Por: Caroline | 10 Dezembro 2013
No dia 10 de dezembro de 1983, Estela Carlotto (atualmente presidenta da associação das Avós da Praça de Maio) levantou, vestiu-se e foi se encontrar com as outras Avós na cidade de La Plata (Argentina). Juntas, viajaram para Buenos Aires. O grupo foi se tornando maior com as Mães e Familiares dos Desaparecidos. Estavam próximos a Cabildo (edifício histórico localizado na Praça de Maio), onde falou o ex-presidente Raúl Alfonsín. As mulheres colocaram seus panos brancos e todos levantaram seus cartazes. Apesar da morte que as rondaram durante anos, estavam contentes. Para Estela não vem à mente nenhuma imagem, mas uma sensação: “Era uma festa. Festejávamos algo conquistado após muita luta. Estava todo o povo. Era o começo de uma nova era”.
As Avós da Praça de Maio acreditavam que sua tarefa, a partir do dia 10 de dezembro de 1983, tal como haviam iniciado em 1977 e que foi estendida até o final da ditadura, havia terminado; que deixariam de ser detetives ativas na busca das crianças desaparecidas, visto que o Estado democrático passaria a assumir este papel. “Era um pensamento claro: ‘Vem um governo constitucional, eleito pelo povo e então, agora, nós passaremos a colaboradoras’. Pensávamos realmente que o estado de direito iria recompor tudo o que o Estado terrorista havia feito: que iria procurar os desaparecidos, os netos, que iria julgar e condenar. E nós passaríamos a ser, não espectadoras, mas sim colaboradoras e que revelaríamos tudo o que sabíamos”.
Os netos começaram a ser encontrados em 1979. Os primeiros foram os irmãos Anatole e Victoria Julien Grisonas, localizados no Chile pelo grupo Clamor. Depois vieram Tatiana Ruarte Britos e Laura Jotar Britos, adotadas por boa fé, “mas através da má fé da Justiça”, Juan Pablo Moyano e Tamara Arze. “Eram netos já nascidos e não havia nenhuma ação legal, porque eram adotados legalmente, em sua maioria por pessoas que não estavam relacionadas aos militares. Entrou-se em contato com a família, restituiu-se o vínculo, mas as crianças acabaram ficando com a família adotiva, pois eram pessoas boas. Já Pablito Moyano Artigas foi encontrado através de cartazes que colocávamos na rua. E estava com uma mulher que também o havia recebido mediante um juiz. Todo o conjunto de informações, sobretudo a partir do que nos contaram os encontrados, foi transmitido à Justiça. Tínhamos uma ilusão total”, recorda Estela.
Estela sabe que em 1983 votou em uma escola de La Plata, a quinze quadras de sua casa e que foi com seu esposo Guido, mas o restante apagou-se. Não lembra se estava junto com seus filhos Claudia, perseguida até muito recentemente, Kibo, que estava no exílio, e Remo, que prestava o serviço militar durante a ditadura. Também não sabe em quem votou. As Avós haviam apoiado a candidatura do deputado Augusto Conte, fundador do Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS), mas ele se apresentava na cidade de Buenos Aires, e ela vivia na província. “Era uma votação muito confusa, estávamos muito abaladas. Por isso, nem sequer me lembro em quem votei. Festejei com Guido, gostávamos muito de Alfonsín. Não o conhecia, mas quando falavam (Ricardo) Balbín ou Alfonsín, eu ia aos atos. Quando Guido foi sequestrado, detido, desaparecido, pensava em fugir, não sei como, e ir à casa de Alfonsín, em Chascomús, para me refugiar. Éramos todos radicais”.
A entrevista é de Victoria Ginzberg, publicada por Página/12, 08-12-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Porém, os rapazes eram peronistas.
Os rapazes eram todos peronistas. Dos radicais falavam sempre pestes: “Golpeavam a porta dos quartéis, não sabem governar...”.
Os órgãos de direitos humanos preferiram uma comissão bicameral ao invés da Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep). Por quê?
Entendíamos que teria mais força, mais potência e que poderia garantir o que foi dito. Que não ficaria nas mãos de um grupo de notáveis, mas dentro de um Parlamento. Daria mais proteção com o passar do tempo. A Conadep durou muito pouco.
E visto à distância?
Teria sido melhor uma bicameral. Mas, foi a Conadep. A Conadep trabalhou muito bem, mas o tempo foi curtíssimo.
Quando Alfonsín assumiu, acreditava que iria julgar aos militares?
Todos acreditavam. Acreditávamos que iria fazer justiça e que nossos filhos e netos iriam voltar...
Pensavam que poderiam conhecer o destino dos corpos ou daqueles que poderiam estar vivos?
Eu havia recebido o corpo de minha filha Laura, sabia o que se passava internamente. Mas, até o dia de hoje ainda querem nos convencer de que estão vivos. O Serviço de Inteligência fazia coisas miseráveis e se envolvia com as famílias através de informações falsas. Diziam que estavam no Uruguai ou no Paraguai com outro nome, que estava em um hospício. Diziam que estavam no Sul, em lugares de recuperação. Isso foi dito a mim por (Reynaldo) Bignone.
Que balanço faz do Julgamento das Juntas Militares?
