericórdia".
A convocação desse ano jubilar extraordinário focado na misericórdia, portanto, parece ser o fruto maduro desse itinerário de conscientização sobre a urgência da misericórdia, do Papa João XXIII ao Papa Francisco, um itinerário ao qual contribuiu uma fila de homens e de mulheres "de boa vontade", dentro e fora da Igreja Católica.
Pense-se no protestante Albert Schweitzer – médico, teólogo e musicista que abandonou tudo para viver com os leprosos na África e consumar por eles a sua vida até a morte em 1965 – que, no seu testamento, deixou escrito: "Devemos chegar a uma civilização e a um humanismo que tenham como base a misericórdia".
Neste ano, a Igreja quer, então, se dedicar mais do que nunca a assumir o ministério da misericórdia e a exercê-la no seu interior e no diálogo com o mundo. Ora, invocar e buscar a misericórdia em obediência às Sagradas Escrituras e à tradição eclesial significa, acima de tudo, compreendê-la como atributo de Deus ou, melhor, como a própria identidade de Deus, segundo as palavras do Salmo 58: "Deus meus, misericordia mea".
Escrevia o grande pensador judeu Abraham J. Heschel sobre a verdade mais profunda de Deus: "Além da mente, há o mistério, mas além do mistério há a misericórdia". Sim, porque o mistério de Deus não é um enigma, mas uma revelação: a do Deus que é misericórdia. Mas o que significa "misericórdia"?
No Antigo Testamento – tanto no original hebraico, quanto na antiga tradução grega chamada de Septuaginta – há uma grande riqueza lexical, mas os muitos termos referentes ao amor e à misericórdia muitas vezes misturam os significados e são usados como sinônimos. A misericórdia está no riquíssimo espaço semântico do amor: indica bondade, benevolência, indulgência, amizade, disposição favorável, perdão, piedade, graça. Ela tem muitos rostos e também muitos atributos: a misericórdia de Deus é eterna, fiel, preciosa, maravilhosa, melhor do que a vida, estendida acima dos céus, como cantam os Salmos repetidamente.
Na passagem do hebraico para o grego e, depois, para o latim da Vulgata, essa variedade lexical se condensou progressivamente em torno do termo "misericórdia", que indica um "coração pelos miseráveis". Jesus de Nazaré, o homem filho de Deus, o ser humano como Deus sempre quis que estes fossem, levou a cumprimento com atitudes e palavras esse "coração de Deus pelos miseráveis", essa imagem do Deus misericordioso: o Evangelho é a boa notícia da misericórdia.
Há uma mudança forte, decisiva, operada por Jesus sobre o anúncio da misericórdia de Deus para o pecador: também para Jesus justiça e misericórdia permanecem em tensão, mas ele rejeita o juízo hoje, na história. E, como a misericórdia caracteriza o seu ministério e a sua relação com as pessoas que encontra, assim também na sua práxis todo juízo está suspenso, e nenhuma condenação é executada.
Mensagem inédita e até mesmo escandalosa para os próprios contemporâneos de Jesus, mas mensagem ainda hoje capaz de mudar o curso da história. Se Albert Camus, não sem razão, escreveu que "na história da humanidade houve um momento em que se falou de perdão e misericórdia, mas durou pouco tempo, mais ou menos dois ou três anos, e a história terminou mal", o ano jubilar da misericórdia aberto pelo Papa Francisco quer renovar uma temporada de graça e responder ao anseio de paz que habita no coração humano.
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Jubileu, a misericórdia e a reviravolta do Papa João XXIII. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU