02 Julho 2015
"Neste momento e observando de longe, podemos ver um tabuleiro complexo onde aceitar a proposta absurda da Troika é vista como capitulação do gabinete de Tsipras e pode corroer a base de legitimidade da nova esquerda eleitoral europeia. Isto implica uma ampliação de espaço mais à direita e uma urgência organizativa da esquerda radicalizada grega, cuja capacidade de combate é muito elevada", escreve Bruno Lima Rocha, professor de ciência política e de relações internacionais.
Segundo ele, "a força dos gregos está nas ruas e não nas urnas. Se o Syriza é o reflexo eleitoral de uma pré-disposição de luta dos gregos após a ditadura de 1974, este caldo de cultura vem num crescente desde a rebelião popular de libertária de outubro de 2008. Nas ruas das maiores cidades gregas, as bandeiras negro e vermelhas ganham de lavada das bandeiras eleitorais".
"Os delinquentes financeiros - conclui - são a plutocracia de fato a governar as maiores economias do planeta, incluindo a brasileira. Qualquer revés que esta máfia planetária – plutocracia globalizada - sofra é uma significativa vitória para a cidadania em todo o planeta".
Eis o artigo.
O caso da Grécia é exemplar e cabe uma análise mais prolongada, cuja versão sintética trago neste texto. Dentre as manobras e chantagens institucionais da Troika europeia (Banco Central Europeu - BCE; Comissão Econômica Europeia - CEE e Fundo Monetário Internacional - FMI) e as vacilações do Syriza, precisamos começar por identificar o que é prioritário para emitir opinião à distância e interpretar o fenômeno que pode servir de base para os países que vivem diante da espoliação rentista.
Agora, o mais relevante é afirmar a soberania popular da cidadania grega acima dos desígnios ditatoriais da Troika europeia sob o governo dos especuladores de sempre. Este é o ponto mais importante, mesmo que a consequência seja sair da Zona Euro a aceitar o austericídio contra o próprio povo. O “detalhe” analítico nunca realçado pela cobertura midiática de sempre é a origem desta condição de defender a própria vontade.
A força dos gregos está nas ruas e não nas urnas. Se o Syriza é o reflexo eleitoral de uma pré-disposição de luta dos gregos após a ditadura de 1974, este caldo de cultura vem num crescente desde a rebelião popular de libertária de outubro de 2008. Nas ruas das maiores cidades gregas, as bandeiras negro e vermelhas ganham de lavada das bandeiras eleitorais. Nas urnas, o povo agora finalmente vai decidir o seu destino (dia 05 de julho, marcado, quase cancelado e mantido finalmente), indo a um referendo para dizer se aceita ou não os absurdos do Banco Central Europeu.
Parece quase inevitável afirmar o “risco” que tal consulta popular implica. O senso comum, mesmo quando assustado pela possibilidade de sair da Europa, é outro. É dito e repetido “que a dívida e a crise paguem os especuladores e delinquentes financeiros, a começar pelo próprio Mario Draghi, presidente do BCE e ele próprio um homem da Goldman Sachs Europa”. O destino da democracia está lançado nas urnas deste bem vindo referendo.
A possível capitulação do Syriza através do gabinete de Alexis Tsipras
O dia 1º de julho vai ser um marco na história da política contemporânea, no período pós-pós Guerra Fria. O governo Tsipras retomou a possibilidade de simplesmente aceitar - ou aceitar voltar a negociar - a proposta de acordo vinda do BCE e da Comissão Econômica Europeia, a mesma que tanto seu gabinete, como Paul Krugman, Joseph Stiglitz e outros arrependidos da globalização corporativa e financeira disseram que era insuportável. Krugman afirmou que os fantasistas de sempre são os maiores adversários da macroeconomia defendida por aqueles que, para além dos modelos formais, defendem que a economia (mesmo a capitalista) também opere para prover os bens e serviços para as pessoas comuns. O impasse está lançado, pois até o último final de semana de junho, Tsipras e o Syriza apostaram no referendo, cuja vitória para o NÃO ao acordo maldito sairia vitorioso.
