Ganhadores e perdedores

Mais Lidos

  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS
  • Dilexi Te: a crise da autorreferencialidade da Igreja e a opção pelos pobres. Artigo de Jung Mo Sung

    LER MAIS
  • Às leitoras e aos leitores

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

10 Abril 2012

"Aqueles que recomendam a "absoluta liberdade de comércio", supondo que ela é produto de um teorema bem demonstrado com hipóteses realistas, devem saber que não há dúvida sobre o ganho geral. A incerteza é sobre quem ganha e quem perde (no nível dos países e no nível dos seus cidadãos), o que sugere que tenham mais cuidado", escreve Antonio Delfim Netto, economista, em artigo publicado no jornal Valor, 10-04-2012.

Segundo  ele, "quem decide se vale à pena perder ou ganhar, no nível macroeconômico e no do cidadão, é a urna. Não nós, os economistas, nos laptops. Esta é, claramente, e ainda que não gostemos disso, uma questão política. Podemos, modestamente, usar os nossos conhecimentos para ajudar a sociedade a escolher o que consideramos o melhor caminho, mas é imoral sugeri-lo em nome da "ciência econômica"".

Eis o artigo.

A teoria do comércio internacional e o mundo mudaram muito desde quando Adam Smith (1776) demoliu o mercantilismo nacionalista, que acreditava que uma balança comercial favorável traria para o país ouro e prata, que poderiam ser utilizados para fazer "a guerra e sustentar a armada e os exércitos em países distantes".

Quando olhamos mais atentamente, a mudança parece ser menor. Com o "dollar standard" e o "privilégio excessivo" do Estado emissor, a coisa na segunda metade do século XX não parece ter sido muito diferente... Baseado naquela doutrina, a política econômica dos mais importantes países do século XVI impunha restrições às importações e encorajava as exportações. O comércio exterior seria um jogo de soma zero: o que um país ganhava o outro perdia.

Usando as horas de trabalho como unidade de medida, o velho Smith mostrou o equívoco embutido nessa proposição. Da mesma forma "que o alfaiate não faz o seu sapato, mas compra-o do sapateiro" (a divisão do trabalho aumenta a produtividade pela especialização), as nações poderiam beneficiar-se desse princípio. O comércio exterior não seria, necessariamente, de soma nula: o que não se podia determinar é como se dividiriam os resultados da vantagem absoluta entre os países.

O primeiro avanço revolucionário sobre essa proposição foi a observação de David Ricardo (1817), que não era preciso a vantagem absoluta. Bastava uma vantagem relativa dentro de cada país. Mas continuaram ainda sérias dúvidas de como se dividiriam entre os dois países os ganhos do comércio que saltavam à vista nos exemplos aritméticos cuidadosamente preparados, nos quais a especialização é completa. De fato, não estava excluída a possibilidade de que eles fossem muito desiguais.

Uma tentativa razoável para "explicar quais os fatores que determinam o comportamento do que é exportado e importado" por um país veio só um século depois. Conhecida como teoria Heckscher-Ohlin, ela afirma que os bens que requerem, na sua produção, muito dos fatores abundantes no país e pouco dos fatores escassos são exportados em troca dos que requerem o oposto. Assim, os fatores de produção com oferta abundante são indiretamente exportados e os com oferta pequena são importados. As conclusões da teoria são interessantes no curto e no longo prazo.

Pensemos num país A, onde os preços relativos dos bens agrícolas com relação aos industriais são menores do que no país B. Quando se inicia o comércio, os preços respondem imediatamente. Em A, os preços agrícolas sobem e os industriais caem e, portanto, aumenta a produção de bens agrícolas e diminui a de bens industriais.

No país B, há um movimento simétrico e de sinal contrário. E depois? No país A (e no B), a utilização dos fatores vai se alterando até que os preços dos fatores e dos produtos se igualem no longo prazo. Há um ganho geral no comércio, cuja distribuição continua incerta.

Mas há, também, cidadãos ganhadores e perdedores dentro dos países. A teoria é impotente para explicar boa parte do comércio mundial atual, onde a indústria exporta e importa os mesmos produtos e é dominada por imensos conglomerados internacionais, que fragmentam a sua produção por dezenas de países na procura de uma minimização de custos através do comércio intraempresas.

Desde o fim da década de 70 do século passado, desenvolveram-se novas teorias que introduzem as "economias de escala" internas e externas e reconhecem o regime de competição monopolística. A incorporação dessas novas realidades melhorou a qualidade do nosso conhecimento, mas não aumentou nossa capacidade de extrair recomendações "normativas" de modelos abstratos. O que ainda resta de incerteza induz a maioria dos economistas a reconhecer as vantagens da liberdade de comércio "cum grano salis".

Aqueles que recomendam a "absoluta liberdade de comércio", supondo que ela é produto de um teorema bem demonstrado com hipóteses realistas, devem saber que não há dúvida sobre o ganho geral. A incerteza é sobre quem ganha e quem perde (no nível dos países e no nível dos seus cidadãos), o que sugere que tenham mais cuidado.

Aventuram-se sem bússola num mar revolto, quando afirmam que a intervenção do governo viola as regras do mercado e introduz "distorções", como aconteceu há poucos dias num respeitado programa de televisão. O que os entrevistadores não lhe perguntaram foi: "Distorções com relação a que? " A um modelo teórico em vias de construção e aperfeiçoamento há dois séculos e meio, e que ainda continua envolvido nas maiores duvidas?

Uma pequena observação para terminar. Quem decide se vale à pena perder ou ganhar, no nível macroeconômico e no do cidadão, é a urna. Não nós, os economistas, nos laptops. Esta é, claramente, e ainda que não gostemos disso, uma questão política. Podemos, modestamente, usar os nossos conhecimentos para ajudar a sociedade a escolher o que consideramos o melhor caminho, mas é imoral sugeri-lo em nome da "ciência econômica".