Com a cumplicidade da AGU, Silveira tenta converter uma decisão técnica que afeta o ecossistema amazônico e a qualidade de vida das novas gerações numa questão de ‘conciliação’.
A reportagem é de Claudia Antunes, publicada por Sumaúma, 23-08-2023.
O ministro das Minas e Energia,
Alexandre Silveira, do PSD de
Minas Gerais, fabricou uma “controvérsia jurídica” para evitar uma avaliação responsável sobre os impactos ambientais e econômicos da abertura de uma nova frente de
exploração de petróleo no litoral da Amazônia. É essa a finalidade do
parecer pedido por Silveira à Advocacia-Geral da União (
AGU) e divulgado na terça-feira 22 de agosto. Com ele em mãos, o ministro tenta passar por cima do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (
Ibama) no
processo de licenciamento do bloco 59 da Petrobras, na bacia da
Foz do Amazonas, e obter a autorização para a perfuração numa “câmara de conciliação”. A manobra foi rejeitada pela ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima,
Marina Silva. “Não há conciliação para questões técnicas”, disse ela no
Senado nesta quarta-feira, 23 de agosto.
O
parecer da AGU trata do argumento do
Ibama e do ministério de
Marina sobre a importância da realização de uma Avaliação Ambiental de Área Sedimentar (
AAAS) de toda a margem equatorial do
Brasil, o litoral que vai do
Rio Grande do Norte ao
Amapá, antes que se abra ali uma nova fronteira de exploração petrolífera. A
AAAS é um instrumento dos ministérios do Meio Ambiente e de Minas e Energia que permite avaliar o impacto cumulativo de toda a cadeia do combustível fóssil numa área ambientalmente sensível. Sua utilização está baseada nos princípios da responsabilidade e da precaução.
Hoje, há 41 blocos já licitados na margem equatorial, nove deles na
foz do Amazonas. A licença para a perfuração de um bloco poderia abrir um precedente para os outros. O parecer da
AGU afirma que a
AAAS não é uma precondição para o licenciamento – mas o
Ibama e o
Ministério do Meio Ambiente jamais alegaram que era. O que eles buscam é uma solução técnica para que uma decisão vital de política pública, com impactos sobre a maior floresta tropical do planeta, possa ser tomada de maneira bem informada, eliminando a “possibilidade de um salvo-conduto para a incerteza”, como disse o
Ibama no parecer em que recomendou que a licença para a perfuração fosse negada. Ao recorrer à
AGU,
Silveira rejeitou o caminho técnico, manobra em que é apoiado por outros setores do governo, com o
aparente aval do presidente Luiz Inácio Lula da Silva – que disse no início de agosto que o
Amapá poderia “continuar sonhando” com a exploração de petróleo em sua costa.
O licenciamento do bloco 59 começou há dez anos, e a perfuração em blocos próximos já havia sido
negada pelo Ibama em 2018. Essa demora tem justificativa. Trata-se de um litoral piscoso, de mangues –
ecossistema muito sensível a derrames de óleo –, e onde vivem espécies ameaçadas de extinção. Além disso, a dinâmica das correntes marinhas na região, três vezes mais fortes do que as do litoral do
Sudeste, é pouco estudada.
Em razão dessa insegurança, o
Ibama levantou a possibilidade de que fosse feita a
Avaliação Ambiental de Área Sedimentar, para permitir uma decisão responsável. Em um parecer de 31 de janeiro, os técnicos do órgão dizem textualmente que “não temos instrumentos jurídicos para justificar a recomendação de não emissão de licenças ambientais de perfuração exploratória até que seja realizada uma avaliação ambiental estratégica”. Na ausência dela, porém, afirmam, “a manifestação favorável quanto à viabilidade ambiental de projetos de perfuração exploratória é fragilizada e não garante” que as etapas seguintes, da eventual produção de petróleo, “tenham sua viabilidade ambiental garantida”.
O
parecer da AGU, no entanto, subscreve a posição de
Silveira ao mencionar a suposta “controvérsia jurídica” levantada por ele. Diz que “no plano fático” o
Ibama tornou a realização da
AAAS uma condicionante para o licenciamento. “Não há como se afirmar que não se está, ainda que por via transversa, ‘exigindo’ a realização da AAAS no bojo do licenciamento ambiental”, diz o parecer de 22 páginas. Ou seja, a AGU endossa Silveira ao tratar o caso como se ele se resumisse a um debate de forma – e não de conteúdo.
A partir do parecer, a pasta comandada por
Jorge Messias afirmou em nota que considera que a questão da
AAAS está superada. A
AGU pediu então à
Câmara de Mediação e de Conciliação da Administração Pública Federal a abertura de um processo sobre os demais pontos que haviam levado à
negação da licença pelo Ibama – o impacto nas terras indígenas da região do Oiapoque e as inconsistências no plano apresentado pela Petrobras para a proteção da fauna. A Câmara é um órgão da AGU no qual se discutem litígios dentro do governo ou entre o governo e terceiros. No entanto, para que o processo ocorra, é preciso que todas as partes estejam de acordo, e a ministra
Marina Silva afirmou que continuará resistindo. “Eu não posso colocar numa rodada de conciliação a
Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] para decidir, por decisão política, administrativa, se um remédio é tóxico. É a mesma coisa com as decisões do
Ibama”, exemplificou ela no
Senado.