30 Novembro 2023
Carta do Papa Francisco aos Guarani e Kaiowá foi lida pelo cardeal Dom Leonardo Steiner na Assembleia da Aty Guasu, em meio a atividades em memória do líder Marçal de Souza.
A reportagem é de Tiago Miotto, publicada por Conselho Indigenista Missionário (Cimi), 29-11-2023.
Na noite de 10 de julho de 1980, o Brasil parou para ouvir a voz de Marçal de Souza, liderança Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul, ressoar na sede do arcebispado de Manaus (AM). Milhares de pessoas que acompanhavam atentas os movimentos do Papa João Paulo II foram surpreendidas pelo discurso impactante de Marçal, feito da sacada do Palácio Episcopal de Manaus, ao lado do Papa – a quem ele se dirigia.
Mais de quatro décadas depois deste discurso histórico, a troca entre os Guarani e Kaiowá e o pontífice se repete, agora com o Papa Francisco. Marçal, brutalmente assassinado, é hoje um símbolo da luta dos povos indígenas – e, especialmente, dos Guarani e Kaiowá – pela garantia de seus direitos e territórios.
Foi nesse contexto, em meio a uma série de atividades em memória de Marçal de Souza e dos 40 anos de seu assassinato, que uma carta enviada pelo Papa Francisco aos povos Guarani e Kaiowá foi lida pelo cardeal-arcebispo de Manaus (AM) e presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Dom Leonardo Steiner, à Assembleia Geral da Aty Guasu, reunida no tekoha Kunumi Vera, Terra Indígena (TI) Dourados-Amambaipegua I, em Caarapó (MS), no dia 24 de novembro de 2023.
A manifestação, entregue simbolicamente aos indígenas e lida pelo cardeal Dom Leonardo Steiner, é uma resposta do Papa a outra carta, essa escrita e enviada a ele pela Aty Guasu em maio de 2023. A resposta do Papa data do dia 5 de junho.
“Quando eu estive com o Papa, agora em outubro, ele perguntou se a carta já tinha chegado. Ela está chegando agora”, relatou Dom Leonardo à Assembleia da Aty Guasu.
“Quando Marçal falou com o Papa, agora São João Paulo II, fez isso dentro da casa onde eu moro. E eu agora vou ler a carta do Papa Francisco na casa onde vocês moram. Eu acho isso muito significativo”, prosseguiu o cardeal.
“Que nós tenhamos essa consciência de que Marçal foi uma pessoa muito importante, continua sendo muito importante para sempre nos manter na esperança, sempre nos manter na dignidade. Podem nos matar, mas não tirar a nossa dignidade”, concluiu Dom Leonardo, antes de proceder à leitura da carta.
“Nossa missão aqui é devolver para vocês a carta do Papa e dizer que, assim como o Marçal, com o dedo em riste, fez aquele discurso encarnado, vocês têm aberto no coração da Igreja e no coração do Papa atual questões importantes”, resumiu o coordenador do Cimi Regional Mato Grosso do Sul, Matias Benno.
“Aqui, hoje, relembramos aquilo que Marçal representa para os Guarani e Kaiowá. Recordamos sua luta, que vive em cada um e cada uma de vocês. Que esse momento simbolize um pacto de luta, sobre o qual já caminhamos irmanados, para que, até que o povo esteja livre, com todo seu território demarcado, a gente não se canse e siga em frente”, defendeu.
Em sua carta, Papa Francisco começa agradecendo a missiva dos indígenas e “o empenho para viver em harmonia com a natureza, na ‘Casa Comum’ que nos preparou o Criador”. Em seguida, manifesta sua solidariedade com a realidade vivenciada pelos Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul.
“Quero exprimir a minha proximidade nestes momentos de sofrimento, assegurando-lhes de meus sufrágios por todos os membros do povo Kaiowá e Guarani já falecidos e de minhas preces ao Altíssimo para que se encontrem caminhos que possam garantir-lhes uma vida tranquila e pacífica na terra em que vivem”, afirma o pontífice.
“Faço votos que o seu clamor seja ouvido pelas autoridades competentes a fim de que a esperança renasça em seus corações”, assegurou o Papa.
Na carta escrita pelos indígenas ao Papa, eles relatam a dura realidade das aldeias e retomadas de seu povo, onde enfrentam a violência, a fome e as consequências da falta de acesso às suas terras.
“Papa Francisco, esperamos que ouça o nosso papel falar pela demarcação e homologação de nossas terras tradicionais que tanto sonhamos, que sangue Kaiowá e Guarani foi derramado pelos latifundiários”, afirma o documento.
“Lembramos também de todos aqueles líderes indígenas Kaiowá e Guarani que tombaram lutando pela terra. Com muita dor no espírito, sabemos e temos plena consciência de que toda esta situação, apesar de ser o agronegócio que puxa o gatilho e provoca torturas humanas e ambientais, é consequência absoluta de um passivo que o Estado brasileiro tem feito para com o nosso povo”, diz a carta.
“Sonhamos com nossas terras, com nosso direito garantido, com a possibilidade de garantir nossa cultura e nosso modo de vida para futuras gerações do povo Kaiowá e Guarani”, concluem os indígenas.
A carta, escrita durante um encontro de mulheres indígenas na aldeia Jaguapiru, foi entregue em mãos ao Papa durante um encontro dele com três mulheres indígenas amazônidas, entre elas a irmã Laura Vicuña, integrante do Cimi Regional Rondônia e vice-presidente da Conferência Eclesial da Amazônia (Ceama).
“No momento da entrega, falei ao Papa sobre a situação de contínua e permanente violência e violação de direitos que sofre esse povo, um povo que vive entre a rodovia e a cerca do agronegócio”, relata Laura.
O momento de troca, de solidariedade e de reafirmação da luta chegou à Aty Guasu em meio a um contexto – nem um pouco incomum – de apreensão entre os indígenas.
Isso porque, apenas dois dias antes, relatos de violência contra uma retomada feita pela comunidade do tekoha Pyelito Kue, em Iguatemi (MS), foram compartilhados na Assembleia. As informações motivaram a ida de um jornalista e uma antropóloga que acompanhavam a Aty Guasu ao tekoha, para registrar as denúncias e averiguar a situação.
Ambos foram impedidos de chegar ao destino por uma barreira feita por caminhonetes e dezenas de homens armados e encapuzados. Eles obstruíram a via pública que dá acesso a Pyelito Kue, roubaram os pertences dos dois e agrediram brutalmente o jornalista. Ainda não há informações detalhadas sobre a situação dos indígenas.
“Enquanto estamos aqui, nossos parentes estão lá no Pyelito Kue, sofrendo um massacre”, sintetizou Simão Vilhalva, conselheiro da Aty Guasu, após a leitura da carta. “Pedimos que nossa voz chegue de novo ao Papa, para que nada de ruim aconteça ao nosso povo”.
O local onde a Assembleia da Aty Guasu foi realizada também é simbólico: trata-se da retomada onde, em 2016, ocorreu o massacre de Caarapó, quando Clodiodi de Souza, agente de saúde indígena de 26 anos, foi assassinado. Sua morte foi resultado de um ataque que também envolveu caminhonetes e dezenas de homens encapuzados e fortemente armados.
“Estamos vivos ainda. Guarani e Kaiowá está vivo! Antes foram os antigos, e nossa luta segue viva com os novos. Não vamos nos entregar”, afirmou emocionado Silvio Paulo, liderança Guarani e Kaiowá.
“Clodiodi tombou do meu lado. Mas somos fortes! Karai junto, nossos aliados. Juntos somos fortes”, concluiu a liderança.
Confira, abaixo, a íntegra da carta do Papa Francisco.
À Grande Assembleia do Povo Guarani e Kaiowá
Queridos irmãos e irmãs do povo Kaiowá e Guarani,
Em primeiro lugar desejo agradecer a todos pela carta, com a qual quiseram partilhar comigo as tribulações por que passam, mas também o empenho para viver em harmonia com a natureza, na “Casa Comum” que nos preparou o Criador.
Quero exprimir a minha proximidade nestes momentos de sofrimento, assegurando-lhes de meus sufrágios por todos os membros do povo Kaiowá e Guarani já falecidos e de minhas preces ao Altíssimo para que se encontrem caminhos que possam garantir-lhes uma vida tranquila e pacífica na terra em que vivem.
Faço votos que o seu clamor seja ouvido pelas autoridades competentes a fim de que a esperança renasça em seus corações.
lnvocando a proteção de Nossa Senhora Aparecida, Rainha e Padroeira do Brasil, abençoo de coração a todos e a cada um.
Por favor, continuem a rezar por mim; eu rezarei por vocês.
Fraternalmente,
Papa Francisco.
Vaticano, 5 de junho de 2023.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Que o seu clamor seja ouvido pelas autoridades”: carta do Papa aos Guarani e Kaiowá é lida na Assembleia da Aty Guasu - Instituto Humanitas Unisinos - IHU