08 Novembro 2011
Benjamín Forcano nos recorda que neste ano se comemoram os 40 anos de dois fatos diferentes, mas relacionados. A ordenação episcopal de Pedro Casaldáliga e a publicação do livro Teologia da Libertação, de Gustavo Gutiérrez. Sobre o primeiro, nos traz o testemunho de uma testemunha presencial. Sobre o segundo, reflete ele mesmo sobre o desenvolvimento e atualidade da Teologia da Libertação.
Os artigos de Antonio Canuto e Benjamín Forcano estão publicados no sítio Atrio, 05-11-2011. A tradução é do Cepat.
1. 40 anos da Consagração Episcopal de Pedro Casaldáliga
23 de outubro de 1971 – 23 de outubro de 2011
Em tempos em que os novos sacerdotes voltam a usar batina, casulas com fios de ouro e a Igreja se fecha, vale a pena ler o seguinte artigo de Antonio Canuto sobre Pedro Casaldáliga. Um abraço cheio de esperança para todos. Luis Enrique Alves Pinto.
As estrelas, o Araguaia e nós somos testemunhas
Por Antonio Canuto
Praticamente nos mesmos dias em que dom Leonardo deixa o pastoreio desta Igreja e dom Eugenio Rixen a assume como administrador apostólico, completam-se 40 anos da ordenação de Pedro Casaldáliga como bispo.
Foi no dia 23 de outubro de 1971. Um momento da maior importância para a prelazia que assim acolhia o seu primeiro bispo. Momento que não se pode esquecer. Foi um acontecimento que marcou profundamente a Igreja e, sobretudo, aqueles que tivemos o privilégio de participar.
Três anos depois da chegada de Pedro, no segundo semestre de 1968, acompanhado do irmão Manuel Luzón, para iniciar um novo campo de missão, a Igreja da Prelazia se consolidava com a ordenação de seu primeiro bispo. Pedro foi ordenado por dom Fernando Gomes dos Santos, arcebispo de Goiânia, dom Tomás Balduíno, bispo da diocese de Goiás, e dom Juvenal Roriz, bispo de Rubiataba, GO.
Três elementos, mais que significativos, imprimiram àquela cerimônia um caráter totalmente inovador e profético que tiveram forte repercussão não apenas na Igreja do Brasil, mas também em muitas Igrejas do mundo e na sociedade.
O primeiro: a ordenação aconteceu na mais rica e maior catedral do mundo. A abóboda desta catedral estava adornada pela multidão incalculável de estrelas do céu. As paredes eram formadas, de um lado, pela água livre do Araguaia; do outro, pelas areias da colina de São Félix. Ao fundo, a pobre e pequena igrejinha da comunidade. Ao pé da colina, como para recordar a provisoriedade e a fragilidade da vida, o cemitério onde tantas pessoas, mortas ou "matadas", descansavam, ao lado do secular cemitério Carajá.
O segundo: Pedro recusou qualquer sinal externo que o diferenciasse na igreja. Posso estar equivocado, mas creio que é o único bispo do Brasil, e talvez do mundo, que se propôs não usar nunca nenhuma insígnia episcopal. As insígnias episcopais que são entregues ao bispo em sua ordenação atualmente são o anel, o báculo, a mitra e a cruz peitoral. Sinais externos do lugar que o bispo ocupa em uma Igreja estruturada de forma hierárquica. Sinais de sua autoridade e poder. O bispo ainda ostenta um escudo que representa seu lema de vida e serviço. Suas vestimentas também se diferenciam das dos simples sacerdotes (Tempos atrás os bispos ainda usavam nas celebrações luvas, calçados especiais e roupas diversas. Tudo isso para mostrar sua importância na Igreja). Pois bem, naquela noite de 23 de outubro de 1971, a abóboda celeste, as águas do Araguaia e todos os que estávamos ali fomos testemunhas de que algo novo estava acontecendo. Um bispo recusa as marcas de poder para inserir-se totalmente na vida do povo. Estas palavras profético-poéticas fizeram eco: Tua mitra será um chapéu de palha sertanejo; o sol e a lua; a chuva e o tempo sereno, os olhares dos pobres com os quais caminhas e o olhar glorioso de Cristo, o Senhor. Teu báculo será a verdade do Evangelho e a confiança do teu povo em ti. Teu anel será a fidelidade à Nova Aliança do Deus Libertador e a fidelidade ao povo desta terra. Não terás outro escudo que a liberdade dos filhos de Deus; nem usarás outras luvas que o serviço do amor.
O terceiro elemento que marcou esta ordenação deixou um fio de luz e de esperança. Despertou, por um lado, a adesão imediata dos cristãos em toda a Igreja e nos mais diversos setores da sociedade; por outro, provocou a reação irada e violenta dos agentes da ditadura militar e daqueles que se enriqueciam com os incentivos públicos às custas do sacrifício, da dor e da escravidão de muitos.
Foi sua carta pastoral divulgada naquela ocasião e que se intitulava Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social, que marcou época e se converteu em um divisor de águas no seio da Igreja do Brasil. A carta pastoral não olha para dentro da Igreja. É um olhar da Igreja sobre a realidade nua e crua do povo que esta Igreja veio servir.
Nela se relatam as situações vividas pelos "posseiros" que eram expulsos das terras ocupadas e trabalhadas por eles fazia dezenas de anos; a realidade dos indígenas, cujos territórios eram invadidos em benefício do capital; e a exploração dos peões, trabalhadores trazidos de diversas partes do país e submetidos às mais degradantes condições, em situação similar à dos escravos.
Uma palavra clara e profética que denunciava as injustiças que eram cometidas contra o povo e que teve eco no Brasil e em todo o mundo. Pedro dizia na introdução: "Se a primeira função do bispo é ser profeta, e "o profeta é a voz dos que não têm voz’ (cardeal Marty), eu não poderia honestamente ficar com a boca calada ao receber a plenitude do serviço sacerdotal".
A ordenação não foi apenas uma celebração. Concretizou-se, em todos os cantos da prelazia, em formas simples e pobres de vida, em um compartilhar a vida com os sertanejos e indígenas; em uma tomada de decisões de forma coletiva e irmanada, onde seculares, religiosos e sacerdotes tinham voz, olhando sempre para o povo e sua história.
Passaram-se 40 anos. E não podemos esquecer aqueles acontecimentos que foram os fundamentos da nossa diocese.
2. 40 anos da Teologia da Libertação
Por Benjamín Forcano
Há 40 anos, começava uma nova maneira de fazer teologia, que repercutiu notavelmente na sociedade e na Igreja. Com seu livro, o peruano Gustavo Gutiérrez cunhou esta nova maneira de fazer teologia: Teologia da Libertação. Aos 40 anos, alguns a dão como acabada e outros a felicitam pela tarefa desenvolvida e os desafios que coloca de cara com o futuro.
Mas a Teologia da Libertação não começava nos anos 70. Em 1492 se dá o chamado descobrimento da América Latina e em 1511, um frei dominicano, Montesinos, em nome de sua comunidade e diante das autoridades da Ilha Espanhola (hoje República Dominicana), disse, referindo-se aos indígenas e ao trato que recebiam: "Estes, por acaso, não são homens?". Primeira pergunta de uma história da libertação, como muito bom explicou o professor Reyes Mate, em conferência sobre este tema.
A história da Teologia da Libertação pode-se dizer que começou no dia 11 de dezembro de 1511, portanto há 500 anos.
Sem dúvida, não faltaram cristãos que, desde sempre e desde a experiência de sua fé, viam a teologia subordinada a imperativos colonizadores opressivos. Mas, sua experiência não chegava a se formular em novas categorias teológicas e tornar-se pública na sociedade. A partir dos anos 60, vão se produzindo no mundo grandes expectativas de mudança, mas os cristãos pareciam carecer de criatividade e não incidir nesta mudança com alternativas próprias de transformação.
Nesta época Gustavo Gutiérrez lança um enfoque teológico novo a partir do contexto latino-americano. Como apresentar Deus num mundo bipolar de ricos e pobres, onde por lógica sua relação é de injustiça e de exclusão, e como, aí, a fé é capaz de provocar mudanças radicais? Essas mudanças apontam no sentido de que os pobres, os excluídos, os discriminados deixem de sê-lo, o que não é possível sem mudar o sistema.
Se os cristãos têm como base e medida o Evangelho, encontramos nele uma declaração, que soa a Manifesto, na parábola do bom samaritano. Nela se partem todos os esquemas de vãs teologias e se marca o estilo a seguir. Pergunta Jesus: "Na sua opinião, qual dos três foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?". "Aquele que praticou misericórdia para com ele", respondeu o especialista em leis. Ao que Jesus respondeu: "Vá e faça a mesma coisa" (Lc 10, 30-37).
