20 Março 2024
O livro de James A. Sanders, republicado pela editora Claudiana, reconstrói a formação de cânone.
O artigo é de Paolo Ribet, pastor da igreja valdense de Turim, publicado por Riforma, 22-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O professor James A. Sanders, que faleceu recentemente, era um conhecido biblista estadunidense, especialista em Antigo Testamento e um dos curadores da edição inglesa dos Manuscritos do Mar Morto. Agora a Claudiana publica a segunda edição (de 2005, a primeira era de 1972) de seu livro sobre as origens do cânone bíblico. O próprio autor reconhece que até poucos anos atrás esse assunto era o mais enfadonho do plano de estudos teológicos. A rigor, de fato, o cânone bíblico é simplesmente a lista de textos contidos na Bíblia, reconhecidos como inspirados por Deus e, portanto, sagrados, e a palavra “cânone” indica originalmente a unidade de medida, da qual deriva o conceito de “regra”, "modelo".
Mas, alerta Sanders, nos últimos anos esses estudos receberam uma aceleração inesperada sobretudo das recentes descobertas arqueológicas e, portanto, os novos conhecimentos sobre os povos que cercavam Israel e influenciavam a sua vida e o seu pensamento, obrigaram os exegetas a reconsiderar a fé do povo hebraico e a sua leitura no contexto mais amplo da história do Oriente Próximo. Nosso livro, portanto, também quer mostrar como os livros bíblicos se formaram e qual era a mensagem central que queriam transmitir.
Embora por muito tempo se tenha pensado assim, a Bíblia não caiu do céu, mas conheceu um longo período de elaboração. Várias gerações contaram, escreveram, leram e transmitiram as antigas tradições. E leram-nas e escreveram-nas para os seus contemporâneos, pois cada geração tinha, e ainda tem, a responsabilidade de responder positivamente à vocação de Deus. Tomemos um exemplo: provavelmente o crente que se aproxima do texto bíblico nunca se perguntou qual fosse a ordem correta dos vários livros, de forma que aqueles que, como eu, se formaram na leitura da Revista terão notado com espanto que na tradução interconfessional em linguagem corrente (TILC) o livro de Rute, os livros das Crônicas, de Ester e Neemias não estavam mais “no seu lugar”, entre os livros históricos, mas tinham acabado no final da lista, depois dos livros poéticos, entre os “escritos”. Por quê? O que tinha acontecido?
Simplesmente, em diferentes épocas e em diferentes lugares, as várias escolas e tradições nem sempre puseram a ênfase nos mesmos parâmetros de avaliação. De forma que na tradução clássica protestante (a Revista) foi seguida a lista (= o cânone, de fato) usada pelos judeus de língua grega (a chamada versão Septuaginta, enquanto os tradutores da TILC preferiram seguir a lista de livros da tradição dos judeus palestinos.
Trata-se, portanto, apenas de uma questão que poderíamos definir como “tipográfica”? Eu diria que não – e o livro de Sanders nos ajuda a compreender a longa gestação e a formação da Bíblia hebraica acompanhando-nos através da história do povo de Israel e mostrando como as várias tradições colocam a ênfase ora em um evento, ora em outro. Alguns exemplos aqui também são válidos: só na pregação do profeta Isaías a ênfase é posta na figura de David, enquanto os outros profetas insistem, com base no livro do Deuteronômio, na Torá, a Lei. E além disso, na antiguidade, havia também outros livros que narravam os feitos dos reis de Israel e de Judá ou de outros heróis populares.
Eles também são citados (1 Reis 15, 7 ou 2 Reis 1, 18), mas não são levados em consideração na compilação dos livros bíblicos, porque a história contada não é apenas uma narração de fatos, mas quer ser um testemunho de fé. Mais ainda: é uma reflexão sobre a história que o Israel crente faz num dos momentos mais trágicos da sua existência, para entender como tenha sido possível que o povo da promessa conhecesse a derrota e o cativeiro na Babilônia. “Faz parte da natureza do cânone bíblico, adverte-nos James Sanders, tornar-se contemporâneo. Os textos canônicos não constituem essencialmente um volume de informação sobre a história de Israel, mas sim um espelho da identidade da comunidade crente que em cada época se dirige a eles, perguntando quem é e como deve comportar-se, mesmo na nossa época".
A cristalização e a sacralização do texto vieram muito mais tarde – e não tenho certeza se fizeram algum bem à fé. O estudo do cânone e da sua formação nos auxilia, portanto, no laborioso trabalho de compreensão não apenas do texto, seja ele uma narrativa histórica ou uma pregação profética; mas também do modo como foi elaborado e levado às gerações do passado, para que a sua mensagem possa emergir vivamente e nos ajudar a elaborar as respostas de fé do nosso tempo. Nisso, a obra de Sanders nos dá uma ajuda importante.
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A Bíblia não caiu do céu. Artigo de Paolo Ribet - Instituto Humanitas Unisinos - IHU