30 Outubro 2024
"Sem ingenuidade ou romantismo: existem muitas mulheres piores que homens quando assumem o poder. Isso ocorre por várias razões, mas uma delas é a tentativa de universalizar o modelo", escreve Nelson Lellis, doutor em Sociologia Política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Bolsista pós-doc em Políticas Sociais (UENF).
Igualdade não é uma reivindicação exclusiva de “grupos oprimidos”, conforme algumas mãos insistem desenhar. O liberalismo nasceu com forte crítica à aristocracia e trazendo como pauta a igualdade. Sem dúvida, outros movimentos atentaram para as assimetrias sociais e destacaram a importância da equidade. Mas a desigualdade - num termo conceitual mais abrangente - é fundamental para que se reconheça identidades. Em um mundo cuja esfera pública e instituições foram marcadas pela maciça presença masculina, temos uma abertura significativa (mas ainda tímida diante da dimensão do problema) da participação da mulher em esferas que agora ultrapassam o cuidado familiar e o trabalho de casa.
Contudo, a ideia de igualdade seria promover uma forma “neutra” de participação com uma produção criativa e inovadora dos espaços públicos (e plurais). Em outras palavras, a mulher não precisaria “imitar” o modelo que a precedeu para demonstrar que “chegou lá”. E por quê? Porque isso reproduz o status rerum (“estado da coisa”). Acredito que quem discute gênero de forma responsável leva em consideração tanto a desconstrução quanto a ressignificação diante de um modelo dominante - e não sua reprodução.
Sem ingenuidade ou romantismo: existem muitas mulheres piores que homens quando assumem o poder. Isso ocorre por várias razões, mas uma delas é a tentativa de universalizar o modelo. E para isso, não precisam nem se “hominizar”. Aí se “enobrece”, inclusive, a desvalorização e interpretação de fraqueza sobre questões que lhe são próprias: como o corpo (os seios, o útero, o clitóris)... até que se pregue que uma mulher totalmente liberta/autônoma seria uma mulher liberta de ser uma mulher. Há diferentes correntes do feminismo sobre isso e é importante ressaltar que apenas uma pequena parte está inclinada em des-mulherizar a mulher.
Enfim, como as instituições, o Estado, setores religiosos (em sua grande maioria) partem de um modelo masculino, é crucial que, nesse processo de discussão sobre gênero, mulheres não anulem a si mesmas para reproduzirem o mesmo modelo tornando esses espaços, consequentemente, mais masculinos (do que já são) ou mais femininos (que podem se tornar num outro modelo com semelhante exploração), mas sim, transformá-los criativamente oferecendo uma visão ampla que contempla as diferentes formas de existir. E este é também um exercício para todo e qualquer cidadão.
Quanto ao mundo político: certamente existem críticas sobre as obras de Jean Bethke Elshtain (e outras), que discute(m) o conceito de “política do desvelo”, em que algumas características são interpretadas como essencialmente femininas (afeto, sensibilidade, cuidado, solidariedade - e que também não podem ser generalizadas) e poderiam ser um importante alicerce na imagem política diante da corrupção e violências, interpretadas como comuns nas práticas dos políticos homens; essa distinção (que alguns outros estudos entendem reforçar um estereótipo feminino) pode ser ampliada em seu conteúdo a fim de valorizar outros elementos trazidos pelas mulheres para a política - que NÃO estão restritos aos mencionados. Isso também não significa aceitar todo o pacote. Por exemplo: Elshtain entendia que não era necessária a presença da mulher na política, bastasse seu poder informal no lar.
Por um lado, valorizar a diferença permite ao menos o debate acerca da descentralização (o homem não está solitário no universo da política); por outro, conforme Nancy Fraser entendia, a diferença pode se tornar um elemento de domínio sobre o outro que não possui certas características. Enfim, o risco sempre existirá. Afinal, somos todos bem parecidos quando se trata da relação com o poder e comemos no mesmo prato do capital que torna muitas dessas ideias uma isca do Mercado, convertendo, por vezes, boas teorias (do campo progressista) em etiqueta e marketing.
Ainda no mesmo campo, considerando os estudos da cientista política Hanna Pitkin, entender a representatividade feminina no mundo da política, é fazer a crítica de que existem pessoas que só pensam na presença das mulheres e não no que fazem, ou seja, suas competências. Em termos gerais, se existem poucos indígenas no Congresso, então vote em indígena; se temos poucas pessoas trans, então vote em pessoas trans; temos poucos membros de religião de matriz afro, então vote em alguém do candomblé; temos poucas mulheres, então vote em mulheres... tudo isso independentemente de suas inclinações e capacidades para o exercício.
Para Pitkin, a ampliação do número de mulheres na política não é garantia de uma veemente defesa pelas pautas levantadas, sobretudo, por grupos progressistas; por isso relaciona essa dinâmica como “política de presença”, e não de uma devida representação. Temos hoje, no Brasil, a maior bancada feminina do Congresso de todos os tempos. Isso, é bem perceptível com o avanço de mulheres apoiadas por determinadas igrejas, não é garantia total de representação. Existem mulheres que emprestam seus mandatos para que “homens” continuem falando por elas no que diz respeito às questões que continuam as subalternizando, com forte tendência ao discurso religioso, impondo, a título de exemplo, a submissão da figura da esposa ao marido e coisas afins.
Finalizando esta nota crítica, entendo que a des-mulherização pode ser percebida quando na tentativa de reproduzir certos modelos institucionais – e negativos (quando é o caso) – em que homens são hierarquicamente superiores. Não se trata de mudança de gênero, mas de um habitus (em termo bourdieusiano) adquirido e que impede romper com uma estrutura rígida e violenta – repito: quando é o caso (até porque não se pode, de nenhum dos lados, generalizar) – produzida por um grupo bem definido. A des-mulherização também acontece quando, ao invés de uma política de representação (em que pautas que buscam igualdade em relação à educação, saúde, segurança etc. são devidamente apoiadas e discutidas), há uma mera política da presença, onde mulheres, ou por falta de preparo ou por ideologia religiosa e patriarcal, parecem querer manter um cenário inflexível. Assumir aos traços do sujeito opressor nada mais é do que a demonstração de que o poder finca suas garras na consciência de quaisquer pessoas a fim de nutrir um sistema que não tem outra forma de lidar com o ser humano, a não ser que mulheres, homens, pretos, brancos... se tornem pessoas mais competentes, oferecendo novos caminhos para a igualdade, ou, o trato mais civilizado possível.
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Des-mulherização como reprodução violenta dos modelos institucionais: Uma breve nota crítica. Artigo de Nelson Lellis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU