O fenômeno da plataformização: um laboratório de luta de classes. Entrevista especial com Julice Salvagni

"O trabalho nas plataformas digitais é mais uma etapa do sistema produtivo, que corresponde a outro processo de trabalho", afirma a pesquisadora

Foto: Rovena Rosa | Agência Brasil

27 Novembro 2023

O contexto brasileiro de informalidade e desemprego é um dos fatores que têm favorecido a proliferação de plataformas digitais no Brasil e trabalhos associados a elas, como o crescente número de entregadores e motoristas que atuam por intermediação dessas empresas. Segundo Julice Salvagni, "como há uma demanda grande de pessoas precisando trabalhar, não se questiona a falta de direitos porque as pessoas têm uma necessidade básica prioritária que é se manter, se sustentar".

Julice Salvagni, juntamente com Rafael Grohmann, é autora do livro recém-lançado Trabalho por plataformas digitais: do aprofundamento da precarização à busca por alternativas democráticas (Sesc, 2023), que analisa uma série de atividades trabalhistas executadas por meio das plataformas digitais. Uma delas são as fazendas de cliques, bastante comuns nos países periféricos. Na entrevista a seguir, concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU via WhatsApp, a pesquisadora relata que essas fazendas também "existem no Brasil e dão conta das demandas de celebridades, políticos, pessoas do meio artístico ou empresas que querem ter seguidores e engajamentos nas redes sociais, mas não querem pagar por robôs porque isso fica evidente".

Na avaliação dela, o trabalho por plataforma pode ser compreendido como "um laboratório de luta de classes porque a questão da reivindicação por direitos também acontece nesse formato. Como o fenômeno da plataformização é algo relativamente recente, estamos observando se ele também vai criar outras formas de luta. Por exemplo, se antigamente o vínculo entre os trabalhadores era estabelecido pelos sindicatos nas indústrias, hoje em dia esse não é mais o maior ou único caminho para a organização dos trabalhadores". 


Julice Salvagni (Foto: Arquivo Pessoal)

Julice Salvagni é doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre em Ciências Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e graduada em Psicologia pela Unisinos. Leciona no Departamento de Ciências Administrativas da UFRGS, na área de Estudos Organizacionais e credenciada no PPG em Políticas Públicas da mesma instituição.

Confira a entrevista

IHU – No livro, vocês abordam o problema conceitual do “trabalho por plataformas digitais”. Como interpretam as noções de “praticidade”, “eficiência”, “inovação”, “disrupção” à luz da realidade prática, econômica e social dos trabalhadores?

Julice Salvagni – Entendemos que o trabalho nas plataformas digitais é mais uma etapa do sistema produtivo, que corresponde a outro processo de trabalho. Nesse sentido, é como se tivéssemos o fordismo, toyotismo, taylorismo e a plataformização, que reorganiza a maneira como o processo de trabalho está colocado. Com isso, existem diferentes cenários. A eficiência e a inovação se mostram como formas facilitadas do trabalho acontecer porque vêm mediadas pelas tecnologias, uma vez que as plataformas são grandes estruturas tecnológicas apresentadas por meio do próprio aplicativo. Não que o processo de plataformização dependa de uma infraestrutura tecnológica para acontecer porque existem situações em que a plataformização acontece não necessariamente vinculada à plataforma. Esse processo é anterior ao advento da plataforma ou das tecnologias que envolvem essa organização do trabalho, mas trazem vários benefícios, sobretudo para quem é consumidor. Nós não inauguramos o delivery com as plataformas. Sempre pedimos comida por meio do telefone ou de outras formas. A questão é que a plataforma sistematiza e organiza isso para o consumidor de uma maneira diferente. A organização desse processo tem várias facilidades e os avanços tecnológicos que vieram para beneficiar o nosso dia a dia não devem ser ignorados. Hoje, não nos imaginamos vivendo sem o smartphone e todos os recursos que essa tecnologia nos trouxe.

Agora, o problema é justamente a questão da realidade dos trabalhadores que estão por trás dessas plataformas, ou seja, daqueles que estão operando esses serviços para que possamos ter acesso a tudo isso. Se antigamente existia uma maioria de entregadores que tinha carteira assinada com os estabelecimentos comerciais, esses trabalhadores, à medida que passam a operar por intermédio das plataformas, acabam ficando totalmente desamparados. Eles trabalham à própria sorte e não têm respaldo das plataformas para que possam ser assistidos em alguma situação. Essas infraestruturas criam várias instâncias que permitem que se ocultem certos quesitos importantes das relações de trabalho que sempre existiram.

Mesmo com todo o contexto de informalidade que o Brasil acumula historicamente, a questão da remuneração sempre ficou clara. Uma pessoa que trabalhava de maneira informal colocava o preço no serviço de pintura, de corte de cabelo, de cuidado, de entrega de alguma mercadoria. Hoje, o mecanismo pelo qual essas plataformas operam não permite que o trabalhador saiba o quanto está ganhando ou qual é a porcentagem que vai ganhar referente àquele serviço ou entrega. Esse novo processo produtivo do capitalismo surge com uma série de agravantes no sentido de ocultar as relações de direito entre os trabalhadores e as organizações.

IHU – Por que consideram “o trabalho por plataformas um laboratório da luta de classes”? Como esse laboratório se manifesta no Brasil, nos diferentes setores que hoje atuam via plataformas digitais?

Julice Salvagni – Consideramos que o trabalho por plataforma é um laboratório de luta de classes porque a questão da reivindicação por direitos também acontece nesse formato. Como o fenômeno da plataformização é algo relativamente recente, estamos observando se ele também vai criar outras formas de luta. Por exemplo, se antigamente o vínculo entre os trabalhadores era estabelecido pelos sindicatos nas indústrias, hoje esse não é mais o maior ou único caminho para a organização dos trabalhadores. Temos visto uma série de associações, outros sindicatos que se organizam de modo autônomo, alguns grupos de trabalho, coletivos, que se organizam em prol de questionar e pressionar as plataformas por condições mais dignas de trabalho. A greve dos apps foi um evento emblemático em 2020, organizado por uma série de associações, sobretudo de entregadores, mas existem muitos coletivos, inclusive organizados via WhatsApp. Se o trabalho agora é mediado pelas tecnologias, a organização também tem ganhado espaço nesses ambientes virtuais. Ou seja, existem aspectos distintos em relação à organização dos trabalhadores na década de 1980, 1990, que era em sua maior parte sindical, e o arcabouço de lutas dos trabalhadores que hoje estão fazendo frente à plataformização.

IHU – No livro, vocês mencionam os diferentes termos utilizados para nomear o fenômeno do trabalho por plataformas digitais, a saber, gig economy, indústria 4.0, trabalho digital, economia compartilhada, uberização e plataformização. O que esses diferentes nomes designam acerca do que se entende por “trabalho por plataformas digitais”? Qual conceito melhor caracteriza a realidade do trabalho por plataforma no Brasil?

Julice Salvagni – Essa questão é importante em relação ao que diz respeito às terminologias. Existe a designação “trabalho digital”, que é um conceito mais amplo e não interfere na questão de vínculos. Ou seja, eu posso ter um trabalho digital mesmo sendo servidora pública porque esse trabalho não interfere na questão do vínculo empregatício. A gig economy é o modo como esse fenômeno começou a ser tratado sobretudo na produção do Norte. A gig economy, na realidade brasileira, que é uma economia de “bicos”, não é exatamente uma novidade. No contexto europeu, que tem um histórico de subemprego, as vagas de subocupação são ocupadas por imigrantes. Na realidade brasileira a situação é diferente porque quem trabalha na gig economy é uma população que pouco viu a carteira assinada ao longo dos últimos tempos. Ou seja, esse fenômeno é marcado pela ausência de vínculos, que no Brasil não chega a ser uma novidade. Historicamente, a questão do trabalho, assim colocada, é uma economia de “bicos”, uma grande gig economy. A plataformização exponencializa esse processo e acrescenta outros contornos à essa exploração, sobretudo na medida em que as plataformas atuam como mediadoras da exploração do trabalho, o que não existia no contexto da informalidade.

A indústria 4.0 é outro conceito importante, referente a um grupo específico de autores que entendem a questão de uma outra revolução tecnológica no que diz respeito às esferas produtivas. É uma análise relevante para pensar como as relações foram, junto com o desenvolvimento das tecnologias, se transformando ao longo do tempo.

Os conceitos de uberização e plataformização são sinônimos; eles não se distinguem em essência. Mas, ao contrário de colegas que preferem se referir à uberização, nós assumimos o conceito de plataformização por compreender, em primeiro lugar, que não se trata de um fenômeno restrito ao Uber, assim como o fordismo não era um processo de trabalho que aparece somente na Ford, ainda que tenha se iniciado nessa empresa. A uberização que vai tomando contornos significativos com a Uber está longe de acontecer somente na dinâmica da Uber. Então, usamos o conceito de plataformização justamente para caracterizar a quantidade de empresas e corporações que têm utilizado esse processo de trabalho dentro da sua lógica produtiva de exploração e dominação. Também por entender que uma plataforma é uma estrutura de trabalho de comunicação e por entender que se trata de uma plataforma que vai além da interface de um aplicativo. Ou seja, trata-se, acima de tudo, de uma empresa, uma corporação transnacional que está presente na maior parte dos países, como é o caso da Uber, e que tem funções específicas alinhadas a si, como a questão de criar e ter espaços de trabalho.

IHU – Vocês chamam atenção para o fato de que “muitos termos nascem como progressistas”, mas “acabam por ser cooptados pelos patriarcas do capitalismo digital”. Como isso tem ocorrido no desenvolvimento do trabalho por plataformas digitais? Pode nos dar alguns exemplos?

Julice Salvagni – Essa questão sobre os termos que nascem como progressistas e acabam sendo cooptados por patriarcas do capitalismo pode ser exemplificada no caso da corrente que tentou tratar o fenômeno da plataformização como uma economia de compartilhamento. Esse foi um dos primeiros termos a colar no fenômeno da plataformização porque se entendia que as plataformas estariam se colocando como mediadoras entre pessoas que têm imóveis parados e aqueles que querem alugá-los, entre pessoas que poderiam usar o carro particular para transportar pessoas no tempo livre e outras que precisariam ser transportadas. Ou seja, a plataformização apareceu como uma ideia de compartilhamento, em que a plataforma faria a intermediação. Mas, conforme as coisas foram acontecendo, vimos que, na verdade, não era disso que se tratava. Ou seja, não era uma simples plataforma de compartilhamento, mas algo que extrai valor do trabalhador, extrai uma quantia significativa do motorista que está colocando seu carro para trabalhar e não tem feito isso simplesmente no seu tempo livre, mas enquanto uma jornada ampla e restrita de trabalho. Essas plataformas se colocaram, inicialmente, com o discurso de que estariam sendo as mediadoras entre as pessoas. Essa mediação seria algo muito progressista no sentido de compartilhar os tempos ociosos e teria uma lógica colaborativa. Entretanto, isso logo se mostrou uma fachada porque nada mais era do que a recriação dos mesmos modos históricos de exploração que sempre aconteceram no âmbito do capitalismo.

IHU – No Brasil, constata-se que o trabalho por plataformas digitais tem sido uma alternativa para muitos trabalhadores que estavam desempregados ou buscam alternativas aos seus empregos formais. Ao mesmo tempo, muitos trabalhadores carecem de direitos trabalhistas. O que isso indica sobre o desenvolvimento desse tipo de trabalho no país?

Julice Salvagni – As plataformas se proliferaram muito rapidamente no Brasil justamente por causa do contexto histórico de informalidade e desemprego. Como há uma demanda grande de pessoas precisando trabalhar, não se questiona a falta de direitos porque as pessoas têm uma necessidade básica prioritária que é se manter, se sustentar. A ausência de vínculos trabalhistas não gera um impacto tão significativo na realidade brasileira, historicamente marcada pela informalidade, assim como gera em outros países onde há um histórico de direitos trabalhistas mais consistente. A realidade brasileira foi e ainda é um campo fértil para a instalação dessas plataformas, que encontram aqui uma demanda de trabalho e apoio popular. Essa é outra questão importante. O consumidor com restrição financeira tem, nessas plataformas, uma opção de ter acesso ao transporte com um valor mais em conta ou ter acesso a um lanche com um valor de entrega mais em conta ou grátis; isso é atraente. Percebemos que as pessoas não questionam as condições de trabalho desses trabalhadores. Entretanto, uma pesquisa que encomendamos mostrou que 70% das pessoas estariam dispostas a pagar mais pelos serviços, considerando que os trabalhadores pudessem ter mais direitos associados a essa atividade de trabalho.

IHU – As click farm (fazendas de cliques) presentes no Sudeste Asiático também são uma realidade no Brasil. O que são e como atuam as fazendas de cliques no país?

Julice Salvagni – As fazendas de cliques têm uma atuação mais acentuada em países periféricos. Elas existem no Brasil e dão conta das demandas de celebridades, políticos, pessoas do meio artístico ou empresas que querem ter seguidores e engajamentos nas redes sociais, mas não querem pagar por robôs porque isso fica evidente. As fazendas disparam convites de oferta de trabalho para as pessoas via WhatsApp e redes sociais, e as pessoas que estão sem condição de trabalhar veem nessa atividade uma possibilidade de trabalho a partir de casa.

Uma entre as várias questões colocadas sobre as fazendas de cliques é que a remuneração inicial é, ainda que baixa, um pouco atraente, mas, depois ela vai diminuindo muito. Além disso, é uma atividade desgastante porque a pessoa fica o dia todo administrando várias contas nas redes sociais; é uma atividade mecânica e repetitiva. Como é um trabalho que acontece a partir de casa, que tem contornos menos públicos do que as atividades de entrega, algumas pesquisas têm indicado que elas podem estar cooptando trabalho infantil. Não temos ideia de quem está neste espaço privado trabalhando nas fazendas de cliques. Podem ser crianças que fazem isso em um período significativo do dia. Existem vários problemas colocados nessa questão das fazendas e isso é algo que precisa ser discutido, pesquisado e tratado do ponto de vista da regulamentação dessa atividade, a qual deve ser combatida.

IHU – Quais as características do cooperativismo por plataforma? Qual é o perfil dos trabalhadores cooperados?

Julice Salvagni – O cooperativismo de plataforma não é um fenômeno novo. No contexto brasileiro, existem arranjos colaborativos na história do país, sobretudo no Rio Grande do Sul, onde há marcas do cooperativismo bastante acentuadas. Assim como nascem as plataformas, nascem também esses espaços de resistências. Os arranjos colaborativos são um deles. É um importante espaço de organização dos trabalhadores em atividades de plataformas, mas geridas pelos próprios trabalhadores. Há um crescimento do cooperativismo de plataforma no país. Em Barcelona também há um incentivo para isso. São maneiras colaborativas de se inserir no trabalho de plataforma sem ter que ficar dependente das grandes plataformas. O perfil de trabalhadores é de pessoas que, na maior parte das vezes, passaram por experiências traumáticas com a plataforma, ou por terem sido bloqueadas ou por terem ficado desprotegidas em determinadas situações, e que tentam recriar colaborativamente espaços alternativos de trabalho. O cooperativismo de plataforma tem esse caráter associativista, com pessoas que precisam trabalhar juntas, dentro de uma lógica de autogestão, de pensar a organização sem as hierarquias de uma plataforma capitalista e, por isso, demanda uma coesão do grupo para buscar alternativas que sejam colaborativas.

Existem vários problemas colocados em torno do colaborativismo de plataforma, que tem sido chamado de outros nomes. O conceito desse tipo de atividade está em disputa, mas o cooperativismo tem encontrado dificuldades pela ausência de políticas públicas que deem suporte a esses negócios. Às vezes, as pessoas nem sequer têm capital inicial para montar o seu empreendimento, não têm suporte para gestão, para o desenvolvimento do negócio. Então, a receita do cooperativismo como política pública de fomento à cooperação, com as universidades atuando junto com esses empreendimentos enquanto incubadoras, precisa ser retomado e repensado do ponto de vista das plataformas.

IHU – Em que medida o cooperativismo pode ser uma alternativa ao trabalho por plataforma, tal como é desenvolvido hoje? Até que ponto os cooperados reproduzem as práticas das grandes empresas e inovam?

Julice Salvagni – A grande questão está na questão das decisões coletivas. Nada é imposto; tudo é conversado e discutido de maneira coletiva e conjunta. Hoje, ainda existem poucos empreendimentos colaborativos e eles são feitos por poucas pessoas. Essa é uma alternativa interessante de ter outra forma de trabalho organizado em torno das plataformas, mas a questão que se coloca é a necessidade das plataformas se reproduzirem e crescerem.

A maior parte das cooperativas são de entregadores e motoristas e elas seguem mais ou menos a mesma lógica das plataformas, mas elas não têm regras abusivas e lógica de exploração e controle do ponto de vista de quem trabalha. As decisões são todas colaborativas e a remuneração para o trabalhador é clara, precisa e justa. Uma plataforma que atua em São Paulo, organizada a partir do MTST, trabalha com pessoas disponíveis do movimento MTST para serviços gerais de limpeza, de pintura e obras. A plataforma disponibiliza o contato das pessoas para qualquer um que tenha interesse em contratar esses serviços. Ao contrário das plataformas capitalistas que cobram por fazer essa intermediação, essa plataforma não cobra e consegue oportunizar o encontro entre as pessoas que estão precisando de trabalho e aquelas que estão precisando do serviço, sem gerar custos para o trabalhador e o contratante, que decidem o valor do serviço de modo autônomo e conjunto. É uma lógica diferente no sentido de que a plataforma não atua como atravessador, ganhando dinheiro em cima do trabalho humano.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Julice Salvagni – Estudar as plataformas de trabalho é relevante e é algo que precisamos fazer. Não quer dizer que as plataformas inauguraram a exploração do trabalho, mas elas recriam essa exploração sob contornos sutis que precisam ser entendidos e estudados para produzir uma resposta da sociedade frente aos descasos da intensificação da precariedade que as plataformas têm produzido.

  

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