31 Outubro 2014
Patrimônio cultural nacional, a pequena Igreja de Santo Antônio fica bem próxima à hidrelétrica de mesmo nome, que começou a ser erguida no fim de 2008 na capital do Estado de Rondônia. Um deck montado no pátio da capela oferece uma vista privilegiada das comportas da usina. É fim de expediente e a fila dos ônibus que serpenteiam pelo canteiro ainda impressiona, embora o contingente de operários já tenha sido reduzido em mais de 60%, dada a proximidade do fim das obras.
A reportagem é de Murillo Camarotto, publicada pelo jornal Valor, 30-10-2014.
A 50 quilômetros da usina, um carro de som circula com dificuldade pelas ruas enlameadas de Jaci-Paraná, distrito que experimentou crescimento exponencial nos últimos anos, enquanto abrigou boa parte dos trabalhadores da obra hidrelétrica de Jirau, também em Porto Velho. O alto-falante acoplado ao teto do veículo tenta atrair a freguesia ao comércio local, que estava praticamente às moscas em uma tarde de terça-feira, reflexo da desmobilização na usina, já próxima de 50%.
Se para o Brasil, os projetos das duas hidrelétricas no rio Madeira representaram um importante reforço no suprimento energético, aos olhos dos rondonienses os empreendimentos surgiram como esperança de um novo e definitivo ciclo de desenvolvimento para uma região que testemunhou o progresso passageiro dos ciclos da borracha e do garimpo.
Diante do avanço na dispensa de mão de obra, o sentimento em Porto Velho é de frustração com o legado das hidrelétricas. O crescimento de 30% na população da cidade - hoje próxima de 500 mil habitantes - não foi compensado pelos investimentos públicos necessários. Resultado: os problemas sociais aumentaram e os gargalos de infraestrutura estão por toda parte. Some-se a isso as quedas no movimento do comércio, na ocupação dos hotéis e nos preços dos imóveis. Obras importantes estão paradas há vários anos e outras nem chegaram a começar.
A Prefeitura de Porto Velho criou em 2010 uma secretaria para tratar especificamente da relação com as usinas. O atual titular da pasta, Vicente Bessa, reconhece as dificuldades, mas atribui a responsabilidade à administração anterior, que, segundo ele, dimensionou mal as necessidades do município na hora de negociar as contrapartidas das hidrelétricas. Pelo acordo fechado, Santo Antônio deveria investir R$ 65 milhões em compensações. Jirau se comprometeu com R$ 92 milhões.
A maior parte das obrigações foi cumprida pelas empresas, segundo o secretário. O grosso das contrapartidas concentrou-se na construção de escolas, hospitais, creches, postos de saúde e edifícios da administração pública. Também foram contemplados investimentos em sinalização de trânsito, capacitação profissional e programas de combate às drogas. O crescimento do tráfico e do uso de drogas é um dos efeitos colaterais mais citados quando o assunto é a expansão desordenada da população.
"Não havia pedintes em Porto Velho. Hoje temos uma cracolândia no centro da cidade", queixa-se Bessa. Entre 2011 e 2012, quando acentuou-se a desmobilização das usinas, o índice de homicídios cresceu 16% na capital de Rondônia. A prefeitura aponta ainda o avanço da prostituição. "Tiveram que ser criadas mais duas varas de família para dar conta do salto nos casos de investigação de paternidade", conta a promotora Aidee Torquato, coordenadora do grupo de trabalho criado no Ministério Público de Rondônia para acompanhar as obras das usinas.
A seção local do Serviço Nacional do Emprego (Sine) funciona nos fundos da Companhia de Mineração de Rondônia. Todas as manhãs, uma enorme fila se forma em frente ao prédio. A espera fica mais difícil com o mau cheiro resultante da mistura entre o calor amazônico e o esgoto a céu aberto na rua. É para o Sine que segue a maioria dos operários dispensados pelas usinas. Após atingir o pico de 21 mil trabalhadores em julho de 2011, Santo Antônio conta atualmente com 8 mil homens. No mesmo período, o contingente em Jirau caiu de 20 mil para 11 mil operários.
"Nossa maior demanda aqui é pedido de seguro-desemprego do pessoal das usinas", explica o coordenador do Sine, Levi Passos. Por conta dos salários bem superiores à média da região, a maioria dos demitidos procura vagas em outras hidrelétricas. O consórcio responsável pela construção da usina de Belo Monte, no Pará, montou um posto de recrutamento em Porto Velho, mas as atividades foram encerradas em setembro. Até julho, pouco mais de 500 trabalhadores foram aproveitados.
A hidrelétrica de Teles Pires, no Mato Grosso, também é desejada. Dispensado de Jirau após um ano e meio, o armador de concreto Cássio Rodrigues quer voltar logo ao batente. Segundo ele, o mercado em Porto Velho "está fraco", tanto em oferta de trabalho quanto em remuneração. "Usina é o ideal, o salário é muito melhor", diz ele, que recebia R$ 1,9 mil mensais em Jirau.
O cenário é desanimador para os operários que não pretendem seguir na carreira de "barrageiro", como são chamados os trabalhadores que migram de usina em usina. Após uma explosão no número de lançamentos imobiliários, quando mais de 300 prédios foram erguidos, a construção civil em Porto Velho estagnou-se.
"O que está ocorrendo agora estava previsto. Nos mais de quatro anos de ascensão, a especulação ficou fora de controle", lembra o empresário Cezar Zoghbi, ex-presidente do Conselho Regional de Corretores de Imóveis (Creci). De acordo com ele, a oferta exacerbada se reflete agora em queda de 30% nos preços dos imóveis.
O comércio e o setor hoteleiro também sentem a desmobilização e temem pelo futuro. O representante local da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis (ABIH), Alberto Horny, conta que a ocupação média em Porto Velho já caiu de 80% para menos de 50%. Durante o "boom" das usinas, foram construídos mais de mil quartos de hotel na cidade.
"Todo mundo sabia que o movimento cairia um pouco depois, mas também acreditava-se que haveria investimento em infraestrutura para melhorar a cidade, que está completamente abandonada. Falta o poder público fazer sua parte. Infelizmente, o crescimento da arrecadação não resultou em melhorias e hoje o nosso principal ponto turístico é o shopping", ironiza.
A queixa é a mesma do empresário Fábio Queiroz, que investiu R$ 600 mil em uma bem equipada farmácia em Jaci-Paraná. O faturamento já caiu 35% desde que os desligamentos se intensificaram em Jirau. Perguntado sobre o futuro, ele reclama da falta da infraestrutura que garantiria alguma viabilidade ao distrito, que ameaça tornar-se um lugar fantasma. O restaurante em frente à farmácia já fechou as portas, assim como lojas, confecções e depósitos de material de construção.
"Houve grande expectativa. Confiou-se que haveria valorização das terras, que chegaria a infraestrutura. Veio algum asfalto, ainda assim de má qualidade. Rede de água, saneamento básico e energia, quase nada. Não há escola para todo mundo, muito menos professor. Muita gente está tentando vender seus terrenos e outras simplesmente abandonando tudo", conta o empresário.
Entre o início e o pico das obras das hidrelétricas, a arrecadação do Estado de Rondônia com ICMS avançou 80%, desempenho superior à média nacional e da região Norte. O PIB cresceu acima de dois dígitos em 2010 e em 2011. A infraestrutura da capital, no entanto, segue precária. Não saiu do papel, por exemplo, um plano de universalização da água tratada, previsto para ficar pronto em 2012. O percentual de famílias com acesso à rede de água na cidade é de apenas 41%.
"Obras malditas que nunca acabam". A mensagem pichada em tom de desabafo talvez seja a intervenção mais recente em um dos cinco viadutos inacabados sobre a BR-364 e que são motivo de chacota em Porto Velho. A obra está parada há mais de três anos e sua retomada virou promessa na campanha eleitoral deste ano, vencida pelo atual governador do Estado, Confúcio Moura (PMDB). O empreendimento fica em um dos principais acessos à cidade e está completamente abandonado, tomado por poeira e ferrugem.
Apesar de grande parte das críticas recair sobre o poder público, as hidrelétricas também são alvo das reclamações. A promotora Aidee Torquato argumenta que, mesmo tendo sido entregues, as contrapartidas das usinas são "migalhas" perto do poderio financeiro das empresas e das necessidades do município. "O cumprimento é medíocre, porque o pedido foi medíocre", critica. Ela prepara algumas ações contra as hidrelétricas, entre elas uma que pede uma readequação das contrapartidas.
As desapropriações também podem ser alvo de ação judicial. De acordo com a promotora, Santo Antônio ofereceu 50 hectares para cada família desalojada, mas entregou apenas 10 hectares. O restante teria sido dado em formato de condomínio, ou seja, em uma grande área na qual cada família tem uma cota de 40 hectares. "As pessoas, de pouca instrução, foram ludibriadas, já que, na prática, não terão acesso direto a essas terras", explicou Aidee. Questionada, a Santo Antônio Energia informou que todos foram corretamente reassentados ou indenizados.
As usinas também respondem atualmente por falhas no cronograma de entrega de energia, que ajudaram a acentuar o prejuízo bilionário assumido pelas distribuidoras do país. Para evitar sanções, tanto Santo Antônio quanto Jirau apelaram para o "excludente de responsabilidade", pelo qual alegam que as greves ocorridas entre 2011 e 2012 nos canteiros impossibilitaram o cumprimento dos compromissos nos prazos acordados.
Quando estiverem em pleno funcionamento, em meados de 2016, as duas hidrelétricas só vão precisar de 400 funcionários cada uma. O que vai ficar para Porto Velho são os royalties, calculados em cerca de R$ 80 milhões anuais. O valor, entretanto, está atrelado à quantidade de energia gerada, o que tem preocupado a prefeitura, visto que Santo Antônio, por exemplo, não está cumprindo o chamado fator de disponibilidade, pelo qual suas turbinas têm que estar disponíveis para gerar energia em 99,5% do tempo.
Em Porto Velho, fala-se que o processo de assoreamento do rio Madeira estaria dificultando a operação plena das turbinas de Santo Antônio, o que é negado pela empresa. Perguntados se, afinal, o ciclo hidrelétrico valeu a pena, muitos moradores da cidade suspiram por alguns segundos antes de responder: "Crescimento é sempre bom..."
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Legado de usinas frustra Rondônia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU