Por: Cesar Sanson | 02 Agosto 2013
Cerca de 300 indígenas participaram do Aty Guasu, a grande reunião Kaiowá e Guarani do Mato Grosso do Sul, entre os dias 22 e 27 de julho, na aldeia Jaguapiru, município de Dourados. Intitulada "Ñanderu Mo Mbarete", a assembleia marcou o reencontro de quase uma centena de rezadores e rezadoras indígenas, que há mais de 10 anos não se reuniam. Ao lado de caciques, mulheres, lideranças, professores e trabalhadores da saúde e jovens, os indígenas mais uma vez reafirmaram sua principal urgência: a demarcação de seus territórios tradicionais.
A reportagem é de Ruy Sposati e publicada pelo portal do Cimi, 01-08-2013.
São terras marcadas pela violência, mas, sobretudo, pelas possibilidades de vida traduzidas hoje em luta e reencontros com fragmentos culturais longe da poeira dos museus ou livros de história. Os rezadores explicam que não se chamam mais Ñanderu e Ñandesy - homem e mulher rezadores, respectivamente. "Redescobrimos uma palavra antiga. Nosso nome agora é Tekoa’ruvixa, porque nós damos a vida", conta Getúlio Juca, anfitrião do Aty Guasu.
A espiritualidade dos Guarani e Kaiowá, portanto, é calcada na realidade em que vivem. Entre o reencontro com a "palavra antiga", a troca de cantigas e de experiências, toda a discussão circundava a questão da demarcação das terras indígenas - leia na íntegra a carta dos rezadores e rezadoras do Aty Guasu Ñanderu Mo Mbarete
Aos caciques e lideranças coube a tarefa de formatar a discussão dos Tekoa’ruvixa em pauta de reivindicações, apresentada à presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Maria Augusta Assirati. Presente no penúltimo dia do encontro, acompanhada das coordenadorias regionais do órgão no Mato Grosso do Sul, Maria Augusta ouviu críticas severas dos indígenas à morosidade na demarcação das terras Guarani e Kaiowá.
Ouvidos cansados
"O ouvido de vocês está cansado. E a gente também está cansado de falar a mesma coisa", desabafou a professora Léia Aquino, de Ñanderu Marangatu. "Anos e anos e anos passam e a gente não consegue ver resultado de nada", disse - veja a pauta completa de reivindicações do Aty Guasu Ñanderu Mo Mbarete
Denúncias sobre falta de professores, salas de aula, merendeiras, agentes de saúde, ambulâncias, combustível, medicamentos, verbas, dentistas, políticas públicas para os jovens, e segurança; ataques de pistoleiros, impunidade nos casos de assassinato, discriminação e preconceito em escolas municipais, desmatamento e envenenamento por agrotóxicos, entre outros, foram relatadas à Funai. "Todos esses problemas acontecem porque não temos a terra. A terra é a nossa vida. É só com ela que vamos começar a melhorar", afirmou Léia.
Tudo, porém, permeia a falta de acesso ao território e a lentidão dos processos demarcatórios. A presidente Maria Augusta concordou: "Nada de bom pode acontecer se a gente de fato não der acesso à terra para cada uma das comunidades, que está aqui esperando ter a posse plena dessas terras", disse aos indígenas. "Só que isso não depende só da Funai. Depende de outros poderes - a começar pelo poder público estadual, pelas pessoas que tem fazendas aqui. [Elas] precisam se abrir pra essa discussão - sem preconceito, sem discriminação, sem achar que o seu próprio direito, o direito dos fazendeiros, é o único direito que existe no mundo. Porque não é", enfatizou.
Apesar de reconhecerem a boa vontade da coordenação federal da Funai, para a nação Guarani, nada de novo foi apresentado pelo órgão indigenista. "Mais um dia eu vejo o sol brilhar, e mais um dia eu vejo as autoridades presentes não trazendo resposta para nós, sobre a nossa terra, dizendo: essa área foi identificada, essa área aqui já foi homologada. Ninguém trouxe papel aqui", respondeu Ládio Veron.
Para os indígenas, mais do que sofrer com a não demarcar as terras, os Guarani e Kaiowá estão perdendo território. "Perdemos para o branco antes, e agora perdemos para a soja, cana, braquiara e boi", compara o indígena Jorge Gomes. "Eu não li a Constituição toda, mas onde eu parei de ler, não achei escrito que tem que tirar o índio das terras dele. É bem o contrário. Se tirar o índio das terras dele, o índio tem direito de retornar novamente pras terras dele".
Acordos
A expectativa dos Guarani e Kaiowá é de que o governo federal apresente uma proposta, até o dia 5 de agosto, que dê cabo do conflito fundiário que tem levado milhares de indígenas à miséria no Mato Grosso do Sul. "Nós temos respeitado o acordo com o governo, e estamos aguardando um indicativo concreto de que o problema da demarcação de terras realmente apareça até o dia 5 de agosto", comenta a liderança indígena Otoniel Ricardo, do Conselho Continental da Nação Guarani.
Na última semana, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apresentou um relatório, que sugeriu seis possíveis soluções para o conflito fundiário no estado. O professor Anastácio Peralta, membro da comissão, relata uma tentativa sorrateira de inclusão de pautas contrárias à posição dos indígenas no documento. "Tentaram colocar o apoio ao Projeto de Lei Complementar 227 no relatório. Não se sabe quem foi, mas foi pelas nossas costas. Isso é absurdo", afirmou.
"Nós estamos demarcando a terra com nosso sangue", disse Valdelice Veron à presidência da Funai ao final do encontro. "Nós não podemos esperar mais. Não aceitaremos mais outro prazo [além do dia 5]. Nós não vamos recuar. E todo o derramamento de sangue Guarani e Kaiowá e Terena no Mato Grosso do Sul, a Dilma será a maior culpada", concluiu.
Veja também:
Conjuntura da Semana. O silencioso, duradouro e doloroso martírio do povo Guarani-Kaiowá
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"Nós estamos demarcando a terra com nosso sangue", afirma Kaiowá Guarani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU