28 Abril 2007
Com a proximidade da V Conferência Geral do do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, que se realizará de 13 a 31de maio, em Aparecida, São Paulo, com a presença do Papa Bento XVI, a revista IHU On-Line entrevistará alguns especialistas para repercutir esse evento.
Assim foi entrevistado, por e-mail, o teólogo Paulo Suess. Professor em universidades da Alemanha e no mestrado e doutorado na Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, Suess é autor do artigo "Do ter missões ao ser missionário. Contexto e texto do Decreto Ad Gentes revisitado 40 anos depois do Vaticano II" publicado pelos Cadernos Teologia Pública, n.18, disponível nesta página.
Alemão radicado no Brasil há mais de trinta anos, Suess é um pensador do diálogo inter-religioso, com base nas experiências com os povos indígenas. Atua como assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) para a questão indígena no Brasil. Doutorou-se em Teologia Fundamental pela Universidade de Münster (Alemanha).
Na entrevista que segue, Suess fala sobre as expectativas em relação à V Conferência, sobre seu processo de preparação e sobre o contexto que antecedeu sua realização.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual a sua apreciação do processo preparatório da V Conferência, considerando o que foram as Conferências anteriores, especialmente Medellín e Puebla, e as diferentes reações aos documentos de participação e de síntese no cenário eclesial latino-americano?
Paulo Suess - No processo preparatório não faltaram boas contribuições que, geralmente, vieram das bases. A proximidade ao chão das comunidades garantiu levantar as questões reais dos respectivos países e da Igreja latino-americana e caribenha. No agir institucional, essas contribuições foram muitas vezes descartadas e filtradas. Os documentos que vieram do Celam como “sínteses”, geralmente, não refletiram os anseios, as dores e a riqueza das propostas das comunidades. Algo semelhante aconteceu na preparação das outras Conferências. Se os anseios dos povos latino-americanos e caribenhos encontrarão voz e articulação, vai depender muito da coragem dos bispos em Aparecida. Vale lembrar que o Concílio Vaticano II começou com um não à documentação preparada pelas Congregações romanas.
IHU On-Line - O que o senhor aponta como questões-chave que mais desafiam a atuação da Igreja na América Latina?
Paulo Suess - Essas questões-chave, que são do conhecimento do povo e dos seus pastores, podem ser nucleadas como imperativos que emergem do Evangelho:
- a assunção da realidade, compreendida como sinal de Deus no tempo, deve tornar-se novamente ponto de partida de qualquer reflexão teológica e ação pastoral, segundo o princípio do Santo Irineu: assumir para redimir (cf. Puebla 400);
- a opção pelos pobres, que deve ser aprofundada como opção com os pobres, respeitando sua subjetividade e seu protagonismo na construção do Reino;
- o reconhecimento teológico-pastoral da Igreja local, que exige mudanças estruturais; a Igreja local precisa romper com qualquer tipo de tutela colonial e praticar a sua idade adulta;
- a ampliação, descentralização e reestruturação dos ministérios para que na prática pastoral possam responder à diversidade sociocultural, dispersão geográfica e necessidade espiritual do povo de Deus;
- a participação qualitativa e diferenciada dos leigos, sobretudo das mulheres, na Igreja;
- a co-responsabilidade significativa do Povo de Deus na escolha dos seus pastores, sem os formalismos democráticos da sociedade civil, porém com regras de participação estabelecidas;
- a formação dos agentes pastorais (diáconos, futuros padres, leigos) a serviço e na proximidade do povo simples e pobre;
- continuidade e aprofundamento do diálogo ecumênico e inter-religioso.
IHU On-Line - Como o sonho de uma sociedade igualitária, justa e solidária das Conferências de Medellín e de Puebla chega até Aparecida?
Paulo Suess - A meta permanece, porém a sua realização está mais longe. A Igreja não trabalha com promessas de realização de sonhos, mas ajuda a manter vivos esses sonhos e as lutas através do seu campo próprio, que é o campo das palavras, o campo de sinais e imagens, palavras que são boa notícia, sinais de justiça e imagens de esperança. Sonhos são sementes. O sonho de uma sociedade igualitária, justa e solidária, é o sonho dos pobres e é a semente contida no evangelho e no seu horizonte, que é o Reino de Deus. As grandes contribuições, que a fila do povo e os próprios bispos-delegados elencaram desde Medellín, precisam ser realmente assumidas, re-contextualizadas e transformadas em ações concretas para a construção de uma sociedade justa e solidária. Os pobres são contemporâneos de Aparecida. Se Aparecida vai tornar-se contemporânea dos pobres, logo veremos.
IHU On-Line - Quais as ênfases teológico-pastorais que melhor ajudarão a Igreja a se situar hoje na realidade latino-americana?
Paulo Suess - O "princípio encarnatório" de Medellín, que tem sua matriz no Vaticano II (GS 22, LG 13, AG 3 e 22), acompanha praticamente todos os pronunciamentos do magistério latino-americano. Em Puebla (1979) será parafraseado como "assunção da realidade" (DP 201, 400, 469) e em Santo Domingo (1992) como "imperativo da inculturação" (DSD 13, 243). Desde a Carta Encíclica Pacem in terris (1963), de João XXIII, o termo "sinais dos tempos" aponta para uma escuta atenta da voz de Deus na realidade histórica (cf. PT 39ss, 126ss). João XXIII identificava com os "sinais dos tempos" da Pacem in terris grandes causas emancipatórias da humanidade: a emancipação da classe trabalhadora, da mulher e dos povos colonizados.
A "escuta da voz de Deus na história" é uma metáfora para uma nova consciência histórica no interior da Igreja. Essa "voz de Deus na história" está vinculada à representação central de Deus no mundo pelos necessitados e pelos pobres. Através da reforma litúrgica, o Vaticano II tirou o altar da parede. Desde então, o sacerdote celebra a Missa versus populum, voltado para o povo. Uma Igreja versus populum e cum populo, voltado para o povo e evangelicamente coerente com o povo, será também relevante pro populo, relevante para o povo, como a vida de Jesus.
IHU On-Line - O que representa Aparecida enquanto evento eclesial no cenário religioso atual da AL, especialmente do Brasil?
Paulo Suess - Aparecida representa, no melhor dos casos, continuidade criativa. Os delegados de Aparecida não se devem deixar guiar por estratégias mercadológicas nem precisam inventar novos paradigmas. Depois da missão colonial até o Vaticano II, depois do diálogo do Vaticano II, da libertação, da opção pelos pobres e da assunção como pressuposto da redenção, em Medellín (1968) e Puebla (1979), Santo Domingo (1992) procurou aprofundar o paradigma da inculturação. Bons textos e análises, inclusive das respectivas Conferências Episcopais, não faltam. Aparecida precisa operacionalizar as decisões tomadas desde o Vaticano II.
No pior dos casos, Aparecida pode representar uma ruptura velada com o magistério latino-americano das últimas décadas, voltar para a cristandade, transformando a “opção pelos pobres” em “assistência aos pobres”. Alguns setores esperam com o imaginário de Nossa Senhora Aparecida e com a missão como marketing mais agressivo reverter a tendência do retrocesso estatístico dos católicos na América Latina. Nesta perspectiva, a Missão seria apenas um tema estratégico. Mas a preocupação maior, que corresponde à natureza missionária da Igreja, deve girar em torno de uma possível perda da qualidade e relevância de nossa presença missionária no meio do povo. Qual é a relevância da presença dos cristãos entre os pobres e os outros da América Latina e do Caribe?
Numa auto-avaliação, ainda bastante genérica, podemos afirmar que o encolhimento numérico dos fiéis é uma conseqüência da perda eclesial de “atratividade”. O que significa “atratividade eclesial”? Ela pode significar falta de coerência evangélica e relevância sociopolítica para o mundo dos pobres-outros. As perdas estatísticas podem apontar para o espírito da época, que tem dificuldades de assumir compromissos a longo prazo, mas também para perdas de profundidade, radicalidade e credibilidade da nossa presença. Afinal, fizemos muitas promessas ao povo que não cumprimos.
IHU On-Line - A caminhada rumo a Aparecida e as diferentes reações diante do caso sobrino estão evidenciando um pluralismo de concepções teológicas e eclesiais, uma diversidade de tendências e divergências internas. Até que ponto a Igreja está capacitada lidar com este pluralismo e esta diversidade interna?
Paulo Suess - Precisamos retomar as práticas plurais nos primórdios do cristianismo. Essa práticas estão presentes nos próprios evangelhos, na patrística, nas teologias. A fé se reveste de culturas, mas não é cultura. Portanto, existem muitas maneiras para expressar a fé. Pela proximidade aos povos e pela diversidade das expressões da fé, da esperança e do amor, a Igreja discípula-missionária se tornará uma instituição mais vulnerável, mas também uma instância de apelação, de contestação, de reconciliação e de graça, mais próxima ao carpinteiro de Nazaré que é filho de Deus. Mas, se não queremos confundir o fundamento da fé com seu revestimento cultural, a filiação divina deve ser expressa não somente através de conceitos da ontologia grega, mas em muitas línguas e linguagens, inclusive através de metáforas latino-americanas. Este reconhecimento da diferença não deve ser tratado como privilégio, mas como direito e dever. A Igreja local não é a filial de uma matriz supostamente universal, mas é Igreja de Jesus Cristo. O pluralismo e a diversidade interna da Igreja são um desdobramento do princípio subsidiariedade. O tema do discipulado missionário de Aparecida aponta para um aprendizado permanente.
IHU On-Line - O que você focalizaria como questões mais urgentes a serem pensadas em vista da comunicação da fé cristã na realidade atual?
Paulo Suess - Por ser essencialmente missionária, a Igreja não vive para si. Ela não está nem se coloca no centro. Ela vive a serviço do Reino. Esse Reino é central para todas as suas atividades e reflexões. A meta da Igreja é o Reino de Deus (cf. LG 9). Ela é serva e testemunha do Reino. No Espírito Santo, é enviada para articular universalmente os povos numa grande "rede" (cf. Jo 21,11) de solidariedade. Do envio nascem comunidades pascais que tentam contextualizar a utopia do primeiro dia da nova criação. Das comunidades nasce o envio. A missão, com seus dois movimentos, a diástole do envio à periferia do mundo e a sístole que convoca, a partir dessa periferia, para a libertação do centro, é o coração da Igreja. Sob a senha do Reino, propõe um mundo sem periferia e sem centro.
IHU On-Line - Quais são as possibilidades e limites para pensar a inculturação do Evangelho na América Latina?
Paulo Suess - Pensar a inculturação do Evangelho significa pensar uma Igreja semente, pensar a encarnação e a cruz, a proximidade aos pobres e outros. Os delegados de Aparecida devem-se lembrar da metodologia de Santo Irineu, tantas vezes citada, sobretudo em Puebla (n. 400, 457, 469), que a redenção da realidade e das culturas pressupõe a sua assunção, uma assunção evangélica (cf. os discursos de Jesus na sinagoga de Nazaré, sobre as bem-aventuranças e o juízo final), sem casuísmos. Assunção não significa identificação, mas vinculação. Essa vinculação está expressa na “opção pelos pobres”, na assunção das lutas pela redistribuição dos bens da terra, na inculturação nos contextos socioculturais diferentes, e no reconhecimento do diferente sem indiferença. A missão inculturada exige o reconhecimento dos carismas da Igreja local.
Somos discípulos-missionários para testemunhar, no meio dos crucificados, um Deus crucificado e ressuscitado, que fez o ser humano à sua imagem e semelhança, e que se deu “para nós” e “para todos”. Como sublinhar esse aspecto de doação, de existência para os outros? O Evangelho nos responde: pelo reconhecimento do outro, pela gratuidade da presença, pela diaconia eucarística, através da opção pelos pobres, na luta e na contemplação, transfigurando a obsessão do mundo globalizado pela rentabilidade, visibilidade, velocidade e contabilidade em gratuidade.
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"Os pobres são contemporâneos de Aparecida". Entrevista especial com Paulo Suess - Instituto Humanitas Unisinos - IHU