Em 1º de julho (de manhã no Brasil e tarde na Europa) o referendo estaria com possibilidade de suspensão e o FMI e a Comissão Europeia dizem que caso a Grécia acate o que dissera ser impossível de acatar no sábado, os termos e as condições do contrato seriam ainda mais draconianas. Obviamente que tanto a mídia corporativa eletrônica internacional como seus reprodutores brasileiros seguem a mesma cartilha tentando isolar a questão, tratando- a como técnica. Curiosamente, a vacilação de Tsipras tampouco foi comentada por seus apoiadores do Brasil. Para seguir no debate, algumas mentiras precisam ser desconstruídas:
- conforme comentou o professor Benedito Tadeu César, sim, há vida após a renegociação da dívida odiosa (este é um termo empregado para a auditagem da dívida, do super-endividamento), e assim foi a recuperação argentina após o calote ao FMI em 2003;
- não há governo iluminado ou qualquer tipo de pretensa "vanguarda responsável" que supere a soberania popular, portanto, em questões de fundo quem deve decidir é a cidadania e não os representantes transitórios;
- por mais que a composição de gabinete do Syriza seja um passo interessante, esta não substitui a capacidade das ruas gregas se manifestarem; a cultura política grega é de confronto e à esquerda do Syriza existem mais de 200.000 gregos dispostos a tudo (e isto falando somente de Atenas). É esta a garantia de uma governança popular para além dos governos de turno ou dos gabinetes transitórios;
- se à esquerda do Syriza existe um bloco difuso e libertário - hegemonizado pelo movimento AKAP - à sua direita há uma extrema-direita (Golden Dawn - Aurora Dourada) e também a ex-direita fascista ND (Nova Democracia). Se houver uma composição destas duas forças, a saída grega pode caminhar para um conflito de proporções absurdas, considerando que o Pasok ganhou as eleições de 2009 com 77% dos votos e traiu absolutamente a confiança dos votantes social-democratas, que migraram para o Syriza;
Neste momento e observando de longe, podemos ver um tabuleiro complexo onde aceitar a proposta absurda da Troika é vista como capitulação do gabinete de Tsipras (segundo as palavras da CNN, pronunciadas no exato momento em que escrevia esta nota) e pode corroer a base de legitimidade da nova esquerda eleitoral europeia. Isto implica uma ampliação de espaço mais à direita e uma urgência organizativa da esquerda radicalizada grega, cuja capacidade de combate é muito elevada.
Infelizmente, e temos de constatar isto, as formas de organização do tecido social pela base estão longe das necessidades de seu povo. Tampouco há um aliado organizado no campo político. Tal como a Esquerda Unida de Espanha (IU, frente política do Partido Comunista de Espanha e hegemônico na central sindical CCOO) nada se pode esperar do maior partido stalinista da Europa, o KKE grego, pois esta agremiação se vê "traída" por seu eleitorado e atropelada pelas urnas com o Syriza e nas ruas pelo bloco libertário.
Negar a proposta da Troika e aprovar esta negação com a legitimidade do referendo seria a melhor saída para a Grécia, ainda que traumática no curto prazo. Parece que mais uma vez “nós” temos razão, e esta razão é afirmar que a política profissional é uma fábrica de traidores de classe e povo. Parece - e sinceramente espero estar errado - que o governo de Alexis Tsipras estaria entrando nesta lista maldita na primeira semana de julho de 2015. Não foi o que se sucedeu completamente, embora o duplo discurso realmente confunda a relevante parcela dos cidadãos gregos que estão dispostos a garantir a soberania popular por todos os meios necessários.
A tragédia grega em tempo real - a noite de 1º de julho
Ao que parece o gabinete de Tsipras deu-se conta de que ia perder em Bruxelas (pelas medidas impagáveis do austericídio) e nas ruas da Grécia. Após flertar com o aceite (renegociado) de um acordo que o próprio governo grego disse no sábado que era impossível de ser acatado, Tsipras mandou um comunicado oficial para a Comissão Econômica Europeia dizendo que aceitaria os termos "re"-negociados pelo FMI. Se cumprido fosse este acordo, as condições draconianas aumentariam o índice de desemprego da Grécia, que supera 25% da população com potencialidades laborais e atinge mais de 40% para os jovens e adultos com menos de 30 anos. No início da tarde-noite europeia, Tsipras afirmara novamente tudo ao contrário, garantindo a realização do referendo de domingo e convocando pelo NÃO ao aceite da indecorosa proposta do FMI que ele mesmo disse que era impossível de assinar e que horas atrás avisava da chance de assiná-la. De novo repito o óbvio:
- A Grécia foi roubada por dentro, no governo da Nova Democracia (2004-2009) quando contratou a Goldman Sachs Europa para uma assessoria econômica especial e teve seus balanços fraudados;
- Nos gastos para a realização dos Jogos Olímpicos de 2004, a Grécia ultrapassou os limites de gastos presumíveis e pendurou as finanças do país no céu, facilitando a vida dos especuladores imobiliários (incluindo uma série de incêndios florestais criminosos) e dos grandes contratistas do Poder Executivo;
- Depois a Grécia foi novamente roubada em 2010, quando assinou um contrato de endividamento através da compra de papéis podres, sendo coagida a privatizar empresas públicas, vendê-las a preço irrisório e contrair um endividamento impagável;
- Em fevereiro de 2010 a Grécia foi posta contra a parede com um ataque especulativo articulado por predadores do mercado financeiro de Wall St, ataque este publicado no próprio Wall Street Journal cujo repórter que compareceu à reunião dos predadores, postara a nota 18 dias após o ocorrido!;
Antes do Syriza ganhar no voto, as camadas sociais organizadas da Grécia ganharam a legitimidade nas ruas e asseguraram um estado de revolta permanente catapultado pela rebelião de 5 semanas ocorrida após o assassinato – em um outubro de 2008 - de um jovem de 15 anos pela polícia anti-distúrbios (MAT). Esta corporação repressiva é totalmente infiltrada por setores fascistas ainda remanescentes da ditadura dos coronéis e base eleitoral do Golden Dwan, Aurora Dourada, partido neofascista da Grécia. A boa notícia é que o apoio da Aurora Dourada vem diminuindo – pela derrota nas urnas e por suas seguidas perdas de espaço de legitimidade e ação nas ruas – enquanto as propostas à esquerda se mantêm.
O epicentro da solução grega seria agora, mostrando ao mundo que não tem sentido algum em praticar a democracia indireta se as decisões fundamentais forem totalmente opostas ao interesse da maiora não passarem por escolha direta da maior parte da população.
“Maria Lucia Fattorelli [1] – 28/06/2015
A Grécia está enfrentando um tremendo problema de dívida pública e uma crise humanitária. A situação atual é muitas vezes pior do que a de 2010, quando a Troika – FMI, Comissão Europeia e Banco Central Europeu – impôs seu “plano de resgate” ao país, justificado pela necessidade de apoiar a Grécia. Na realidade, tal plano tem sido um completo desastre para a Grécia, pois o país não tem obtido absolutamente nenhum benefício com os peculiares acordos de dívida implementados desde então.
O que quase ninguém comenta é que um outro exitoso plano de resgate foi efetivamente implementado naquela mesma época em 2010, não para a Grécia, mas para os bancos privados. Por trás da crise grega há um enorme e ilegal plano de resgate de bancos privados. E a forma pela qual tal plano está se dando representa um imenso risco para toda a Europa.
“Depois de cinco anos, os bancos conseguiram tudo o que queriam. Por outro lado, a Grécia mergulhou numa verdadeira tragédia: o país aprofundou gravemente seu problema de dívida pública; perdeu patrimônio estatal à medida em que acelerou o processo de privatizações, assim como encolheu drasticamente sua economia. Pior que tudo, tem amargado imensurável custo social representado pelas vidas de milhares pessoas desesperadas que tiveram seu sustento e seus sonhos cortados pelas severas medidas de austeridade impostas desde 2010. Saúde, educação, trabalho, assistência, pensões, salários e todos os demais serviços sociais têm sido afetados de forma destrutiva.
A distribuição do Orçamento Nacional da Grécia mostra a predominância dos gastos com a dívida sobre todos os demais gastos estatais. De fato, os gastos com o pagamento de empréstimos, outras obrigações de dívida, juros e outros custos absorvem 56% do orçamento estatal:” Maria Lúcia Fatorelli
Conclusão anterior ao resultado do referendo
É perfeita a observação de Maria Lúcia Fatorelli - coordenadora do excelente projeto Auditoria Cidadã da Dívida e convidada pelo governo grego a auditar esta dívida odiosa - já publicada no IHU.
Fatorelli afirma: “A Grécia é alvo de um ataque de uma década através de manipulação de fatos contábeis e compra forçada de papéis podres em 2010”. Insisto na tese de que é a reação das ruas – e os setores assim organizados – que condiciona o comportamento tímido do governo da nova esquerda. Espero que esta mobilização garanta o referendo de domingo e o vença. Como nos expõe o gráfico publicado no portal já citado, a Grécia compromete 56% de seu orçamento com pagamentos de obrigações e juros de uma dívida impagável e mais que suspeita. É inviável apertar o garrote, a não ser que a proposta da União Europeia implique em uma espécie de ditadura constitucional.
Nesta primeira semana de julho tive a oportunidade de demonstrar estes dados e conceitos em programação radiofônica da emissora pública estadual. Afirmo novamente que a Grécia foi dilapidada em ao menos três ocasiões e a população reagiu com a rebelião de cinco semanas iniciada em dezembro de 2008 e através da pressão das ruas vem freando a sanha dos especuladores. Sinceramente, não há como confiar 100 por cento no governo Tsipras e o referendo é a melhor saída, não para manter o gabinete do Syriza, mas como garantia da soberania popular dos cidadãos gregos.
Espero também que os novos governantes não caiam no canto da sereia do acordo de última hora e mantenham a consulta deliberativa para o próximo domingo dia 5 de julho. Os delinquentes financeiros são a plutocracia de fato a governar as maiores economias do planeta, incluindo a brasileira. Qualquer revés que esta máfia planetária – plutocracia globalizada - sofra é uma significativa vitória para a cidadania em todo o planeta.
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Grécia: Entre a democracia direta e a rendição diante da chantagem promovida pela delinquência financeira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU