22 Abril 2015
"A distinção entre sexo e gênero é retomada e ampliada nos anos Setenta do século passado pelo movimento feminista que começou a refletir sobre as condições ambientais e culturais que determinam o papel dos homens e das mulheres.", escreve Cristiana Pulcinelli, laureada em filosofia, jornalista que aborda temas científicos, professora de comunicação da Ciência na Escola Internacional de Estudos Superiores Avançados, em Trieste, em artigo publicado pela revista Rocca, 15-04-2015. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o artigo.
A “gender theory” ou “teoria do gênero” não existe, no sentido de que ninguém, entre aqueles que se ocupam de estudos de gênero (ou ‘gender studies’) jamais cunhou esta expressão. Por isso não existe nenhuma teoria – no significado científico ou ideológico do termo – que diga respeito ao gênero. Desimpedido o campo desta imprecisão, procuremos analisar alguns termos que entram em jogo na discussão.
Gender ou gênero
O conceito de gênero como algo distinto do sexo foi introduzido nos anos Cinquenta por um psicólogo e sexólogo do John Hopkins Hospital de Baltimore, de nome John Money. Money se ocupava de hermafroditas, ou seja, daquelas pessoas que apresentam órgãos reprodutivos e gônadas com características fenotípicas simultaneamente masculinas e femininas. Na época, as crianças hermafroditas eram submetidas a intervenções cirúrgicas que determinassem o sexo de modo claro. Money e seus colegas tendiam a intervir em conformidade com as expectativas dos genitores ou os papéis sociais que os pacientes eram habituados a desenvolver. Sua convicção era, de fato, que sexo e gênero fossem duas coisas distintas: o primeiro biologicamente determinado e o segundo culturalmente construído.
Identidade e papel de gênero
O novo conceito de gênero fez crescer a atenção em torno de outras duas expressões fundamentais: o papel de gênero e a identidade de gênero. O próprio Money sustentava que gônadas, hormônios e cromossomos não determinam automaticamente a função de gênero, ou seja, “todas aquelas coisas que alguém diz ou faz para manifestar o seu status de rapaz ou homem, moça ou mulher”.
No papel de gênero entram, portanto, além do sexo biológico, o modo de comportar-se, de falar, as fantasias, as preferências nos jogos de infância. Hoje se considera o papel de gênero um conjunto de elementos que sugerem exteriormente a caracterização sexual de um indivíduo. Estes elementos mudam de acordo com a sociedade e o momento histórico.
Com “identidade de gênero” se indica, ao invés, o gênero no qual uma pessoa se identifica. Ou seja: se a pessoa se percebe como homem ou mulher. Sexo, identidade de gênero e papel de gênero podem ser de vários modos interconectados. Na maior parte dos casos eles se correspondem. Uma mulher que tem os atributos femininos (sexo), costuma sentir-se mulher (identidade) e é percebida pelos outros como mulher (função), é definida como pessoa cisgender.
Mas, nem sempre é assim. Algumas pessoas de sexo feminino podem, por exemplo, sentir-se como homens e ser percebidas como homens. Neste caso fala-se de transgender, ou seja, pessoas nas quais sexo, identidade e papel não se correspondem.
E há casos mais complexos nos quais uma pessoa tem uma identidade de gênero pouco definida e que não entra na dicotomia masculino/feminino. Também neste caso parece que o problema seja mais cultural do que biológico. Com efeito, destes casos se ocupou também a antropologia: algumas culturas reconhecem mais do que só dois gêneros.
Por exemplo, no subcontinente indiano as pessoas chamadas hijira não são consideradas nem homem nem mulher e têm um papel [função] diferente, tanto de uma como da outra. Na maior parte dos casos trata-se de indivíduos biologicamente machos ou intersexuais, ou seja, pessoas nas quais os cromossomos, os genitais ou os caracteres sexuais secundários não são definíveis como exclusivamente masculinos ou femininos. Antropólogos e sociólogos falam por isso de terceiro sexo, mas em alguns casos até de quarto e quinto sexo.
A distinção entre sexo e gênero é retomada e ampliada nos anos Setenta do século passado pelo movimento feminista que começou a refletir sobre as condições ambientais e culturais que determinam o papel dos homens e das mulheres. Deste filão iniciam os estudos de gênero.
Compreendem os estudos sobre as mulheres, sobre os homens e os estudos Lgbt (Lésbicas, Gay, Bissexuais, Transgênero).
Nasceram entre os anos Setenta e Oitenta nos Estados Unidos, partindo de diversas áreas de pesquisa: o pós-estruturalismo e o desconstrutivismo, a sociologia de gênero, a antropologia, a filosofia de Jacques Lacan e a reflexão feminista.
Nos últimos anos sofreu a influência também do pós-modernismo, afastando-se sempre mais do conceito de uma identidade fixa em direção a uma identidade múltipla, fluida, pós-moderna em suma.
Estes estudos representam mais que outros uma modalidade de interpretação: a leitura atenta às diferenças de gênero pode aplicar-se a qualquer ramo das ciências humanas, da literatura á história. Atualmente muitíssimas universidades em diversos países mantêm cursos sobre os estudos de gênero. O termo coletivo ‘ligbt’, ao qual às vezes se acrescenta o I de intersexuais e o Q de Queer, dá ideia da variedade de gêneros que hoje são reconhecidos.
O Ahrc, o Australian Human Rights Commission, publicou uma lista de gêneros em nome da qual solicita ao governo uma nova legislação anti-discriminação. A lista contém 23 casos, entre os quais transgênero, transexuais, intersex, andrógeno, 'agender', 'cross dresser' ...
Tanto o sexo como o gênero são outra coisa do que orientação sexual que, ao invés, tem a ver com o desejo. Uma pessoa pode ser atraída tanto emotivamente como sexualmente por indivíduos de sexo oposto ou do mesmo sexo, ou por ambos. No primeiro caso teremos heterossexuais, no segundo homossexuais, no terceiro bissexuais.
Um transgênero, por exemplo, pode considerar-se heterossexual, homossexual ou bissexual. Há depois o caso da pansexualidade, ou seja, indivíduos que experimentam atração por pessoas independentemente de seu sexo. A pansexualidade ultrapassa também a bissexualidade porque se pode manifestar atração, por exemplo, pelos transexuais ou então por pessoas que não se identificam estritamente com um homem ou uma mulher.
Hoje muitos sexólogos incluem entre as orientações sexuais também a assexualidade, ou seja, a ausência de interesse e desejo pelo sexo.
Teoria queer
O termo “Queer” em inglês era um termo depreciativo e homofóbico. Conectá-lo com um termo “acadêmico” como teoria suscitaria certo escândalo. E o fez quando foi conectado, nos anos Noventa, no seio dos estudos de gênero, àqueles do feminismo e àqueles sobre lesbianismo e sobre os gays. A primeira a falar de “Teoria Queer” foi Teresa de Lauretis, italiana residente nos Estados Unidos, numa convenção em 1990, na base das teses de Michel Foucault, Jacques Derida e Julia Kristeva. Mas a própria De Lauretis abandonou o termo alguns anos mais tarde.
A teoria põe em discussão a naturalidade da identidade de gênero, da identidade sexual e dos atos sexuais de cada indivíduo, afirmando que são construídos socialmente. Em sentido lato, “queer” descreve aqueles modelos que põem em evidência a incoerência naquelas que se presume serem relações estáveis entre sexo, gênero e desejo sexual. Contrapondo-se ao modelo da estabilidade, queer focaliza os desalinhamentos entre sexo, gênero e desejo. Em geral queer é associado a pessoas lésbicas ou gays, mas inclui também cross dressing, hermafroditas, ambiguidades de gênero e transexuais.
Demonstrando a impossibilidade de qualquer sexualidade “natural”, essa ideia põe em discussão também termos aparentemente não problemáticos como “homem” e “mulher”. Em substância, os indivíduos não podem ser descritos usando termos gerais como “mulher”, “homem” ou também “heterossexual”, já que uma pessoa não pode entrar numa categoria particular. Recentemente, “queer” é usado também como um termo guarda-chuva para um conjunto de identidades sexuais culturalmente marginais.
Sexo construído?
Hoje também a Organização Mundial da Saúde reconhece uma diferença entre sex e gender [sexo e gênero]: “Sexo se refere às características biológicas e fisiológicas que definem o homem a mulher, enquanto gênero se refere aos papéis socialmente construídos, aos comportamentos, às atividades e aos atributos que determinada sociedade considera apropriados para um homem ou uma mulher”.
Há, todavia, quem considere que também o sexo poderia ser algo socialmente construído. Judith Butler, docente de literatura comparada e autora, em 1980, de um texto fundamental para o movimento feminista, ‘Gender Trouble’, sustenta, por exemplo, que ”talvez este construto chamado sexo seja construído socialmente de certo modo como o gênero... com a consequência que a distinção entre sexo e gênero se revela não ser uma distinção”. Embora, recentemente, a própria Butler, entrevistada pelo Nouvel Observateur, especificou: “o sexo biológico existe. Não é uma ficção, nem uma mentira, nem uma ilusão. Mas a sua definição necessita de uma linguagem e de um quadro de compreensão. Nós nunca mantemos uma relação imediata, transparente, inegável com o sexo biológico”.
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Léxico sobre o gênero - Instituto Humanitas Unisinos - IHU