Sentir misericórdia e agir em consequência é condição prévia para aquele que quiser fazer Teologia da Libertação. Antes que uma reflexão fria e abstrata, a Teologia da Libertação é uma vivência, uma prática de amor, dentro da qual brota naturalmente uma maneira nova de fazer teologia.
Obviamente, a Teologia da Libertação não acaba em si mesma, não se contenta em dar explicações do que está acontecendo, mas avança até realizar práticas de mudança e libertação. Explicar a realidade contraditória existente e deixá-la como está não é Teologia da Libertação. A realidade, injustamente interpretada e configurada, necessita ser mudada para ser conformada com o projeto de Deus, que Jesus chamava de Reino de Deus, e que se constrói na base da igualdade, justiça, fraternidade e liberdade. Viver a libertação em mudanças e práticas libertadoras é um imperativo para o cristão, caso quiser ser fiel ao plano do Deus libertador.
Para a mudança da realidade, os cristãos têm que contar com uma análise dessa realidade tecida em torno do binômio riqueza/pobreza, Norte/Sul e que demonstrará que essa situação não é fruto da casualidade nem da vontade dos deuses, mas do egoísmo e cobiça dos homens, do domínio que os mais fortes estabelecem sobre os mais fracos e necessitados.
Esta análise é necessária para descobrir as causas reais da opressão e seus sujeitos responsáveis e evitar o idealismo. O marxismo, não como filosofia ou visão global da realidade, mas como ciência, pode ajudar muito para o conhecimento dessas causas e as funestas consequências derivadas. Vale enquanto sua análise se mostrar verídica para assinalar a gênese e os efeitos do capitalismo. Nunca os teólogos da libertação assumiram o marxismo como visão filosófica da realidade nem o utilizaram acriticamente.
Precisamente porque a Teologia da Libertação aponta para a mudança do que é opressão e injustiça, foi caluniosamente atacada. Esta teologia reclama para a Igreja inteira, o lugar próprio que lhe atribui sua fé desde o seguimento de Jesus: ser pobre, viver com os pobres e comprometer-se com sua libertação.
Este reposicionamento da Igreja é perigosa para os opressores e para uma Igreja-Poder, acostumada a viver em aliança com os poderosos. Nada se dá nesta teologia que não traduza com fidelidade a mensagem radical de Jesus e seu Evangelho. Mas, os "questionados" pela Teologia da Libertação e seu domínio e "meios gigantescos" se encarregaram de espalhar que a Teologia da Libertação era heterodoxa por sua marxistização, seu afastamento do magistério eclesiástico, seu fomento da guerrilha, seu conceito meramente temporal da salvação, por reduzir o Jesus histórico a um líder terreno...
Posteriormente, não poucos vinham associando a sorte da Teologia da Libertação ao socialismo real. A queda deste os fez crer que, paralelamente, estava caindo a Teologia da Libertação. Duplo engano: porque o socialismo não se identificava com o socialismo de Estado e a Teologia da Libertação não era subordinada sua, mas tinha origem e base própria no Evangelho. Como muito bem disse o bispo Pedro Casaldáliga: "A Teologia da Libertação não tem Marx como padrinho, mas Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo".
A queda do socialismo real não canonizava a maldade intrínseca do capitalismo, mas que incitava antes a aprofundar as causas de sua opressão, hoje globalizada. Como sempre, as estruturas econômicas contam na marcha da sociedade, e sem elas não se pode entender o funcionamento do sistema neoliberal. Mas, não são determinantes nem afogam a influência de outros fatores da sociedade, sendo o protagonismo dos cidadãos o maior de todos. A consciência atual pode reverter a visão eurocêntrica dominadora que, há mais de 400 anos, governa a Terra. O homem não é, em relação à Terra, dono e depredador, nem pode continuar a explorá-la de maneira ilimitada e egoísta.
Hoje, a Teologia da Libertação atua nas frentes mais necessitadas de libertação: mulher/varão, religiões confrontadas, indígenas encurralados, povos secularmente submetidos...
O novo paradigma da Teologia da Libertação ultrapassa todas as subordinações do mundo moderno, plasmadas na sociedade e sistema capitalista. A sociedade atual, com o protagonismo dos cidadãos – assim como aparece no movimento M-15 dos indignados – está marcando um novo giro frente à relação de domínio, estabelecido ao longo de séculos.
É um fato que a Teologia da Libertação parece não proporcionar, como em anos anteriores, pensadores eminentes. Seguramente, porque sua seiva viva e transformadora circulou por debaixo, mais horizontalmente, permeando e impulsionando diretamente o pensamento e a ação dos "sem voz".
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