19 Janeiro 2014
O professor e intelectual brasileiro Roberto Romano conta como foi sua experiência durante o regime militar
De criança Roberto Romano aprendeu a conviver com a violência, não exatamente porque quisesse, mas porque a vida lhe impôs. A aura de tranquilidade da cidade onde cresceu, nas décadas de 1940 e 1950, no município de Juguatipã, no norte do Paraná, era constantemente manchada pela violência das grilagens, bandidagem e maus-tratos, inclusive, por parte do governo estadual da época em relação aos professores, profissão de sua mãe. “A região onde vivia quando pequeno era muito violenta, o que levou meus familiares a retornarem a São Paulo”, conta Romano. Esse era só o começo de uma história que, durante os anos de chumbo, foi marcada por resistência, desespero e fé.
Ainda muito jovem, toda a família voltou para o Estado de São Paulo, sobretudo por conta das condições de vida no norte do Paraná. Em Marília, no sudoeste paulistano, Roberto Romano, já na adolescência, começou seu contato com o professor e filósofo católico Ubaldo Pupi. “Entrei para a Juventude Estudantil Católica – JEC com 16 ou 17 anos, quando ocorreu a tragédia do Golpe Militar de 1964. Houve muita perseguição política na cidade, e o professor Ubaldo foi preso e perdeu o emprego na faculdade”, explica.
Por Ricardo Machado
Sombras do regime
O 1º de abril de 1964, dia da mentira, foi marcado por uma das piadas de maior mal gosto da história do Brasil, a deposição forçada de João Goulart, Jango, por parte dos militares. A sombra da ditadura só se dissiparia 20 anos depois. No final da década de 1960, quando o regime, que era para ser apenas de transição, de no máximo dois anos, dava mostras de que perduraria por mais tempo. Romano volta para São Paulo, depois de ficar alguns anos no Convento dos Dominicanos, em Juiz de Fora, Minas Gerais. Quando retornou ao estado paulistano tentou vestibular no Instituto de Filosofia e Teologia de São Paulo. “Não fiquei muito satisfeito com o curso de Filosofia que tinha feito. Havia dominicanos que faziam Filosofia na Universidade de São Paulo – USP. Aí pedi autorização para fazer vestibular lá”, relembra.
Quando eu cheguei no Convento
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O Ato Institucional 5 – AI5 marcou o recrudescimento da ditadura. O céu tornou-se escuro como a noite. Em 1969, Carlos Marighella, líder e fundador da Ação Libertadora Nacional – ALN fora assassinado em uma emboscada do Delegado Fleury, um dos principais carrascos do regime. O apoio dos religiosos dominicanos era aceito dentro da ALN. “O Ivo Lesbaupin foi preso. Quando ele disse que ia para o Rio de Janeiro, o clima já estava pesado, pediu-me que caso ele não aparecesse em tantos dias era para ligar para seus pais”, conta. “Passaram os dias e ele não apareceu. Eu pedi ao superior do convento para ir até o Rio de Janeiro para saber notícias dele. O telefone do convento estava grampeado. Quando eu cheguei no Convento do Leme, chamei um colega para irmos até a casa do pai do Ivo, e na porta mesmo fomos presos pelo Centro de Informações da Marinha – Cenimar”, revela Romano.
Dias de escuridão
Aos militares não importava que a relação de Roberto Romano com a ALN fosse tênue, prenderam-no. “Fui levado e interrogado, mas não tinha muito que dizer, pois não tinha trato com a ALN. Fui transferido do Rio de Janeiro para São Paulo, onde encontrei o Ivo na cela do Departamento de Ordem Política e Social – DOPS, com o rosto totalmente esfacelado. Só o reconheci porque ele usava a mesma camisa xadrez canadense de quando saiu do convento. Quando o vi, pensei — Eu conheço essa camisa”, recorda Romano.
Quando estava em São Paulo, Romano encontrou Frei Betto, que havia sido preso no Rio Grande do Sul e encaminhado ao Dops paulista. “Fiquei mais ou menos dois meses no Dops, depois fomos para o presídio Tiradentes. Meses depois, Frei Tito, que havia sido muito torturado, tentou suicídio. Até que houve uma greve de fome para diminuir o rigor da repressão”, recorda.
Suicídio
A situação ficou de tal modo
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Fonte: http://pessoas.hsw.uol.com.br |
A Igreja e o Regime
A instabilidade política que precedeu e seguiu após o Golpe de 1964 tornou as relações entre Estado e sociedade um tanto quanto nebulosas. A Igreja Católica, em seu grupo majoritário, apoiou o Golpe, embora outros setores, mais alinhados à esquerda, tenham criado importantes movimentos de resistência. A figura de Dom Hélder Câmara, na época Arcebispo do Recife, é emblemática como exemplo de resistência. A coragem e a visibilidade de Dom Hélder custaram-lhe a permanência no Brasil, sendo que, na década de 1970, ele era o segundo brasileiro mais conhecido no mundo, ficando atrás somente de Pelé. O religioso percorreu o planeta denunciando as violações aos direitos humanos do regime militar brasileiro.
Com a saída de Dom Hélder, Dom Paulo acabou sendo um dos protagonistas da resistência contra a ditadura. “Houve corajosíssimos cardeais, bispos, religiosos e leigos que agiram quase profeticamente em defesa dos direitos humanos e da fé cristã no sentido autêntico; Dom Paulo foi um deles, assim como Dom Tomás Balduíno”, pondera.
Após a tentativa de suicídio, Dom Paulo visitava Roberto Romano com alguma frequência no presídio, até que um dia teve uma surpresa desagradável, quando outro monsenhor foi visitá-lo. “Eu estranhei quando Dom Paulo não veio, pois ele sempre vinha. Aí o monsenhor que veio me visitar disse: ‘nós decidimos que o Dom Paulo não pode vir’. Mas nós quem? Não tive resposta”, recorda. “A ida de Dom Paulo ao hospital era muito significativa, pois era um claro recado de que ele sabia onde eu estava, com quem eu estava e como eu estava. Isso era um aviso direto para qualquer tentativa mais truculenta que existia na polícia naquela época.”
Reabertura política
Houve corajosíssimos cardeais,
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Como não há mal nem temporal que sempre dure, as nuvens negras do regime militar se dissiparam, apesar da demora. Os anos mais combativos de Roberto Romano contra o Estado na luta pelos direitos humanos deram lugar a um período mais ameno de sua vida. A luta permaneceu e permanece, mas no campo das ideias. Agora, o único padecimento do corpo é o do cansaço intelectual.
Nos últimos anos Romano tem dedicado seu tempo às atividades acadêmicas de aula e pesquisa. Atualmente vive em São Paulo, capital, no bairro Jardim Paulistano, que como ele mesmo define “não é rico como o Jardim Europa, nem pobre como os outros jardins”.
As lembranças que se passam por debaixo dos cabelos brancos de Romano trazem momentos de uma vida atravessada pela história recente do Brasil. A violência que o acompanhou da infância à maturidade não parece ter se transformado em ressentimento, afinal, manteve sua resignação resistente com estudos e esforço compreensivo da realidade social. Aos 67 anos de idade, Roberto Romano atravessou boa parte de sua vida lutando contra violência, sem violência. Ele parece ser um daqueles exemplos vivos de que o presente só faz sentido quando visto pelas lentes do passado.
Nota: A fonte da primeira foto que ilustra a reportagem é unicamp.br.
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Fé e resistência nos anos de chumbo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU