05 Outubro 2024
"O que se percebe é que o autor, com perspicácia, identifica já na década de 1960 as rupturas que quebram uma tradição para gerar novas formas de crer, antecipando fenômenos que se manifestariam nos anos seguintes. Assim, por exemplo, ele relê a história de uma fé e a história jesuíta nos ensaios que compõem a primeira seção do livro (Ler uma tradição), destacando os fenômenos de continuidade e descontinuidade, discernindo sobre o que deve permanecer e o que deve ser deixado de lado", escreve Sergio Di Benedetto, professor de Literatura Italiana na Universidade da Suíça Italiana, em Lugano, em artigo publicado por Vino Nuovo e reproduzido por Settimana News, 28-09-2024. A tradução e de Luisa Rabolini.
Seria árduo tentar resumir em poucas linhas a riqueza dos textos de Michel de Certeau (1925-1986) reunidos no volume La debolezza del credere. Fratture e transiti del cristianesimo (A fragilidade do crer. Rupturas e trânsitos do cristianismo, em tradução livre, Milão, Vita e Pensiero, 2020, p. 273). Árduo porque os doze ensaios do volume, escritos entre as décadas de 1960 e 1970, são de tal profundidade, amplitude de perspectivas, variedade de temas e multiplicidade de contextos que mereceriam um único aprofundamento para cada texto, tendo em mente também que a complexidade dos escritos e do pensamento do jesuíta francês torna os esforços de síntese igualmente redutivos e inevitavelmente parciais. O que é possível – e frutífero para maiores aprofundamentos pessoais, que deixamos para o leitor – é reconhecer certos nós, certas linhas de ação, certos leitmotivs que pontuam o volume, transversais aos momentos e ocasiões da reflexão do autor. Assim, um dos pontos principais do raciocínio sempre estimulante de De Certeau é aquele da relação entre continuidade e descontinuidade, entre tradição e novidade, entre herança e futuro, na certeza de que a ação do Deus encarnado se situa na história:
“A ousadia consiste em querer ir até os limites das tensões e das ambições específicas de uma época; em levar a sério um tecido de trocas para esperar e reconhecer nele o acontecimento de Deus”.
De Certeau caminha nessa direção, pois sempre foi, nos vários campos envolvidos em suas investigações (espiritualidade, teologia, antropologia, semiótica, história etc.), um homem de “tensões até o limite”, a fim de fazer brotar desse método novas perspectivas e novas intuições de leituras para o pensamento de inspiração cristã.
O que se percebe é que o autor, com perspicácia, identifica já na década de 1960 as rupturas que quebram uma tradição para gerar novas formas de crer, antecipando fenômenos que se manifestariam nos anos seguintes. Assim, por exemplo, ele relê a história de uma fé e a história jesuíta nos ensaios que compõem a primeira seção do livro (Ler uma tradição), destacando os fenômenos de continuidade e descontinuidade, discernindo sobre o que deve permanecer e o que deve ser deixado de lado: “A tentação é a fixação. Onde Deus é revolucionário, o demônio parece fixista”, pois “tudo o que injeta em uma tradição o veneno de um tempo novo é também o que a salva da inércia”. O grande desafio é “correr o risco de existir para o hoje”, no qual grande parte do trabalho intelectual de De Certeau se desenvolve.
Sobre esse risco inevitável insiste a segunda seção do volume, justamente intitulada Assumir os riscos do presente: aqui, além de dois artigos sobre a situação brasileira na década de 1970 e o caso dos irmãos Berrigan (agora completamente esquecido), há um ensaio que deveria ser meditado e reconsiderado, especialmente em tempos de Sínodo: Autoridades cristãs e estruturas sociais. Trata-se de um longo texto que, partindo de um lúcido exame da sociedade tardo-moderna e de seu imaginário (“uma sociedade tecnocrática, que combina a competência e o sucesso”), onde o cristianismo vai se esgotando, uma vez que está desvinculado da vida real e, portanto, reduzido a mera linguagem, chega-se a um exame profético do que é exercer a autoridade e sobre o método desse exercício, em relação às mudanças profundas que ocorreram na segunda metade do século XX.
Novamente, aqui é a refundação em uma Palavra e uma Presença que tornam possíveis novas experiências cristãs - “Nenhuma de nossas iniciativas é identificável com a Palavra, mas elas não são possíveis sem ela” -, mas essas novas formas pressupõem uma limitação da autoridade, a partir do exemplo fundador de Cristo, que, ao limitar a si mesmo (ele se faz ausente na Ascensão para se fazer presente diversamente), permite o nascimento da comunidade, dentro da qual há uma autoridade plural e múltipla, não absolutista, cuja primeira tarefa é “permitir” que os outros existam e cresçam.
Assim, desponta um segundo nó em torno do qual giram as reflexões de De Certeau, ou seja, o das rupturas (o subtítulo do livro é, de fato, Rupturas e trânsitos do cristianismo). A ruptura, parece dizer o padre jesuíta, é uma das características do cristianismo, a partir da primeira e mais importante ruptura, aquela da Encarnação do Verbo na história. As outras rupturas, necessárias com o passar do tempo, são relidas a partir justamente daquela primeira, e somente à luz dela são julgadas “em termos de compatibilidade ou incompatibilidade”.
As pistas para o hoje são, de fato, numerosas, férteis e nunca banais, ancoradas a uma liberdade criativa de pensamento e em uma inteligência do futuro que é surpreendente, se pensarmos em quanto do que De Certeau previu foi realizado, até mesmo captando aqueles “trânsitos” que não podiam ser adiados (mas talvez, infelizmente, na realidade adiados) e aquelas tomadas de consciência (por exemplo, sobre o status da teologia no mundo do paradigma científico absoluto) que o pensamento e a práxis cristãos poderiam ter acolhido e reelaborado no tempo, não se condenando a sempre “perseguir”, talvez habitando (criticamente sempre, passivamente nunca) a passagem entre épocas.
Nesse sentido, outro tema de persistência é a “fragilidade do crer”, que dá título ao livro, e que não deve ser negada nem removida. Esta é a realidade:
“No passado a Igreja organizava um solo, ou seja, uma terra constituída: dentro dela se tinha a garantia social e cultural de habitar o campo da verdade. Mesmo que a identidade ligada a um lugar, a um solo, não tenha sido realmente fundamental na experiência cristã (a instituição nada mais é do que o que permite à fé uma objetividade social), nessa terra podiam se enraizar os grupos de militantes que ali encontravam a possibilidade e a necessidade de sua ação. [...] Atualmente, de forme similar àquelas ruínas majestosas das quais se extraem pedras para construir outros edifícios, o cristianismo se tornou para as nossas sociedades o fornecedor de um vocabulário, um tesouro de símbolos, de sinais e de práticas reutilizados em outros lugares. Cada um os utiliza como quer, sem que a autoridade eclesial possa gerenciar sua distribuição ou definir seu valor como sentido [...]. Indivíduos e grupos utilizam 'materiais cristãos' que eles articulam à sua própria maneira e ainda reproduzem hábitos cristãos, sem, no entanto, se sentirem obrigados a assumir todo o sentido cristão. Assim, o corpo cristão não tem mais uma identidade: fragmentado, disseminado, ele perdeu sua segurança e seu poder de gerar, apenas com seu nome, militâncias”.
Mas essa situação, que é de fragilidade, não está longe de ser uma situação com a característica de Cristo:
“Trata-se de aceitar ser frágeis, de abandonar as máscaras ridículas e hipócritas de um poder eclesial que não existe mais, de renunciar à satisfação e à ‘tentação de fazer o bem’. O problema não é saber se será possível restaurar a empresa 'Igreja' [...]. A única questão que importa é esta: será que se encontrarão cristãos que queiram buscar essas aberturas orantes, errantes, de admiração? [...] Nenhum cristão é cristão sozinho, para si mesmo, mas sim em referência e conexão com o outro, na abertura a uma diferença buscada e aceita com gratidão. Essa paixão pelo outro [...] é uma fragilidade que despoja as nossas solidezes e introduz nas nossas forças necessárias a fragilidade do crer”.
São palavras germinativas, são profecias férteis de esperança de que precisamos; são arcos de pensamento regidos pela “responsabilidade” coerente “daquele que exerce uma consciência viva da proclamação de sua própria parcialidade profética”: assim escreve Stella Morra no prefácio do livro, captando a força das palavras de Michel de Certeau, discípulo dos grandes místicos, por ele amados e estudados, e dos grandes pensadores franceses (“havia nele um pouco de Pascal”, observa Luce Giard no ensaio introdutório que abre a coletânea), um cristão capaz de ancorar-se no coração do tempo para sentir o sopro silencioso do Espírito
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A fragilidade do crer. Artigo de Sergio Di Benedetto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU