12 Setembro 2023
"Não será boa para o país, e nem muito eficaz para sua transição, a estratégia de reduzir rapidamente as emissões brasileiras por meio do encolhimento repentino dos investimentos na indústria de petróleo e gás no Brasil. Mesmo no melhor cenário de transição energética, o mundo ainda precisará de petróleo, gás, petroquímicos e muitos outros produtos associados à essa cadeia produtiva. Respeitadas todas as condicionantes socioambientais, o Brasil é um dos países mais aptos a ofertar esses produtos com uma menor pegada de GEE e, certamente, é um país que não pode abrir mão das riquezas, do emprego, das oportunidades de neoindustrialização e da tecnologia que podem ser impulsionados por essa atividade", escreve Ricardo Buratini, Secretário Adjunto de Energia da Secretaria Especial de Articulação e Monitoramento/Casa Civil, em artigo enviado ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU.
Nas últimas semanas, algumas matérias[1] despertaram as atenções de vários leitores ao indicarem uma suposta incoerência entre os investimentos anunciados no Novo PAC e o necessário avanço da agenda da transição energética no país. Com manchetes que evidenciaram a elevada participação dos investimentos do subeixo Petróleo e Gás no total do eixo Transição e Segurança Energética, a conclusão que naturalmente decorre delas é que o Novo PAC apenas reforça a aposta na energia fóssil.
Lidas as manchetes, foi impossível não lembrar de uma expressão bastante conhecida, que ensina que é possível contar uma grande inverdade trazendo à luz apenas algumas meias verdades. Cientes disso, nas linhas que seguem buscaremos somar novas evidências ao quadro geral para promover o bom debate e demonstrar que, contrariamente ao sugerido, o Novo PAC está perfeitamente alinhado com uma transição energética justa e inclusiva.
É preciso considerar, já de início, que a atividade de Petróleo e Gás é muito intensiva em capital, e isso mesmo se comparada às atividades típicas dos subeixos Geração de Energia, Transmissão e Combustíveis de baixo Carbono. Assim sendo, se é fato que, em valores, 62% dos recursos do eixo Transição e Segurança Energética estão alocados em Petróleo e Gás, também é verdade que, quando se analisa o número de empreendimentos, constata-se que, dentre os subeixos mencionados, o de Petróleo e Gás representa apenas 10,2% do total, posição bem distante do subeixo de Geração de Energia, com 65% do total de empreendimentos.
Mas esse não é o único e muito menos o principal argumento que podemos trazer para atestar o compromisso do Novo PAC com a transição energética. A nosso juízo, esse compromisso só pode ser claramente demonstrado se, junto da análise mais agregada dos números, acrescentarmos duas perguntas fundamentais.
A primeira, mais óbvia, é: afora o setor de Petróleo e Gás, o Novo PAC não traz em outros subeixos boas novidades que podem ter passado despercebidas em meio ao turbilhão de dados divulgados? A segunda pergunta pode ser colocada da seguinte forma: dadas as particularidades do setor de petróleo e gás no Brasil e no mundo, investimentos adicionais por parte do Brasil são realmente incompatíveis com o enfrentamento da crise climática global e com uma transição energética justa e inclusiva no nosso país?
Iniciando pela primeira pergunta, podemos afirmar que, se tivesse havido uma leitura mais ampla dos dados do Novo PAC, algumas manchetes poderiam ter evidenciado, por exemplo, que, no subeixo Geração de Energia, está previsto um acréscimo de capacidade de 14,5 GW advindo exclusivamente de fontes limpas e renováveis. Esse acréscimo corresponde à toda potência da segunda maior usina hidrelétrica do mundo (Itaipu), ou 7% de toda a capacidade instalada hoje no país! O montante também equivale a 79% de toda a nova capacidade de geração prevista no Novo PAC. Certamente são dados impactantes, especialmente se levarmos em conta que o país já tem uma matriz altamente renovável e que, na média mundial, apenas 38% da capacidade instalada de geração é renovável.
Outra novidade que também poderia ter sido destacada é a que vem do subeixo Transmissão. São 28 mil quilômetros de novas linhas de transmissão que serão viabilizadas por meio de leilões já previstos. Para se ter uma ideia do significado desse número, trata-se de um acréscimo de nada menos do que 15% de todo o sistema existente, que, lembre-se, é um dos maiores sistemas interligados do mundo. Não teria sido exagero ressaltar também que esse conjunto de novas linhas:
Um terceiro exemplo de boas novidades para a transição energética contidas no Novo PAC está no subeixo Combustíveis de Baixo Carbono. São cerca de R$ 26 Bilhões de investimentos já garantidos numa área muito promissora e que ainda depende de importantes definições regulatórias, definições que devem ser endereçadas nos próximos meses. O Novo PAC é dinâmico e certamente a carteira desse subeixo ganhará corpo. Investimentos em biorefino, etanol de segunda geração, captura e armazenamento de CO2 e biometano já fazem parte da carteira do Novo PAC e seu número deve crescer juntamente com investimentos em hidrogênio de baixo carbono e outros que, por ora, aparecem como estudos.
Postas as novidades gerais de alguns subeixos, passemos à segunda pergunta. Vejamos se os investimentos adicionais no setor de Petróleo e Gás no Brasil são realmente incompatíveis com o enfrentamento da crise climática e com uma transição energética justa e inclusiva no país.
Em primeiro lugar, voltemos ao contexto mundial mais geral. O objetivo é apenas comprovar que nossa argumentação não se apoia em nenhum tipo de negacionismo.
Como já amplamente demonstrado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), vivemos, de fato, uma crise climática que precisa ser enfrentada sem subterfúgios e sem mais perda de tempo. Nesse cenário, certamente é inescapável admitir que o meio ambiente desconhece fronteiras nacionais e que qualquer esforço que vá no sentido de acelerar a transição já ganha legitimidade em âmbito global automaticamente, venha de onde vier.
Mas se a conclusão acima é válida, onde reside, então, o “x” da questão? Como se compatibiliza a defesa da transição energética e a defesa da carteira do Novo PAC? Em nossa opinião, essa compatibilização só pode ser demonstrada se não esquecermos que ter legitimidade no plano global não assegura que toda e qualquer ação que o Brasil tome para reduzir suas emissões será necessariamente a mais eficaz para a transição global ou valerá a pena para o país considerando todos os demais aspectos da sua realidade.
De certo, quando adentramos o plano das realidades nacionais, verificamos que existem particularidades decisivas que não podem ser esquecidas. Lembremos a esse respeito que, na última COP, da mesma forma que foi ressaltada a necessidade urgente de reduzir as emissões globais, também se reafirmou o apoio a uma transição energética justa e inclusiva, ou seja, uma transição que considere o princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas, e que não deixe de incluir socialmente a ampla camada populacional historicamente excluída. Nunca é demais insistir: existem grandes assimetrias entre países, seja do ponto de vista das responsabilidades históricas (são poucos os países responsáveis pelo maior volume de emissões), seja no que diz respeito ao acesso a recursos financeiros e tecnológicos adequados para enfrentar energicamente os problemas ambientais globais.
Feita essa importante observação, passemos às especificidades da indústria de petróleo e gás no Brasil e no mundo para dar seguimento à nossa investigação.
A indústria do petróleo, e mais especificamente o segmento de exploração e produção (E&P), é muito diferente do que pensa o senso comum. Uma particularidade marcante do segmento é o rápido decaimento da produção, que, de forma não linear, atinge médias próximas a 10% ao ano, sendo mais intenso nos primeiros anos. Isso por si só já indica que, diferentemente da indústria em geral, na indústria do petróleo é preciso continuar investindo apenas para se manter o nível da produção corrente.
Mas a resiliência dos investimentos na indústria do petróleo não se explica apenas pela particularidade citada acima. Também contribui para o elevado nível de investimentos o fato de que o uso do petróleo não se restringe ao setor de transportes e envolve, por exemplo, uma ampla gama de produtos petroquímicos, cuja demanda não para de crescer. É por essas razões, dentre outras, que a Agência Internacional de Energia projeta, mesmo no seu cenário mais favorável à transição energética ̶ o cenário Net Zero Emissions by 2050 ̶ , que ainda haverá uma demanda nada desprezível de 22,8 milhões de barris de petróleo por dia em 2050. Note-se sobre esse volume que ele corresponde a cerca de 7 vezes a produção atual da nossa maior empresa, a Petrobras.
Passemos agora às particularidades do Brasil na área, particularidades talvez também pouco conhecidas.
Não apenas por obra da natureza, mas também por conta da competência historicamente construída na Petrobras, o Brasil possui amplas vantagens que credenciam nossa permanência no seleto grupo de produtores de petróleo com menor pegada de gases de efeito estufa (GEE) num mundo em rápida transição. Ressalta-se nesse sentido que os campos de Tupi e Búzios, no pré-sal, responsáveis por 51% da produção do país em 2022, apresentam intensidade de carbono de 9,5 e 9,1 kg CO2e/boe, respectivamente, o que coloca o óleo desses campos no primeiro quartil dos óleos menos intensivos em emissões do planeta! Não é por outra razão, portanto, que o atual presidente da Petrobras, J.P. Prates, afirmou recentemente que o Brasil deve ganhar participação no mercado mundial e que podemos ser um dos últimos países a produzir petróleo no mundo. Não é por outra razão também que a própria Agência Internacional de Energia, no seu Announced Pledges Scenario (cenário que considera que serão cumpridos todos os compromissos já firmados pelos países, incluindo metas net zero de longo prazo), projeta que haverá um aumento de 45% da produção do país em 2030 ante o patamar de 2021.
O exposto acima certamente indica a competitividade e a eficiência da produção de petróleo e gás no país. E se o tema é eficiência, vale sublinhar também que os esforços de descarbonização da indústria, que já foram significativos no passado recente, podem e devem continuar. Afinal, diante da gravidade da crise climática, é preciso reconhecer que novos esforços devem ser exigidos de todos. Mesmo que a intensidade de emissões de GEE no E&P da Petrobras já tenha recuado 50% entre 2009 e 2022, ainda assim é preciso avançar muito mais. Ainda quanto à Petrobras, novos esforços e novas metas têm sido anunciados nos últimos meses e certamente outros anúncios alvissareiros ocorrerão. O processo de transformação de uma empresa de petróleo em uma empresa de energia latu sensu tende a acelerar no futuro próximo, como já atestado pelo aumento do percentual do CAPEX em projetos de baixo carbono e pela ampliação de investimento em novas fronteiras como hidrogênio verde, eólicas offshore, CCUS, biorefinarias e combustíveis de baixo carbono.
Por fim, também é preciso lembrar que, por temos uma matriz elétrica fortemente renovável e uma matriz de transporte com boa presença de biocombustíveis, a contribuição do setor energético brasileiro para o total das emissões do país é muito menor do que se verifica na média mundial. Para se ter uma ideia, enquanto no mundo a produção de energia totaliza cerca de 75% do total de GEE emitidos, no Brasil o setor energético responde por apenas 25% das nossas emissões. Por outro lado, aqui o desmatamento e a agropecuária, juntos, explicam dois terços do total das nossas emissões. A conclusão é inescapável: se quisermos realmente reduzir rapidamente nossas emissões, em nome da eficácia das ações, é sobre o desmatamento e o modelo de uso da terra que temos que concentrar os maiores esforços. Isso não significa, porém, que podemos enfraquecer as ações de descarbonização do setor energético.
Nossa imensa vantagem face ao resto do mundo não pode servir de álibi para isso. A luta é de todos e as responsabilidades têm que ser divididas.
Mas a eficácia das ações e as oportunidades que se colocam tampouco podem ser desconsideradas e desperdiçadas. É por isso que sustentamos: o Novo PAC vai na direção correta ao apostar em grandes investimentos na indústria de petróleo e gás no Brasil. Não será boa para o país, e nem muito eficaz para sua transição, a estratégia de reduzir rapidamente as emissões brasileiras por meio do encolhimento repentino dos investimentos na indústria de petróleo e gás no Brasil. Mesmo no melhor cenário de transição energética, o mundo ainda precisará de petróleo, gás, petroquímicos e muitos outros produtos associados à essa cadeia produtiva. Respeitadas todas as condicionantes socioambientais, o Brasil é um dos países mais aptos a ofertar esses produtos com uma menor pegada de GEE e, certamente, é um país que não pode abrir mão das riquezas, do emprego, das oportunidades de neoindustrialização e da tecnologia que podem ser impulsionados por essa atividade. Da mesma forma, o Brasil não dispõe das mesmas facilidades financeiras e fiscais que têm lugar nas grandes potências globais. Não dispomos, como os EUA, de US$ 1 trilhão de dólares para acelerarmos nossa transição. E certamente não aceleraremos transição alguma, muito menos uma que seja justa e inclusiva, se abrirmos mão de riquezas ainda tão estratégicas para o país.
[1] Novo PAC prevê transição, mas destina R$ 335 bilhões para petróleo e gás; Em novo PAC, 62% dos recursos para energia ficam com fósseis; e 2/3 do investimento em transição energética do PAC vão para petróleo e gás.
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O Novo PAC e o compromisso com a transição energética justa e inclusiva. Artigo de Ricardo Buratini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU