Agrotóxico associado a câncer contaminou Bacia do Rio Paraguai, no Pantanal; MPF pede banimento da substância

Foto: Freepik/Brasil de Fato

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05 Dezembro 2025

Substância relacionada à incidência de câncer foi encontrada nos rios Dourados e Paraguai, e até na água da chuva

 A informação é de Leonardo Fernandes, publicada por Brasil de Fato, 03-12-2025. 

Um dos agrotóxicos mais utilizados no Brasil está na mira do Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul (MPF-MS), devido aos comprovados danos ao meio ambiente e fartas evidências de ser um possível causador de cânceres. A atrazina é um herbicida amplamente usado em plantações de cana-de-açúcar, soja e milho, e agora é objeto de uma Ação Civil Pública que busca a proibição de seu uso e a reavaliação imediata pelos órgãos de controle.

Em entrevista ao Brasil de Fato, o procurador da República Marco Antonio Delfino de Almeida, autor da ação, explicou que já havia evidências, agora comprovadas, de contaminação por atrazina em cursos de água como os rios Dourados e Paraguai, na Bacia do Alto Paraguai, região hidrográfica que engloba o Pantanal. A substância foi identificada em águas superficiais, de chuva e, inclusive, nas torneiras de comunidades ribeirinhas.

“A principal questão que faz com que a atrazina seja especialmente preocupante é a permanência dela no meio ambiente. Entre 2003 e 2004, ela foi proibida na Europa. E até hoje ela é encontrada, ou seja, praticamente 20, 21 anos depois, você ainda encontra resíduos de atrazina na União Europeia. Nos Estados Unidos, ela é monitorada. Se você entrar no site do US Geological Service, você tem um mapa que mostra a contaminação das águas superficiais americanas pela atrazina”, aponta o procurador.

A urgência dessas ações é reforçada pela classificação da Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (Iarc) da Organização Mundial da Saúde (OMS), que declarou a atrazina como provavelmente cancerígena. Isso significa que há evidências de que ela causa câncer em organismos vivos, como peixes e ratos, por exemplo.

Dessa forma, o MPF busca a obrigação das fabricantes, importadores e comercializadoras a abster-se de comercializar produtos com o princípio ativo atrazina, assim como aprovar, custear e implementar integralmente um Plano de Recuperação de Área Degradada (PRAD) para a remediação da contaminação e, finalmente, o pagamento de uma indenização de R$ 300 milhões, a ser revertida ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD) ou a um fundo ambiental específico.

Em nota enviada ao Brasil de Fato, a Syngenta, produtora da atrazina, informou que está ciente da Ação Civil Pública que corre em Dourados (MS) e apura os detalhes da notificação. A companhia afirma que trabalha com produtos registrados pelas autoridades regulatórias brasileiras e que “são seguros para o meio ambiente e a saúde humana sempre que aplicados corretamente, de acordo com as orientações da bula e do receituário agronômico”.

A empresa também minimiza a reclassificação da atrazina pelo Iarc ao destacar que a agência não estabelece ligação direta do produto com câncer em humanos.

“A decisão da instituição contrasta com o consenso científico estabelecido por cerca de 50 autoridades regulatórias e grupos especializados ao redor do mundo, que concluíram que a atrazina, assim como os produtos que a contêm em sua formulação, não apresenta risco carcinogênico e é segura quando aplicada de acordo com as instruções adequadas”, diz a nota.

Contaminação geral e o “coquetel” de agrotóxicos

Pesquisas científicas e perícias do MPF revelam uma contaminação crônica e disseminada em Mato Grosso do Sul (MS). A atrazina foi o agrotóxico mais encontrado em levantamentos que abrangeram Cidrolândia, Dourados, Carapó e Miranda, estando presente em todos os pontos coletados.

A pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Fernanda Savicki de Almeida aponta que a situação é gravíssima: em mais de 200 amostras analisadas, nenhuma estava livre de agrotóxicos. Além disso, todas as amostras contaminadas continham mais de dois agrotóxicos, chegando a haver amostras com mais de 12 substâncias. O potencial tóxico dessa mistura é muito mais grave do que o ingrediente ativo isolado.

“É uma situação gravíssima porque assim, de todas as amostras que a gente fez e são mais de 200, a gente não teve nenhuma amostra sem agrotóxicos, todas elas estavam contaminadas, todas elas com mais de dois agrotóxicos. Em geral, no mundo, as análises são feitas por ingrediente ativo e não por compostos de ingredientes ativos juntos. Então, o potencial tóxico da mistura é muito grave, muito mais grave do que o ingrediente ativo em si”, explica a pesquisadora.

Do campo para a cidade

A contaminação não se restringe ao campo. A atrazina faz uma ligação direta entre o campo e a cidade, sendo transportada pela água da chuva e atinge rios e córregos. “É um agrotóxico que faz essa ligação direta entre o campo e a cidade”, explica Delfino. “As pessoas acham que isso é algo muito mais vinculado a pessoas do campo. E a atrazina, ela faz esse vínculo direto. O agrotóxico está perto de você, o agrotóxico está na sua água”, comenta o procurador Marco Antonio Delfino.

Para Savicki, a presença de agrotóxicos na água da chuva é considerada um “escândalo”, pois a ausência de barreiras biogeográficas no estado permite que os produtos químicos circulem pelo vento e nuvens, alcançando territórios muito distantes do local de aplicação.

“Levando em consideração estados como o Mato Grosso do Sul, em que a gente não tem barreiras biogeográficas que impeçam, por exemplo, a circulação do vento, a circulação das nuvens, a gente tem uma ação desses agrotóxicos em territórios muito longe do lugar onde, por exemplo, foi coletado, ou seja, nesses lugares onde estão esses corpos hídricos que a gente coletou essas águas. Então, essa é a situação que a gente tem uma contaminação generalizada no estado e que muito provavelmente transcende a fronteira agrícola do Mato Grosso do Sul”, alerta a pesquisadora da Fiocruz.

Segundo o estudo, a atrazina foi detectada em 100% das 117 amostras coletadas no Rio Dourados e em múltiplas fontes de água, incluindo água de torneira, poços e riachos nas aldeias de Panambizinho, Jaguapiru e Bororó.

Racismo ambiental e as “zonas de sacrifício”

O procurador da República Marco Antonio Delfino de Almeida explica que o uso da atrazina gera as chamadas “zonas de sacrifício”, um conceito ligado ao racismo ambiental, ou seja, o impacto desproporcional de danos sobre populações vulneráveis.

“A própria Corte Interamericana de Direitos Humanos tem um termo chamado ‘zona de sacrifício’, que é o impacto desproporcional, que eventos, por exemplo, associados a mudanças climáticas, promovem em determinadas populações”, pontua o procurador.

“As pessoas vulneráveis, as pessoas que têm moradias mais simples, as pessoas que moram em encostas, as pessoas que têm acesso deficitário a tratamento de saúde, são essas pessoas que serão mais impactadas por contaminações derivadas de grandes empreendimentos, que serão impactadas por eventos extremos. Então é óbvio que o tema do racismo ambiental é um tema que tem que ser colocado em evidência, tem que ser evidenciado. A gente não pode, em hipótese alguma, desconsiderar esse impacto desproporcional desse processo de contaminação nessas comunidades”, considera Delfino.

Em Dourados, o agrotóxico foi encontrado na água de comunidades indígenas. Além disso, explica Delfino, a contaminação na Bacia do Alto Paraguai gera danos transfronteiriços, afetando o Brasil, o Paraguai e a Bolívia.

O duplo padrão internacional e a omissão do Ibama

Como referido pelo procurador da República, a atrazina é exemplo tácito do colonialismo químico que impera na relação entre o modelo agrícola hegemônico no Brasil e a indústria de venenos. Alan Tygel, da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, lembra que a substância está banida na União Europeia desde 2004, inclusive na Suíça, país de origem da Syngenta, a maior vendedora do produto.

“A atrazina representa um exemplo emblemático de como o Brasil se coloca de maneira estrutural na posição de lixeira tóxica do planeta Terra. Uma substância já declarada como desregulador endócrino, banida na União Europeia há mais de dez anos, inclusive no seu próprio país de origem, a Suíça, o país de origem da Syngenta, o maior vendedor ainda dessa substância, e mesmo assim o Brasil segue utilizando tanto essa como tantas outras substâncias”, aponta.

Na ação civil pública, o MPF aponta omissão do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), pois o órgão tem o dever legal de realizar o monitoramento ambiental de agrotóxicos, mas, segundo o procurador, não o faz. Dessa forma, o MPF-MS requer do Ibama a implementação imediata de um programa de monitoramento de resíduos de agrotóxicos.

“O Ibama tem o dever de fazer seu monitoramento ambiental de agrotóxico e não faz. Ele tem o dever de dizer: ‘olha, o agrotóxico está sendo encontrado nas águas superficiais’. [Aí eles dizem:] ‘Ah, mas tem o Sisagua’. Sim, tem o Sisagua, mas o Sisagua é para água para consumo humano. Você tem que ter também o monitoramento das águas superficiais, como é feito nos Estados Unidos”, aponta Delfino.

Embora não seja objeto direto da ação civil pública, o procurador da República diz esperar que o Ibama inicie um procedimento de reavaliação do registro da atrazina.

“A gente espera que o Ibama, voluntariamente, e a Anvisa, também igualmente voluntariamente, especialmente por conta dessa questão recente da Iarc, promova essa reavaliação e retire esse agrotóxico”, afirma o procurador, lembrando, por outro lado, que a responsabilização do Ibama por omissão não desobriga as empresas a arcar com a descontaminação.

Empresas sabiam dos riscos

Em relação à responsabilização das empresas produtoras, importadoras e comercializadoras da atrazina, o MPF-MS pede a aplicação do princípio do “poluidor pagador”, exigindo que as empresas arquem com os custos da contaminação ambiental que causaram. Para Delfino, as empresas tinham pleno conhecimento dos riscos da utilização da atrazina, pelo histórico de danos em outros países.

“Elas têm o que a gente chama de ‘o dever de diligência reforçado’. O que é esse dever de diligência reforçado? Sempre que for verificado que há um risco de danos aos direitos humanos, você tem que fazer uma diligência reforçada. E nesse caso específico, as empresas sabem, elas foram processadas nos Estados Unidos exatamente pela mesma coisa. Então elas não podem alegar que desconheciam, elas fizeram um acordo milionário nos Estados Unidos em relação a isso. Então, como que empresas, que foram processadas nos Estados Unidos, que fizeram um acordo nos Estados Unidos para usar todos os meios necessários para que esse agrotóxico fosse retirado da água para consumo humano, continuam usando esse agrotóxico no Brasil sem que qualquer medida nesse mesmo sentido seja feita no Brasil?”, indaga o procurador.

“A partir do momento que elas conhecem o risco, conhecem os efeitos e mesmo assim persistem na conduta, é óbvio que elas têm que ser devidamente sancionadas”, completa.

Além de não proibir, incentiva

Um dos anacronismos mais latentes da política fiscal brasileira está relacionado aos agrotóxicos. A cadeia produtiva dessas substâncias recebe voluptuosos incentivos fiscais que, apenas no primeiro semestre de 2024, chegaram aos R$ 21 bilhões. Isso faz com que o país figure como o maior consumidor dessas substâncias no mundo, entre as quais dezenas já proibidas no exterior.

Para o procurador Delfino, incentivar o consumo desses produtos é um “absurdo”. “Se você verifica que há presença comprovada de câncer nesses organismos, então como a gente vai permitir que esse agrotóxico seja isento, quando provavelmente ele vai causar dano à saúde? É um absurdo, um incentivo”, pontua.

A política de incentivos fiscais a agrotóxicos é objeto de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) no Supremo Tribunal Federal (STF). Até o momento, o ministro relator, Edson Fachin, votou pela inconstitucionalidade das isenções fiscais, argumentando que a Constituição exige um sistema tributário que pondere a proteção ao meio ambiente e à saúde humana. Fachin foi seguido em seu voto pela ministra Carmen Lúcia.

Já o ministro André Mendonça abriu divergência parcial e votou pela constitucionalidade dos benefícios fiscais, argumentando que a própria Emenda Constitucional 132/2023, da Reforma Tributária, incorporou essa política ao texto constitucional. Por outro lado, propôs que os benefícios sejam modulados conforme a eficiência e menor toxicidade dos produtos. A posição de Mendonça recebeu apoio do ministro Flávio Dino.

Uma terceira corrente, inaugurada pelo ministro Cristiano Zanin, defende a constitucionalidade das isenções fiscais e a manutenção dos benefícios. Os ministros Luiz Fux e Dias Toffoli acompanharam a posição de Zanin.

Faltam votar os ministros Nunes Marques e Gilmar Mendes.

Falta vontade política

Para os entrevistados, o debate sobre a atrazina, portanto, é mais do que uma questão ambiental; é uma discussão sobre saúde pública, justiça social e a responsabilidade de quem lucra com um produto comprovadamente nocivo. Mesmo diante de evidências científicas, falta vontade política para resolver o problema, na opinião da pesquisadora Fernanda Savicki.

“A gente precisa cuidar desse assunto com a seriedade necessária. A gente está falando de saúde pública, a gente está falando de condição ambiental, a gente precisa garantir a salvaguarda da população. O poder Executivo tem essa função, de garantir o bem-estar e o bem viver das populações. E as evidências estão aí, agora é colocar para os entes políticos para que realmente protejam as pessoas”, pontua a pesquisadora.

Segundo Alan Tygel, uma das urgências está na implementação do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara) e da agroecologia como um projeto de Estado que garanta a saúde da população e a produção de alimentos saudáveis.

“Todo esse contexto nos coloca a urgência da implementação do Pronara como uma estratégia de avançar no Brasil com a redução e o banimento dos agrotóxicos mais perigosos, futuramente de todos os agrotóxicos, para que a gente finalmente possa avançar com a agroecologia como um projeto de Estado, um projeto de nação, que coloca em primeiro lugar a produção de alimentos, a saúde da população”, defende Tygel.

A reportagem entrou em contato com o Ibama e com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que fazem a classificação dos agrotóxicos liberados no Brasil, e com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), responsável pela decisão final sobre liberação desses produtos, mas não recebeu retorno até o momento da publicação.

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