Foi realmente um ato heróico. Fazer um julgamento quase imediatamente após se recuperar a democracia foi uma audácia, estava tudo fresco. Ninguém poderia pensar que seriam santos após entregar o poder. Há que valorizá-lo historicamente. O próprio Alfonsín confessou depois que tinha um revólver na testa, que o ameaçavam com um golpe. Fomos ao julgamento, ainda que não fosse possível ir todas as vezes que se desejasse. Os fatos quase não saiam das quatro paredes. Não se publicava quase nada. Estivemos, sim, no dia da sentença. Ali estávamos todas sentadas e quando (o promotor Julio César) Strassera disse ‘Nunca mais’, houve uma gritaria... Em seguida, tiveram que deter um grupo de Mães por indisciplina. Eu vi que saíram por outra porta e me disseram: ‘Você quer ir presa?’. Levavam-nas por terem perturbado o ato. Na porta começamos a pedir que fossem liberadas. Contribuímos com nossos testemunhos, mas depois vimos o retrocesso das leis.
Você se lembra das “felizes páscoas”?
Também estávamos na Praça. Queríamos ir ao Campo de Maio. E nos disseram “não vão, a casa está em ordem”. Nós estávamos ali para nos mobilizarmos.
O radicalismo apontava que poderia ter sido um banho de sangue.
Ninguém queria morrer, mas nossos filhos é que estavam em jogo. Tínhamos medo, mas o enfrentávamos, sempre. Ainda mais na democracia. É uma história densa.
Carlotto, Rosa Roisinblit e María “Chicha” Mariani conversaram com Alfonsín pouco tempo após a conclusão do Julgamento. Roisinblit se lembra com clareza da reunião. Tinham uma solicitação: uma ferramenta para poder identificar cientificamente as crianças que estavam procurando. Assim, nasceu o Banco Nacional de Dados Genéticos.
“Muito criticam Alfonsín, mas creio que ninguém poderia ter chegado ao cargo sem ceder algo. Creio que atravessamos 30 anos de governos constitucionais, mas a democracia é outra coisa, é algo que construímos todos os dias, com todos”, disse recentemente Rosa, vice-presidente das Avós. Estela tem algo muito claro: “Nunca lhe pedimos que excluísse das Leis de Ponto Final e de Obediência em razão do tema das crianças. Quando quiseram nos consolar dizendo que as Avós teriam algo, porque se eliminava o sequestro de menores, enojamo-nos. Como podemos nos contentar com isto? Nossos netos não nasceram de um repolho, queremos justiça para todos”.
Acredita que as leis de ponto final e obediência devida poderiam ter sido evitadas?
Teria que estar sentada na Cadeira de Rivadavia para saber, mas na minha perspectiva... Alfonsín não nos disse nada. Se o que confessou tardiamente tivesse dito nesse momento, teria feito uma convocatória ao povo; se tivesse dito: ‘estão me ameaçando com um golpe do Estado’... Porém, ele resolveu a questão entre galos e meia-noite.
Como o vê hoje?
Acredito que foi um bom homem, honesto. Que fez o que sabia fazer, também não se pode dar murro em ponta de faca. Não era um revolucionário. Era um radical. E, em muitas coisas, os radicais são tíbios. Contudo, era um homem com boas intenções. Eu sempre o apreciei e lamentei muito sua morte.
Irritou-se com as leis?
Criticamos muito o governo, em geral. Era Alfonsín, mas eram os parlamentares também.
Quais são as principais conquistas destes 30 anos?
O Julgamento e, em especial em relação às Avós, a criação do Banco Nacional de Dados Genéticos, na época de Alfonsín e os “fiscalitos” (uma comissão de promotores criada para investigar o rapto de crianças). Na época de Menem, a criação da Conadi (Comissão Nacional pelo Direito a Identidade), que ascendeu à direção da Secretaria de Direitos Humanos. E, nesta década, a anulação e a inconstitucionalidade das leis que implicam nos julgamentos orais e públicos que estão sendo realizados e que são a conquista máxima em relação à justiça.
E, em geral, quais as conquistas destes 30 anos em relação à cidadania?
Sabermos os direitos humanos de todos. E, nesta década, refiro-me aos planos de habitação, de educação, a atenção aos mais pobres, a Atribuição Universal por Filho para a Proteção Social (AUH), as aposentadorias, as leis de casamento civil igualitário (para pessoas do mesmo sexo)... Acredito que são 30 anos muito positivos e isso que ainda estamos esperando saber dos desaparecidos e dos netos, mas isso não significa que não se possa ver claramente o que foi alcançado para todos.
E a principal dívida?
Que cada argentino tenha o que merece para viver com dignidade, que todos tenham trabalho, que criem seus filhos em uma casa digna, que não vivam entre latas e caixas, que não andem descalços e em situação irregular.
E a respeito das Avós?
Que se esclareça o destino de cada um e que encontremos aos netos. Essas são sérias dívidas pendentes.
Realizou-se tudo o que era possível ou há algo mais?
Agora estamos trabalhando na província, com um promotor, para procurar por todas as certidões de nascimento desses anos. Será formada uma comissão.
Seriam 400 dívidas, então.
Claro. Isto é um ultraje global. Estive recentemente na Itália e lhes disse: “Aqui, há alguns anos, perdeu-se um menino, que caiu em um poço e mobilizou-se toda a Europa para tirá-lo de lá. Nós temos 400 em um poço. E temos que tirá-los”.
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Da ditadura à democracia. As lições aprendidas pelas Avós da Praça de Maio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU